terça-feira, setembro 30, 2008

- original soundtrack -

essi vidjio é uma grácinha:

O rei da brincadeira - ê, José
O rei da confusão - ê, João
Um trabalhava na feira - ê, José
Outro na construção - ê, João

A semana passada, no fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde saiu apressado
E não foi pra Ribeira jogar
Capoeira
Não foi pra lá pra Ribeira
Foi namorar

O José como sempre no fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio
Foi no parque que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu

Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana, seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João
O espinho da rosa feriu Zé
E o sorvete gelou seu coração

O sorvete e a rosa - ô, José
A rosa e o sorvete - ô, José
Oi, dançando no peito - ô, José
Do José brincalhão - ô, José

O sorvete e a rosa - ô, José
A rosa e o sorvete - ô, José
Oi, girando na mente - ô, José
Do José brincalhão - ô, José

Juliana girando - oi, girando
Oi, na roda gigante - oi, girando
Oi, na roda gigante - oi, girando
O amigo João - João

O sorvete é morango - é vermelho
Oi, girando, e a rosa - é vermelha
Oi, girando, girando - é vermelha
Oi, girando, girando - olha a faca!

Olha o sangue na mão - ê, José
Juliana no chão - ê, José
Outro corpo caído - ê, José
Seu amigo, João - ê, José

Amanhã não tem feira - ê, José
Não tem mais construção - ê, João
Não tem mais brincadeira - ê, José
Não tem mais confusão - ê, João

(Domingo no Parque, Gilberto Gil)
- não vai mais vinho para essa mesa -

trillion-dollar bailout? Nevermind!

(capa da Mad Magazine)
- o carteiro -

Eh pá, por aí não que bai dar uma ganda bolta… ou
Joga áis mãozinhais prá cima e vamô tjirá o pé do chão…
Este quadro de Ingres, bem como os outros que se lhe seguem no post, suscitaram-me uma dúvida: haveria, ou melhor, haverá um simbolismo na colocação das mãos da Virgem Maria, nas diferentes fases da sua vida, que no fundo se confundem com as da vida do seu filho? Nada fazia crer, segundo as pinturas que existisse, pelo menos neste caso em que estas quatro virgens mostram as palmas das mãos, uma matriz, uma vez que a de Ingres se refere a uma Virgem Corodada, a de Alessandro Alori, a uma Anunciação, a da Virgem do Sinal, a uma Madonna com o Menino e a de Gian Battista Piazetta a uma Nossa Senhora Imaculada. Cada uma delas estava pintada em momentos diferentes da vida da mãe de Cristo e em momentos diferentes da história do Cristianismo, logo esta iconologia não poderia ter sido determinada apenas por ordens superiores ou decisões de secretaria.

Ingres
Virgem Coroada
185
Tamenago Gallery, Tóquio


Alessandro Allori
Annuciation
1603
Galleria dell'Accademia, Florença

Anónimo
Virgem do Sinal
1732
Igreja da Transfiguração, Bolshye Sarachints, Ucrânia


Gian Battista Piazzetta
A Imaculada
século XVII
Pinacoteca de Parma

Não haveria anátema para quem não cumprisse o mandado uma vez que este, se existia, estava enraizado na memória colectiva, mais do que em qualquer escrito. Como garantir que as mãos da virgem se pintavam abertas para o espectador ou fechadas em oração para o anjo, se a Anunciação não refere nada disso, não fala da posição das suas mãos? Eu tinha no entanto a certeza que haveria aqui matéria de investigação, que estas mãos abertas de Ingres não eram apenas feitio, mas procuravam o efeito. O evangelho de São Lucas diz apenas isto: "E, no sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré,/A uma virgem desposada com um homem, cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria./E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres./E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras, e considerava que saudação seria esta./Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus./E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus./Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai;/E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim./E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço homem algum?/E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus./E eis que também Isabel, tua prima, concebeu um filho em sua velhice; e é este o sexto mês para aquela que era chamada estéril; /Porque para Deus nada é impossível./Disse então Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra. E o anjo ausentou-se dela." (Lucas 1, 26-38).
No entanto muitos foram os teólogos que a partir do século XII procuraram dar resposta aos estados de ânimo da Virgem espelhados na forma como as suas mãos eram muitas vezes retratadas. Entre eles encontramos Bernard of Clairvaux ("De laudibus Virginis matris "), Fra Roberto Caracciolo of Lecce ("Sermones de Annuciatione") e Giovanni de Cauli ("Meditationes vitae Christi") cujos escritos permitiam a comunicação e a troca de ideias entre os mais letrados, mas não deixavam espaço à reflexão para os que não tinham essa sorte (quase todos). A arte fazia assim o papel da letra. Nos "Sermones de Annuciatione" estabelecia-se mesmo uma relação entre os momentos da Anunciação e os sentimentos vividos pela mãe do Salvador. Eles seriam a conturbatio; ou seja, o primeiro momento, o momento de surpresa por saber da notícia, cogitatio que correspondia ao tempo de reflexão após a surpresa inicial, interrogatio que mais não era que a preocupação com as palavras do anjo, humiliatio que se refere à aceitação e submissão à vontade de Deus e por fim, meritatio ou seja, a alegria interior por servir Deus.
Vejamos o primeiro caso; a conturbatio. Giovanni de Cauli escreveu que a Virgem estava perturbada, mas sem motivo aparente. Talvez apenas perturbada pela aparição do anjo, ou pela forma como este se dirigiu a ela, dizendo que ela era a cheia de graça, que Deus estava com ela e que ela era abençoada acima de todas as mulheres. Maria deve ter corado, deve ter ficado envergonhada pois este era talvez o único e maior elogio que uma mulher de bem, de paz e respeitada poderia desejar. Maria alcançou a graça, a presença de Deus e a sua bênção e por isso a iconografia muitas vezes escolhe uma imagem de humildade por parte da Virgem para caracterizar este momento. É por isso frequentemente pintada com as mãos cruzadas sobre o peito como neste quadro de Murillo, imagem que muito agradou os mais conservadores, mas nem por isso se tornou a forma mais comum para retratar a conturbatio como podemos ver no exemplo de Sandro Botticelli ou de Perugino em que a Virgem está com as palmas das mãos viradas para fora, e elevadas à mesma altura. Ainda não é bem aquilo que Ingres pintou, mas já se nota a atitude de espanto e quase de negação perante a incredulidade das palavras do anjo. Há ainda alguns exemplos de Anunciações em que a Virgem, no momento em que vê o anjo, agarra a bíblia ou até o próprio véu, como é o caso da Anunciação de Simone Martini e Lippo Memmi, ou foge dela, como podemos ver no exemplo em baixo. Esta Anunciação de Lorenzo Lotto mostra a Virgem de cabeça baixa, de palmas das mãos viradas para nós e de costas para o anjo, quase como se este fosse uma tempestade da qual ela tem de se abrigar. O próprio gato - os gatos têm a capacidade de ver fenómenos sobrenaturais, pelo menos é o que dizem - foge a sete patas!

Bartolomé Esteban Murillo
Annunciation
1660-1665
Museo del Prado, Madrid


Sandro Botticelli
Cestello Annunciation
1489-90
Galleria degli Uffizi, Florença


Pietro Perugino
Anunciation
1489
Santa Maria Nova


Lorenzo Lotto
Annunciation
c. 1527
Pinacoteca Comunale, Recanati

Cogito ergo sum, não era assim? Depois de se ter mostrado espantada, surpreendida, humilde e pura, a Virgem mostra-se pensativa. Aliás, no Magnificat (pequena oração ou cântico que a Virgem entoa quando visita a sua prima Isabel e a criança lhe salta no ventre), Maria mostra-se pensativa e reflecte sobre tudo o que aconteceu: "Disse então Maria: A minha alma engrandece ao Senhor,/E o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador;/Porque atentou na baixeza de sua serva; Pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada,/Porque me fez grandes coisas o Poderoso; E santo é seu nome./E a sua misericórdia é de geração em geração Sobre os que o temem./Com o seu braço agiu valorosamente; Dissipou os soberbos no pensamento de seus corações./Depôs dos tronos os poderosos, E elevou os humildes./Encheu de bens os famintos, E despediu vazios os ricos./Auxiliou a Israel seu servo, Recordando-se da sua misericórdia;/Como falou a nossos pais, Para com Abraão e a sua posteridade, para sempre." (Lucas1, 46-55). No fundo, Maria não tinha muito em que pensar. Quando os teólogos falam em cogitatio, esquecem que aquela era a vontade de Deus e Maria não podia ir contra ela. E mostrando-se a Virgem sempre tão submissa, o que poderia fazer se o filho do salvador já estava no seu ventre? Abortar? O Nascimento de Cristo talvez tenha sido uma imposição divina em vez de uma escolha humana, o que faz sentido se pensarmos que é Cristo, mas deixa de fazer se pensarmos que antes de ser Cristo, foi Menino. O único exemplo, ou dos poucos exemplos em que Maria se mostra preocupada ou pensativa depois da Anunciação chega-nos pela mão de Henry Ossawa Tanner que nos apresenta a futura mãe de Jesus sentada numa cama, num quarto em estilo oriental, com um olhar perdido no espaço e de visível preocupação. O anjo já não está na sua presença, mas antes a luz do anjo, como um resquício das palavras proferidas. De qualquer forma, a Virgem poucas vezes se mostra pensativa, na arte. Há também um outro exemplo da reacção da Virgem no Tríptico de Perugia de Fra Angelico quando esta junta as mãos em sinal de oração e esboça um sorriso como que aliviada por esta revelação.

Henry Ossawa Tanner
The Annunciation
1898
Philadelphia Museum of Art

É também neste momento que a Virgem, para além de reflectir sobre o sucedido, acaba por inquirir o anjo; ou seja, a interrogatio. Ela pergunta-lhe como foi possível aquilo acontecer-lhe se ela não conhecia nenhum homem, se nunca havia estado com nenhum homem. Ele responde-lhe que nada é impossível para Deus (o que é uma boa desculpa, pois assim, qualquer pergunta futura já fica respondida). Esta resposta também é boa para os artistas porque se nada é impossível para Deus, nada é impossível para um artista; é mais fácil pintar o impossível do que o possível, pois no possível há referências anteriores e no impossível, não há impossível. Vários são os exemplos deste diálogo entre anjo e Virgem, como nos mostra Antonello of Messina na Virgin Annunciate. A Virgem não está a falar, os seus lábios estão fechados, mas a mão dela já se estende na nossa direcção, queremos acreditar que na do anjo também, para o interromper e perguntar "como foi isso possível?" Aliás, a virgem parece saber a resposta antes mesmo de fazer a pergunta; ou seja a interrogação precede o pensamento o que nos leva a concluir que a Virgem terá um papel mais activo do que aquele que a Cristandade nos fez acreditar que tinha.

Antonello da Messina
Virgin Annunciate
c. 1475
Galletria Nazionale della Sicilia, Palermo

Humiliatio é uma expressão forte por poder ser relacionada com "humilhação". O termo em latim refere-se a “qualquer coisa que perde importância”. Pode ser vista então à luz da humilhação pois quem se humilha ou é humilhado, toma uma posição inferior aos que o rodeiam, mas também pode ser visto à luz do tempo em questão; ou seja, a Virgem abandona a preocupação com a sua pessoa para aceitar o que lhe é dado. Que à luz de hoje é quase uma humilhação. Ao contrário do que dizem e foi referido atrás, não é uma condição que se aceita livremente, mas antes imposta à Virgem. Uma das melhores imagens da Humiliatio é este vitral de Burne-Jones onde do lado esquerdo podemos ver a forma como a Virgem faz as mãos pousarem aliviadas sobre o peito embora a sua expressão seja ainda de algum susto. Esta é talvez a fase mais difícil de definir de toda a Anunciação: na conturbatio a Virgem cruza as mãos sobre o peito ou levanta-as com as palmas das mãos viradas para fora; na cogitatio as suas mãos estão abandonadas no colo ou na Bíblia, sem grande expressão pois este é o momento em que a Virgem reflecte sobre o que lhe aconteceu; na interrogatio a mão da Virgem pode dirigir-se para o anjo, pode existir um movimento de mãos que denuncie a sua intervenção, mas na humiliatio, poucos são os exemplos da aceitação com alegria do fruto da vontade do Senhor. Maria expressa essa aceitação com alívio, mas também com angústia.

Sir Edward Burne-Jones
Annunciation (the left-hand and centre panels of a three-light window at St. Columba's Church
1860
St. Columba's Church, Topcliffe, Yorkshire

Por fim a meritatio que em inglês é “merit” e em português mérito, conta a fase da Anunciação em que a Virgem sente a alegria interior pelas palavras do anjo. Maria foi a escolhida, o anjo já se foi, mas a partir daquele momento ela não está sozinha pois no seu ventre está o Outro, aquele que virá para servir. Ela vai dar vida a Deus, uma vez que do Pai nasceu o Filho e todos são um só. Graças a ela, o Pai vai deixar de ser apenas espírito para passar a ser matéria. No entanto, devo dizer que os exemplos vistos (e já ando nisto há dois dias), não me transmitem essa alegria. Talvez mais a expressão de auto-reconhecimento do mérito, noção da responsabilidade futura, mas nada de alegria. A Virgem de Ticiano tem um rosto triste e tal como os outros exemplos, mostra o seu perfil, mais resignada e portadora de um mistério do que em êxtase. Outro exemplo é a Blessed Virgin de Bernardo Cavallino que mostra, não o rosto mas a testa. Não está de perfil, não está a três quartos, mas praticamente de frente com a cabeça baixa o suficiente para lhe notarmos a testa e o perfil alongado, numa profundidade exterior que também é, a meu ver, interior.

Vecellio Ticiano
Polyptych of the Resurrection: Virgin Annunciate
1522
Santi Nazaro e Celso, Brescia


Bernardo Cavallino
The Blessed Virgin
1650
Pinacoteca di Brera, Milão

Todo este post a propósito da primeira pintura, da pintura de Ingres, que eu acho, não merece. Primeiro porque o quadro de Ingres chama-se Virgem Coroada e logo não se insere neste contexto, mas foi o quadro que me levou à pesquisa. Segundo, porque se eu fosse grega ficaria muito magoada com o tipo: é que na Grécia, mostrar as palmas das mãos é como lançar uma maldição.
- não vai mais vinho para essa mesa -


era um tipo normal: ia aos blogs ver matéria que mais tarde pudesse debitar
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou como acabei de escrever 'hipócretas' e devo ter dislexia na escrita ou “como este quadro está quase para o blog como a Mona Lisa ou as pietás ou as Últimas Ceias estão para o ‘antes de depois’. Já tínhamos feito um antes e depois com o quadro de Renoir pois o seu filho Jean Renoir realizou um filme ("Paris does strange things") onde aparece uma cena muito semelhante à pintada pelo pai. E já tínhamos falado do quadro a propósito do seu primeiro dono: Caillebotte que aparece num auto-retrato com o quadro de Renoir em fundo.

Renoir gostava destas cenas ao ar livre e daquelas onde se podia experimentar a alegria parisiense de um Domingo à tarde. Muito diferente das escolhas de Seurat para um Domingo à tarde, mas certamente mais divertido. O Moulin de la Galette situava-se em Montmartre e devia o seu nome ao facto de ali se produzir um espécie de panqueca, que fazia as delícias da classe trabalhadora, das raparigas jovens e dos seus namorados, bem como dos artistas que apreciavam desta forma o bolo, o espectáculo do divertimento e tentavam angariar modelos para as suas obras. Era um local de engate para trabalho. Mais ou menos... Depois de muito tempo a dedicar-se às pinturas de plein-air, Renoir tinha sede de carne humana, de ver e retratar pessoas; por isso as figuras humanas neste quadro estão tão individualizadas. Nele vemos a irmã da modelo Jeanne, modelo de Renoir, pintores amigos, artistas conhecidos e pessoas ligadas ao movimento impressionista. Picasso tomou contacto com este quadro aquando de uma visita a Paris por ocasião da Exposição Universal de 1900. Aí pôde deambular pelos cafés, ver exposições, viver um pouco da vida boémia de Montmartre. Obviamente, Picasso apaixonou-se pelo lado decadente desta vivência boémia onde burgueses e prostitutas conviviam com toda a naturalidade. Seria até mais lógico Picasso pintar a partir de Toulouse-Lautrec, mas terá pensado, quem sabe, que Lautrec tinha feito o trabalho completo e por isso só restava pegar numa outra visão e transformá-la. Mas acho que o pintor espanhol não conseguiu isso; não conseguiu desfazer-se da visível influência de Renoir. Tal como Renoir fez no seu quadro, Picasso assume o papel de observador exterior, sugerindo apenas aqui e ali o exagero e a artificialidade que caracterizavam o meio e que Picasso enfatizava consoante o seu interesse por este ou aquele ângulo. Não é um quadro típico de Picasso, típico de nenhuma das suas fases nem é um Picasso do Cubismo, mas na minha opinião é um dos poucos em que se celebra a vida sem sarcasmo:"

Pierre-Auguste Renoir
Le Moulin de la Galette
1876
Musee d'Orsay


Picasso
Le Moulin de la Galette
1900
Solomon R. Guggenheim Museum, Nova Iorque

sábado, setembro 27, 2008

-back to black -


"Art washes away from the soul the dust of everyday life."
Pablo Picasso
- não vai mais vinho para essa mesa -

Nuno Rogeiro, hoje, no Jornal da SIC Notícias:
-"eu por acaso estive a falar com o ex-embaixador dos Estados Unidos em Portugal, o senhor Alfred Hoffman que agora faz parte do chicken cabinet de Mc, perdão, o kitchen cabinet de McCain..."

sexta-feira, setembro 26, 2008

- original soundtrack -

I hurt myself today
to see if I still feel
I focus on the pain
the only thing that's real
the needle tears a hole
the old familiar sting
try to kill it all away
but I remember everything
what have I become?
my sweetest friend
everyone I know
goes away in the end
and you could have it all
my empire of dirt

I will let you down
I will make you hurt

I wear this crown of thorns
upon my liar's chair
full of broken thoughts
I cannot repair
beneath the stains of time
the feelings disappear
you are someone else
I am still right here

what have I become?
my sweetest friend
everyone I know
goes away in the end
and you could have it all
my empire of dirt

I will let you down
I will make you hurt

if I could start again
a million miles away
I would keep myself
I would find a way

(Hurt, Johnny Cash)
- não vai mais vinho para essa mesa -

é possível alguém lesionar-se a nadar? sendo a natação um desporto de baixo impacto, alguém explica porque é que me dói a nádega direita e o joelho esquerdo? não devia ser para nos mesmos sítios para os dois lados?
- o carteiro -

o artista, o crítico, a crítica e o amante deles

Jornal Público do dia 19 de Setembro, sexta-feira, semana passada. No suplemento Ípsilon, página 38, o "espaço Público" no topo da página dedicado às críticas dos leitores, podemos ler a seguinte frase de uma senhora, professora, que apreciou o filme "Antes que o diabo saiba que morreste": "O modo narrativo aponta sempre os segmentos do narrável com contornos de análise complexa que delineia bem cada personagem e a sua relação com o seu mundo em final de linha". Pois... Havia necessidade de empregar um pensamento tão circular para dizer que a narrativa e a forma como ela era apresentada define a complexidade de cada personagem com precisão? A senhora em causa faz a sua crítica, expõe a sua opinião num espaço público que o Público concedeu aos seus leitores. Posso não gostar do estilo porque a perífrase entusiasma-me tanto quanto uma queimadura por fricção, mas não posso deixar de notar que não é grave. Apesar de tudo conta como opinião. Mau mesmo é quando é um crítico que, ao fazer uso de uma linguagem rebuscada, mascara de erudição o conteúdo daquilo que quer dizer, deixando por vezes, passar em claro, aspectos de grande importância.
Ora vejamos. Jornal Expresso, dia 20 de Setembro, suplemento Actual, página 36 (por acaso em rodapé está ao contrário "página 36, Actual, 20 Setembro 2008, Expresso) - não reparei por ser a página do meio, confesso que dediquei o fim de semana a pensar nestas coisas, among others - o crítico que fala da exposição de João Paulo Feliciano diz o seguinte (coluna de texto da direita): "As colagens que abrem a exposição usam as palavras 'Blues' e 'Quartet' retiradas de discos seminais num jogo de apropriação linguística habitual na obra de Feliciano". A primeira parte da frase, não é mais do que a descrição da imagem que ilustra quase meia página deste tema e por isso a meu ver, desnecessária. Uma coisa é a crítica à exposição (à qual foram atribuídas três estrelas - pois, a Maya também confiava nas estrelas e está a apresentar programas de televisão. e não são em horário nobre -, sem que no texto nos seja explicado o porquê daquela "avaliação") e outra a crítica das obras a exposição. Se uma não se faz sem a outra, pelo menos que se informe o leitor do porquê das três estrelas (talvez uma crítica não filiada fosse bom, para variar, não sei, sou eu a dizer...). E que se informe também o leitor que "os discos seminais" são da autoria do próprio artista porque não obstante no início do artigo estar escrito "é uma exposição que faz jus à dupla condição de artista plástico e músico que João Paulo Feliciano vem cultivando...", ninguém adivinha que o mesmo já editou discos. Ainda que o Suplemento Actual seja dedicado à cultura, devia aproximar as pessoas da mesma e não afastá-la.

Mas o que me espanta mesmo, é que ao contrário dos políticos ou até dos actores, os artistas plásticos, tão etéreos na sua forma de viver e tão desligados das coisas materiais, nunca terem contestado a crítica; ou seja, os artistas plásticos nunca se dirigem aos críticos e à crítica (geralmente amorfa para não ferir susceptibilidades) contrapondo ideias. Compreendo que qualquer pessoa que se sinta lesada interfira, conteste o que de si é escrito. Já ouvi políticos a contestar as opiniões dadas em relação ao seu trabalho, às suas propostas. Mas nunca ouvi nem li um artista plástico dizer "não, olhe, vai-me desculpar, mas quando diz que naquela instalação eu pretendo dizer 'isto', na realidade eu pretendo dizer 'aquilo'. Ficamos com a sensação que o artista, quer se diga bem ou mal (porque deve estar preparado para aceitar a crítica favorável e a menos simpática), fica satisfeito que se pense seja o que for da sua obra, uma vez que ele não pensou. É uma pertinência à posteriori. Parece ser preferível não discutir ideias pelo receio de ficar sem elas, do que fazê-lo e mostrar que na realidade as mesmas nunca existiram. Como tudo se coloca na esfera das possibilidades, no mundo opaco das intenções artísticas e no uso do verbo no Condicional, todas as hipótese ficam em aberto. E eu fico sem saber se é bom ou é mau, mas quase com a certeza que é mau porque a crítica não deve ter preferências nem medo, mas deve estar bem fundamentada e vir das convicções de quem a escreve, sem que para isso seja necessário recorrer ao e-bay das palavras caras.
- o carteiro -


Vincent Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, London

quando a minha idade era outra que não esta, quando a minha idade era tão verde que ao colher da árvore eram necessárias quatro mãos para me arrancar, descobri entre a palavra dita e a palavra escrita que o meu pai gostava muito de frequentar prostitutas, coisa que me perturbou por se encontrar a minha mãe boa, de saúde e recomendável. depois e até nova idade deixou de me perturbar porque a troca parecia-me justa e o meu pai não era homem de calotes nem de maleitas nem de cotão no umbigo. eu também gostava de prostitutas apesar de dever gostar de prostitutos, mas seguia aquilo que mais tarde uma actriz italiana disse ser o sonho de qualquer mulher; ser uma prostituta ou pelo menos agir como tal. ele gostava delas brancas e negras e azuis e amarelas às riscas e treinadas e trainées e estagiárias e com acessórios e simples e com molho e com acompanhamento e com companhia e sem companhia e a dois e a três e a quatro e a cinco e em vez da sesta e durante a sesta e durante o banho e com banho tomado e com sabor e sem sabor e de todos os lados e viradas do avesso e mais não digo porque a minha idade já não é a mesma de outrora e a vossa também não e todos substituímos a inocência pelo preconceito. o meu pai gostava tanto delas que nem conseguia disfarçar que disfarçava e perante a evidência assumia a pose de beato, com as mãos juntas em forma de vulva, erguidas para os céus, a relatar impropérios contra si e contra elas e contra todos e contra o próprio Deus se este não descesse sobre ele a sua mão pesada, feita de todo o peso de uma Humanidade. Ou duas Humanidades, conforme o dia. gostava tanto de prostitutas que achei mesmo que lhe deviam arranjar um cartão de cliente, só para os habituées, com descontos e facilidades de pagamento e presentes no dia de anos. sempre que o meu pai tivesse prazer no valor de 500 euros (moeda actual) numa das muitas prostitutas que tinham aderido à iniciativa, recebia um felatio grátis e tinha só pagava meios-serviços às segundas-feiras. o meu pai seria um homem feliz e com descontos, elas seriam mulheres felizes e com clientes fidelizados e a minha mãe seria feliz por ver o marido feliz e por ver os filhos felizes por verem os pais felizes e por verem as prostitutas felizes.
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou como às vezes acho que sou pentapolar ou como "eh pá, podias ter esperado um bocadinho mais. 50 anos depois e tu logo, pimba, 'vou fazer uma coisa parecida'", "não foram 50 anos, foram 56", "é a mesma coisa", "tu sabias, tu ainda eras vivo", "só Deus sabe como andava", "mas foi em vida", "mau! já te dise que foi mesmo ali, mais ano menos ano. não podias ter esperado mais um bocadinho?", "para quê? para depois me acusares que pintei isto nas tuas costas, que foste o cor...", "cuidadinho com a língua que a senhora que escreve os posts está a ouvir", "tu nem és o preferido dela", "oh ultraje!", "é verdade!", "posso não ser, mas fica a saber que ela gosta muito de mim", "pois!", "a sério! gosta mais de mim do que de ti. vai uma busca no Google? o que ganhar tem direito a fazer 'bigodes e dentes podres nas obras do outro", "não sejas infantil Ingres", "tu tens é medo. o Cambon tem medo, o Cambon tem medo, o Cambon é mau. Cambon mau!", "que infantil, que irritante!", "tem é medo", "não tenho medo, mas sei que ganhavas", "o Ingres ganha ao Cambon, o Ingres é bom e o Cambon non!", "não exageres. não se trata de ganhar ou perder. isto não é uma competição, é um post, raios! interioriza isso", "o que eu sei e isso ninguém me tira, é que eu fiz a Odalisca e só depois tu fizeste a tua", "não é Odalisca, é Galel", "que é muito semelhante...", "que é muito semelhante...", "à minha Odalisca!", "não é nada!", "ai é sim senhor", "não é não Ingres. já agora, cada mulher nua de costas, sentada numa cama, com um turbante na cabeça era a tua Odalisca, não? há mais marias na terra", "sim... basicamente cada mulher nessas condições é a minha Odalisca", "cresce Ingres", "e tu, tu vai ao médico", "não me fales da terapia Ingres. é muito baixo da tua parte fazer-me recordar a terapia", "é baixo, mas é bom! não é essa terapia. precisas é de uma consulta no oftalmologista para leres, ali na legenda, sim, isso mesmo, baixa-te, para leres ali que o teu quadro está no meu museu, no Museu Ingres", "impossível!", "impossível é estarmos no século XXI e uma parte do país não ter água canalizada", "não, quer dizer, impossível eu estar nesta posição", "então levanta-te!", "não é isso homem! caramba que és de compreensão lenta. impossível estar nesta posição dentro do post", "ao início eu ia à frente, tinha caído nas boas graças de quem posta. agora passei de bestial a besta", "tu nunca foste bestial", "mas olha que tu sempre foste besta", “seu imitador de trazer debaixo do braço, mais ressequido que milho na eira no final de Setembro”, “seu egocêntrico, megalómano, convencido com um ovo que cozeu dez minutos em lugar do coração”, “ui, que medo, que grande insulto”, “posso tentar outros: mau pintor, parolo, pintor papudo! Estás a ver? Estou a ganhar outra vez uma posição privilegiada. A moça postadora gosta de mim”. Parem com isso que me estão a confundir.

Jean-Auguste-Dominique Ingres
The Bather
1808
Musée du Louvre, Paris



Armand Cambon
Galel
1864
Musée Ingres, Montauban

segunda-feira, setembro 22, 2008

- o carteiro -

"cão que vai morder, não ladra antes para avisar" é verdade. mas também é verdade que este é um momento delicado para o cão que vos escreve. por isso, enquanto a coisa não melhorar e não tomarmos uma decisão, o número e qualidade dos posts fica reduzido.
- original soundtrack -

Let me know when you’re lonely babe

Happier now than I’ve been in the past
Gone are the days
Gone are the tears
That was a girl I used to be

The girl that you now see standing in front of you
Keeps going on
Because she believes
In setting you freeeeeeee

So let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby
Let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby

I turn the other way
I could never turn you down
You turn me on
Don’t speak out every meaning
I don’t belong to you
Like you don’t belong to me
So don’t hold on too tightly
There forever be

So let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby
Let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby
Let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby
Let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby
(It might be sweet
If we could meet
Along the way
It would be ok)

You’re all the same in this cynical age
I’ll be
No ball and chain
I risk my reputation
Just to get a room
You always have the reservation
So Come lay down beside
Beside me
Beside me

So let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby
Let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby
Let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby
Let me know when you’re lonely babe
Let me know when you’re lonely baby

(It Would be sweet
If We could meet
Along the way
It Would be ok)

(Let me know, Roisin Murphy)
- não vai mais vinho para essa mesa -

e para o pai e o irmão não vai nada, nada, nada? tudo!!!



- ars longa vita brevis -
hipócrates
antes e depois ou "como a primeira imagem está tão escurinha que até vos dá legitimidade para duvidar. Mas e mesmo um antes e depois. No primeiro quadro, no original de Gericault, diz-se (dizem os críticos) que se marca o momento em que a pintura encontra o feio e o retrata. Ora isso não é verdade. Estou a lembrar-me do El Greco! Ok, estou a brincar. Lembro-me por exemplo da “Cabeça da Medusa” do Caravaggio que para alem de marcar o encontro com o feio, com o terror e com a morte, marca encontro com a morte em tempo real. A Medusa ainda olha para nós, mas da sua cabeça abandonada no chão jorra sangue. Por isso não concordo com o encómio a Gericault, até porque me parece demasiado só em 1818 tal feito acontecer. Retrata, isso sim um episódio trágico da história francesa: o naufrágio da fragata Medusa (também com esse nome, era certo que a coisa não ia acabar bem!) que saiu de França para um exposição no Senegal e foi dada com perdida em 1816. Os franceses foram acusados de negligência por terem dado o comando da fragata ao francês Comte de Chaumareix, um refugiado político que não comandava uma expedição há mais de 25 anos. O mais terrível no naufrágio foi o abandono da fragata Medusa com 149 tripulantes lá dentro tendo estes apenas como provisões alguns barris de vinho. È sabido que o vinho e o desespero não são bons conselheiros e por isso seria de esperar, morte, embriaguez e muita tragédia humana fruto de actos menos nobres. Quando a fragata Argus encontrou finalmente a Medusa ao fim de alguns dias apenas consegui salvar 15 pessoas e dessas, 5 morreram quando chegaram a local seguro. Para pintar este quadro Gericault focou-se no momento em que a Medusa é encontrada e pinta-a do ponto de vista que os tripulantes do Argus teriam da mesma. Diz-se também que terá alugado um quarto perto do hospital Beaujon para poder analisar e aprofundar a anatomia dos corpos mortos Quando apresentada no Salão de Pintura, a obra foi um enorme sucesso, não pela técnica, mas pelo tema. Porém, A pintura nem sequer foi adquirida pelo governo, o que atesta o incómodo que a mesma era.

Géricault, que se encontrava agora sem dinheiro e com uma pequena mina de ouro entre as mãos sem ter quem a quisesse adquirir, resolveu rumar a Inglaterra para numa acção concertada expor o quadro e receber uma percentagem dos lucros das visitas. Após a morte do pintor, o Estado Francês adquiriu o quadro por uma soma muito modesta, quando comparada com todo o dinheiro que Géricault ganhou com o seu périplo cultural.
O quadro de Géricault influenciou muitos artistas pelo drama que retrata e em tudo tem semelhanças com a fotografia de Rancinan. Não são só as semelhanças que nos saltam aos olhos, mas o facto de ambas retratarem duas tragédias: Géricault, como vimos mostra-nos a tragédia dos náufragos num episódio que embora lamentável nunca mais se repetiu. Rancinan mostra-nos a tragédia dos emigrantes que todos os dias se fazem ao mar em embarcações artesanais para tentarem alcançar outra terra firme (principalmente aqueles que chegam a França vindos do Norte de África) que não a sua e aí poderem construir um futuro. A grande diferença entre estas duas histórias está no facto de uma não se ter repetido e da outra, volta e meia, estar presente nos nossos televisores e jornais para nossa vergonha. Os figurantes desta fotografia não são modelos profissionais ou pessoas conhecidas do mundo da moda a do desporto como é apanágio das fotografias de Rancinan, mas antes pessoas comuns, alguns são mesmo emigrantes. Para além disso, o fotógrafo e a sua equipa procuraram que as roupas com que os figurantes estão vestidos fossem artigos de contrafacção. O ensaio e a preparação desta fotografia está aqui:"

Théodore Géricault
The Raft of the Medusa
1818-19
Musée du Louvre, Paris


Gérard Rancinan
Radeau des Illusions
- o carteiro -
[diz-se que um dia Berado chegou a casa com uma reprodução da Mona Lisa, a achar que era a verdeira e ofereceu-a à esposa. esta explicou-lhe que a verdadeira estava no Louvre.]
A bem dizer, assim que ninguém nos ouça, toda a arte é kitsch porque a arte não é o objecto representado, mas sim a representação do objecto. E a bem da verdade, o kitsch na arte é só uma parte do kitsch; ou como dizia alguém que conheço "is just a part of life". A coisa foi sempre vista como uma questão de gosto e como uma questão de posse: as classes mais altas desdenhavam os gostos, gestos e usos da classes mais baixas pois não julgavam capazes de comprá-la. Veja-se o exemplo das cores e das vestes: nem todos podiam vestir púrpura ou dourado. Eram cores que estavam reservadas para a representação de divindades ou para uso e representação de reis e imperadores. Não porque o púrpura tivesse um significado especial, mas porque o pigmento era muito caro e difícil de obter. Como as classes mais desfavorecidas não podiam adquirir tecidos com essas cores, vestiam as outras, as que eram de fácil obtenção e circulação comum. Criou-se logo aí a separação entre quem era bom e especial e entre quem era irrelevante. A força das classes mais pobres nunca foi suficiente para destronar este tipo de pensamento (o mesmo se aplicava à comida).
Hoje, quem determina as modas não é o poder religioso ou político, nem mesmo o poder económico, mas a indústria de tendências. São eles, os artistas, os escritores, os estilistas e os académicos em geral que dizem aquilo que se vai usar a todos os níveis. São também eles que determinam que as imagens do moinho, do Jeff Koons e as restantes (e tantas outras que não coloquei aqui), são kitsch, que os seus executores são kitsch, que os produtores e os fotógrafos são kitsch, mas que quem usufrui delas com verdadeiro prazer é apenas uma pessoa sem gosto. Porque não ter gosto e ser kitsch é diferente e ser kitsch pode ser visto como uma excentricidade reversível, enquanto o gosto, diz-se, ou nasce connosco ou... não.

Jeff Koons
Winter Bears
1988
Tate Gallery

A palavra - já devem ter lido isto um cento de vezes - tem várias origens. Uns dizem que a palavra remonta ao século XIX quando num episódio mal explicado, uns turistas americanos de visita a Munique pretenderam comprar uma peça de arte. Não queriam no entanto gastar muito e por isso preferiram comprar o esquisso do que a obra acabada. Esquisso em inglês é "sketch". A palavra poderia ter vindo daí para designar as obras de arte que não sendo as reais, satisfazem os gostos dos menos exigentes, por serem menos onerosas. Havia também já no século XVIII a palavra "kitschen" para designar uma actividade invulgar como apanhar lama na estrada ou mesmo pintar móveis com a intenção que pareçam antigos. (a segunda actividade percebo de que forma se relaciona com kitsch, mas a primeira não). Há ainda outras origens ou outras palavras que podem ter originado esta tal como o verbo "vekitschen" que queria dizer "vender a preços baixos". Como podemos ver o kitsch está na sua origem associado à dialéctica rico/pobre, caro/barato.

quarto old mill no Madonna Inn, San Luis Obispo, California (mais quartos aqui)

O kitsch tanto pode ser o que Thomas Kinkade faz (no seu site podemos ler que ele é o artista americano mais coleccionável e que a industria associada ao seu nome que vende reproduções fotográficas retocadas a pinceladas move milhões de dólares anualmente. Segundo a lógica isto já faria de Kinkade um tipo com bom gosto), como o que faziam as ditaduras de Estaline e Hitler ao considerar degenerada toda a arte que não era a sua e criando mesmo uma nova estética com valores muito bem definidos e que glorificavam, invariavelmente os próprios regimes. Neste caso e mais uma vez, segundo a lógica, o poder deveria ter bom gosto, mas ao criar um sistema restrito de signos (e ao imitarem a imitação - porque se a arte já é imitação da natureza, a arte kitsch é imitação da imitação da natureza), a arte ariana e a estalinista tornam-se kitsch.

Liberace

A própria separação entre arte e arte kitsch não é justa e pode mesmo dizer-se que é tendenciosa pois uma é Arte, como Deus e a outra é arte kitsch, como por exemplo, o Deus dos Muçulmanos. Ideia semelhante tinha o crítico de arte Clement Greenberg que defendia que a arte kitsch pode ser um divertimento para os que procuram o prazer estético imediato ou que não têm grandes exigências em relação ao mesmo, mas podia ser perigoso para os mais inocentes. A grande diferença entre quem gosta de kitsch e quem nem gosta, é a tolerância. Os adeptos da "grande arte", da arte dos museus, da arte com valor inquestionável, a arte validada pelos críticos, não aceita o kitsch, despreza o kitsch e age da mesma forma para com os cultores do kitsch. Estes por seu lado tanto apreciam o kitsch como a "grande arte". A cultura visual voluntária faz por cada um deles o seu papel. Outra ideia e que vem corroborar a primeira frase deste texto ("A bem dizer, assim que ninguém nos ouça, toda a arte é kitsch porque a arte não é o objecto representado, mas sim a representação do objecto.") é a de Schopenhauer quando nos seus ensaios define a diferença entre "artístico" e "interessante". Para o filósofo artístico poderia ser tudo, mas interessante estava reservado para os especiais. Tal como a diferença entre único e singular: todos somos únicos, mas nem todos somos singulares. A sua luta era contra a arte setecentista que imitava tão bem a natureza que nos fazia crer que as naturezas mortas não eram planas, mas tridimensionais e provocavam em nós sensações semelhantes ao que é retratado em si. Esta já é uma visão mais extrema, uma vez que cria, entre a arte ainda mais um nicho de diferença entre a verdadeira e a kitsch.

Adolphe-William Bouguereau
Child at Bath
1886
Henry Art Gallery, University of Washington


O que distingue então o kitsch da outra arte? Primeiro, quem faz, quem compra, quem gosta. Depois, o facto de o kitsch levar consigo despojos de outras obras de arte tentando provocar em quem vê a mesma sensação daquilo que está na génese de cada um dos despojos: Koons utiliza a cerâmica, os quartos no Madonna Inn têm sempre um tema que é transposto literalmente para o espaço, Liberace é uma mistura entre Drag Queen e gala de entrega de prémios (veja-se a enfadonha entrevista que concedeu a Edward R. Murrow no filme "Good night and Good Luck") e os quadros apresentados são versões de quadros de pintores clássicos e pintores impressionistas.

Giovanni Boldini
Testa di giovane su fondo rosa
1912
Colecção Privada
- não vai mais vinho para essa mesa -

"reentré política", nunca percebi essa expressão, nem quando aplicada à política nem ao que quer que fosse, principalmente depois das "férias grandes". é que a palavra reentré implica uma saída e que eu saiba, à excepção da saída física, a crise não abandonou os tachos, nem as carteiras, nem as contas bancárias, os políticos não deixaram de mandar bitaites, os assaltantes não deixaram de assaltar, as reportagens ocas não deixaram de ser reportadas, os escândalos não se moralizaram. o país reentra naquilo de que nunca saiu.
a propósito... onde reentrou Portas tendo como cenário um frigorifico e como companhia musical um grilo a cantar?

sexta-feira, setembro 19, 2008

- original soundtrack -


Dear Robin, Hope you don't mind me writing, it's just that there's more than one question I need to ask you. If you're so ant-fashion why not wear flares, instead of dressing down all the same. It's just that looking like that I can express my dissatisfaction.
Dear Robin, let me explain, though you'd never see in a million years. Keep quoting cabaret, Berlin, Burroughs, J. G. Ballard, Duchampe, Beauvoir, Kerouac, Kirkegaard, Michael Rennie. I don't believe you really like Frank Sinatra.
Dear Robin, you're always so happy, how the hell do you get your inspiration? You're like a dumb patriot. If you're supposed to be so angry, why don't you fight and let me benefit from your right? Don't you know the only way to change things is to shoot the men who arrange things.
Dear Robin, I would explain, but you'd never see in a million years. Well you've made your rules but we don't know that game, perhaps I'd listen to your records but your logic's far too lame and I'd only waste three valuable minutes of my life with your insincerity.
You see Robin I'm just searching for the young soul rebels and I can't find them anywhere. Where have you hidden them? Maybe we should welcome the new soul vision.
(There, there my dear, Dexy's Midnight Runners)
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

[é a segunda vez que escrevo este post e desculpem lá se não está como é costume, mas detesto ter de dizer ou escrever a mesma coisa duas vezes]

antes e depois ou "como este post já me está a dar sono porque passar a ferro faz sono. Pelo menos a mim. Não parece uma imagem típica de Degas, nem do Impressionismo. Os pintores da vida real não gostavam de muita realidade: Monet preferia os nenúfares, Renoir as senhoras rechonchudas, Degas as bailarinas e os cavalos e só Manet parece encaixar-se nas cenas da vida mais real. Mas Degas tem algumas telas dedicadas ao costumeiro como “The Absinthe Drinker” ou “Rape”. No entanto há que reconhecer que as engomadeiras mais depressa serviriam os ideiais de Lautrec ou de Daumier do que (da maior parte) dos bens nascidos pintores impressionistas. Mas uma vez cá chegados há que falar no assunto. Na arte, seja ela impressionista ou realista, as pessoas que trabalham (os semeadores, os homens que partem pedra, as mulheres que engomam) são retratadas como muito simples e robustas, não só porque de facto deviam viver na simplicidade e porque o seu trabalho obrigava a condição física condizente, mas também no trato pictórico que levam que é quase sempre muito abonatório. Porque estão revestidos de uma inocência e ausência de cupidez que a sua condição orienta, são vistos como criaturas ligadas à Terra e por isso, caras aos pintores. É ver como é diferente a luz de os semeadores de Millet e a luz dada ao retrato de uma dama nobre que com a sua pele de ébano e elegância extrema está mais perto de um encontro com Deus do que com as divindades cnóticas. Esta inocência nem permite aos trabalhadores, aos mais pobres, aos que sofrem desejar ter aquilo que produzem ou ser como aqueles para quem produzem. Para este "antes e depois" teremos de tomar como ponto de comparação no "antes", não a pintura inteira, mas apenas a mulher que se dobra sobre o ferro. A sua colega no entanto é parte essencial da pintura para perceber a diferença que existe entre esta e o "depois". Enquanto uma das mulheres ainda engoma, a outra relaxa: boceja (ou canta?!), leva a mão à nuca como que a esticar-se, endireita as costas e com uma das mãos agarra na garrafa de vinho. Não fiquem chocados os leitores: os tempos eram outros, as pessoas madrugavam, tomavam as suas refeições a horas muito diferentes daquilo que se faz hoje e os pratos não eram compostos da mesma forma. As necessidades laborais para uns e o status para outros, bem como a dificuldade em encontrar alimento e os hábitos, fazia com que os alimentos fossem para uns, escassos e até de fraca qualidade nutricional, e para outros, em abundância, mas nem por isso saudável. Acreditava-se que o vinho era uma força regeneradora, que dava força e ajudava na convalescença, bem como poderia colmatar as carências de outros alimentos. Ainda hoje se acredita, em muitas aldeias do interior, que as sopas de cavalo cansado são um bom pequeno-almoço e o mata-bicho vê-se em meios mais urbanos. A outra engomadeira, faz pressão com todo o corpo no ferro, como se estivesse a alisar a roupa, não através do ferro e do fogo, mas através do seu próprio peso. A tarefa é duplamente árdua: os ferros não tinham a tecnologia de hoje (era necessário acender o lume - daí a importância dada às lareiras e ao lume no centro da cozinha e da vida familiar. mal nascia o dia acender o lume era a primeira tarefa e alimentá-lo até ao final da jorna era a segunda tarefa. isto porque com o fogo cozinhava-se, aquecia-se água para a lavar, e alimentava-se o ferro - retirar as brasas e colocá-las na gaveta inferior do ferro) e para além de pesados, os ferros tinham de estar sempre a ser alimentados e deviam sujar bastante a roupa, o que implicava a atenção e a força constantes.
Picasso pintou esta engomadeira, se não a mesma pelo menos uma inspirada na de Degas, durante o seu período azul (que daria um bom anúncio a tampões!) e revestiu-a dos mesmos tons melancólicos e tristes que caracterizavam as figuras desta sua fase. A engomadeira de Picasso é a antecipação do pathos humano que Picasso viria a retratar tantas vezes, e outras não, mas que nos é sempre sugerido pela técnica angulosa. No entanto, a engomadeira de Picasso distingue-se da de Degas em dois aspectos: ela é muito mais etérea (malgré moi, parece, segundo li, que se aproxima muito e propositadamente das figuras de El Greco), e eleva-se aos céus como uma chama, um sopro de vida azul. Ela quase não parece existir, fundindo-se com o fundo e tão irreal. Por outro lado, esta engomadeira é tristeza e trabalho, é pedido de descanso eterno enquanto a de Degas, não obstante o trabalho que está a realizar tem a possibilidade de divertimento mal acabe o trabalho que está a realizar. Não acredito que uma das engomadeiras acabe, beba o vinho e a outra continue entre lamentos a engomar roupa sem fim. As duas irão sentar-se e conversar e se calhar catar piolhos e dar um jeito no cabelo. A engomadeira de Picasso é uma mulher sozinha que serve os propósitos do pintor. Não obstante a possível identificação de Picasso com estas figuras, as figuras dos pobres, dos trabalhadores e dos desfavorecidos pois ele próprio teve um início de vida conturbado e recheado de dificuldades, a verdade é que os pobres e os oprimidos desde sempre foram o panegírico social de que os artistas se serviam para cumprirem o seu papel de alertar para a realidade envolvente.

Edgar Degas
Women Ironing
c. 1884-86
Musée d'Orsay, Paris


Picasso
Woman Ironing
1904
Solomon R. Guggenheim Museum
- não vai mais vinho para essa mesa -

bem podia vir. e do bom: bonum vinum laetificat cor hominis.
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

Os dois melhores exemplos do estado do cinema português são este filme e a sala absolutamente vazia quando o fui ver, bem como o rosto da rapariga quando lhe pedi um bilhete para "Aquele querido mês de Agosto". Não era filme para intlectualóides, nem por saudosos dos bailaricos e das imagens da terra e da música portuguesa. Talvez a rapariga da bilheteira não percebesse, como eu, qual a razão para um sala vazia numa segunda-feira à tarde. Vamos ao cinema porque gostamos dos actores, dos realizadores, porque alguém que muito estimamos nos falou bem do filme, porque gostamos do tipo de história anunciada ou porque lemos as críticas. Desta vez, nada de actores conhecidos e lamento a minha ignorância, mas também não conhecia o realizador. Ninguém das minhas "ralações" tinha ido ver o filme, a história não se descrevia em nenhum jornal ou revista, em nenhum site. As definições eram sempre esquivas. Fui pela crítica. E acho que fiz muito bem.

O princípio é uma vertigem. Começamos a mexer na cadeira, principalmente quando as peças de dominó se desfazem e pensamos "ok, já estou a perceber que as analogias são muitas". Esse é aliás o único "pecado" do filme, uma vez que a minha cabeça não teve a capacidade para assimilar todas essas analogias. O filme que também foi chamado de documentário e de ficção, é uma matrioska de três bonecas: é um filme que conta a história de um filme que conta a história de algo que não sendo um filme, deu um filme. (Numa das últimas cenas, uma câmara em plano mais elevado filma uma câmara e dois operadores de câmara em plano inferior que filmam a rapariga que canta.) Tudo começa com um realizador que quer fazer um filme "com tudo a que tem direito": tem um guião, quer actores, tem de fazer castings, mas não se apercebe que enquanto vai fazendo o documentário sobre a localidade que está a filmar (atenção que ninguém sabe qual o uso a dar a essas imagens, se são de facto de um documentário, se pertencem até a outro filme; ou seja, as dúvidas do realizador e da sua equipa vão sendo alternadas com histórias da vila, histórias das pessoas que lá moram, os seus feitos, frases feitas e outras que, feitas na hora nos arrancam uma gargalhada como aquele homem que fala junto de um lagar sobre um vizinho assassino e conta, entretanto que a mulher é que o agarrou senão ele continuava a ser um namoradeiro, isto, em frente à mulher), o que recebe de volta desse documentário tem um simétrico ou mesmo um coincidente no filme. É como se tivéssemos uma folha de papel pintada e a dobrássemos a meio com a tinta a tocar-se. Quando abrimos a folha, o que está numa metade, está na outra. O momento da dobra é quando boy meets girl. Até há pouco a girl estava a fazer de vigia no posto de observação da floresta e a falar para o documentário e depois conhece o rapaz (vindo de Lisboa, mas como ida marcada para o Luxemburgo, se não me engano) por quem se apaixona. A partir dai revive-se toda a história do documentário, que como já vimos não foi contada toda de uma vez e vai pontuando a "segunda parte do filme", mas há cenas em comum: o beijo em cima da ponte, tal como aquele rapaz de quem todos falavam que se atirava da ponte e cujo nome não recordo neste momento; o momento do acidente da carrinha dos músicos que tem equivalente ao episódio do vizinho assassino, e só para concluir o momento em que todos se juntam da adega (?) do pai da rapariga e que em tudo se parece com aquele outro em que a vila se junta para assistir à projecção de um filme que contava como protagonistas com os próprios habitantes da aldeia. Tudo tem o seu simétrico no filme.

Logo no início é dito algo muito importante sobre a música: só a classifica de pimba quem quer ou quem tem ouvido preconceituoso porque ela é música popular portuguesa. Os mesmos versos ou muito semelhantes, ou até piores podem ser ouvidos em inglês em músicas de cantores todos os dias cantarolados e premiados. Se não acreditarem basta tentar traduzi-los. Esta é também a prova que assim como o músico em questão pensa nas dificuldades de fazer vingar a sua música, também o realizador se vê a braços com um país que não valoriza o seu cinema. Por outro lado e como nos mostra o fim do filme, a música "pimba" faz todo o sentido para quem a ouve naquele contexto. Não é a história do Portugal rural, nem a história dos emigrantes (os homens não pavoneiam a voiture, as raparigas são como as outras, mas com sotaque, as histórias entre as personagens são as mesmas que nas cidades: incesto, lares desfeitos, paixões impossíveis, traições. Mas situá-la no interior e no mês preferido dos emigrantes, faz com que toda música faça sentido de uma forma muito simples. Ninguém pode dizer que nunca esteve lá.

quarta-feira, setembro 17, 2008

- o carteiro -

meu amigos, desculpem mas hoje estou mais para paté de tainha do que para caviar. vemo-nos amanhã.

terça-feira, setembro 16, 2008

- original soundtrack -

A casa noturna
Se mantém à noite
Em clima de festa
De longe se ouvem
Vários instrumentos
De cordas e metais
Boémios bebendo
Cantando e dançando
Ao som da orquestra
Um som estridente
Que lhe deu o nome
De Som de Cristal

A casa noturna
Boite falada
Lugar de má fama
Com as portas abertas
Durante a noite
Entra quem quiser
Porém nessa noite
Sem que eu esperasse
Entrou uma dama
Fiquei abismado
Porque se tratava
De minha mulher

Ela se cansou
De dormir sozinha
Esperando por mim
E nessa noite
Resolveu dar fim
Na sua longa e maldita espera
Ela não quis mais
Levar a vida de mulher honrada
Se na verdade
Não adiantou nada
Ser mulher direita
Conforme ela era
Ela decidiu
Abandonar o papel de esposa
Para viver entre as mariposas
Que fazem ponto
Naquele lugar
A minha vida
Muito mais errante
Agora continua
Transformei a esposa
Em mulher da rua
Na mais nova dama
Do Som de Cristal
(...)

(Som de Cristal, Marante)
- não vai mais vinho para essa mesa -

ainda bem que é terça-feira. já não me apetecia mais segunda.

- ars longa, vita brevis -
hipócrates
antes e depois ou "como é a diagonal, estúpido. Este quadro de Delacroix, executado para o Salon de 1827, mas exibido apenas no ano seguinte e que não granjeou opiniões positivas dos críticos. Diziam tratar-se de uma imitação sem espírito e técnica de Rubens. Entre as opiniões negativas dos críticos destacava-se a posição de Theophile Thoré que achou o quadro muito "refrescante" como se fosse uma aguarela inglesa. O tema da Morte de Sardanapalus é muitas vezes associada a uma peça de Lord Byron, "Sardanapalus", embora não exista nada na mesma que fale da morte das concubinas do rei. A história de Byron (não há disto na net, só nos livros) é baseada na história do autor grego Diodorus que retratou a vida do rei assírio no século I d.C. O autor fala de um rei que defendeu a sua cidade dos inimigos durante três anos, até uma profecia relativa ao rio Eufrates ser cumprida. Segundo a profecia as águas do rio iriam subir de tal forma que derrubariam o muro da cidade e o rei teria de admitir a derrota. Na realidade e história de Sardanapalus é bem menos heróica. Dizia-se que era um hedonista e irresponsável e a frase que o definia seria: "já comi, já bebi e já me diverti; nada me apraz mais do que uma palha" (o que quer dizer qualquer coisa como é tudo muito engraçado, mas não me diz nada). Diodorus também descreve o rei, fora do campo de batalha como um homem vaidoso, rodeado de luxo e mulheres e ele próprio um ser efeminado que se pintava e vestia como uma mulher e usava cosméticos na pela para que esta parecesse mais branca. É este tipo de homem, que nada agrada à burguesia do romantismo, que agrada aos poetas românticos ingleses e franceses, bem como aos pintores. Nada na escrita de Diodorus nos diz que Sardanapalus mandou assassinar as suas concubinas, nem isso acontece no livro de Byron, mas é assim que Delacroix retrata o rei. Baudelaire disse que Delacroix sofria de "molochismo artístico"; ou seja, gostava de pintar a dor e o derrame de sangue. (Moloch designa um sacrifício hebreu, mas em linguagem corrente, em inglês, refere-se à pessoa ou coisa que exige sacrifícios) Mas essa tendência pode ser apenas uma tendência dentro do próprio romantismo e não uma tendência do autor. Seja como for, na visão de Delacroix Sardanapalus manda o eunucos do palácio executar as suas amantes, dos seus pajens e até dos seus animais preferidos (vemos na pinturas cavalos, mas fala-se também de cães). O que torna esta obra algo importante é o facto de, depois do barroco e do maneirismo, depois do retorno ao pensamento racional com o realismo, o romantismo aparecer como um revivalismo do barroco através do uso de diagonais tão dinâmicas.

Muitos não identificam a fotografia de Jeff Wall com o quadro de Delacroix, mas há até semelhanças de contexto. jeff Wall captou este "Quarto destruído" em 1978, quando a sua esposa Jeannette o trocou por outro homem. O quarto destruído mostra um vasto conjunto de roupa de mulher, espalhado por todo o lado. A forma como as peças se encontram no quarto, ou melhor, a presença de peças de roupa femininas num quarto destruído leva-nos a pensar que a violência foi contra o género em si, contra a mulher e não até contra outra pessoa que não daquele sexo. Poderia ser um quarto assaltado, mas não é isso que vemos de imediato. E não foi isso que a crítica de arte feminina viu de imediato, não obstante a roupa estar em perfeitas condições (Jeff Wall pediu as roupas emprestadas à mulher para tirar a fotografia, enquanto as coisas entre eles estavam mais ou menos bem - em briga de marido e mulher não metas a colher! - e o quarto ser declaradamente um estúdio (repare-se na porta e na janela). A influência de Delacroix nota-se então no tema (uma vez que Sardanapalus mandou matar as suas mulheres depois de ter sido derrotado) e na diagonal que é semelhante à do quadro de Delacroix.

Eugène Delacroix
The Death of Sardanapalus
1827
Musée du Louvre, Paris


Jeff Wall
The Destroyed R
oom
1978
- não vai mais vinho para essa mesa -

(a dar explicações aos "Novas Oportunidades")
- professora nós queríamos...
- trate-me pelo meu nome, por favor.
- desculpe.
- não precisa de pedir desculpa, mas não sou professora e não são necessárias formalidades.
- nós queríamos que nos ajudasse a desenho técnico.
- sim... quais são os objectivos do programa?
- é desenhar coisas assim.
- humm... é o básico. não temos muito tempo, mas sendo o básico, pode ser que se consiga qualquer coisa... têm aristo, lápis e borracha de pão?
- borracha de pão?
- ok, uma borracha normal serve.
- o que é um aristo?
- é isto (mostra o aristo). substitui a régua, o esquadro e o transferidor. e algumas dores de mãos.
- hã?
- era uma piada.
- nós só temos régua e esquadro.
- não têm de comprar, mas dá mais jeito. têm o essencial, não é? sabem o que é uma recta, uma semi-recta e um segmento de recta?
- sim, mas eu não consigo segurar muito bem no lápis e na régua ao mesmo tempo. fico toda a tremer.
- a tremer?
- sim.
- é só uma régua. e é a sua régua. não vai apanhar uma reguada nem nada disso. é a XXXXX que domina o desenho e o material e não o contrário.
- está bem.
- não se preocupe. isto é muito fácil. quero me me desenhem, ao acaso na folha, uma recta.
- com quantos centímentros?
- o carteiro -

"Lá em cima está o tiro-liro-lito/Cá embaixo está o tiro-liro-ló"
Adolphe Menzel
The flute concert of Frederick the Great at Sanssouci
1850-1852
Staatliche Museen, Berlim

O homem no centro da composição é nem mais nem menos do que Frederico, O grande, que não sei se se escreve com "letra grande". Eram tempos diferentes. Qual Nero, também Frederico achava que tinha "queda" para a música, mas quem tinha que pingar nos concertos eram os convidados. Frederico era considerado um monarca muito liberal para a época, sendo da opinião de que cada pessoa deveria viver de acordo com as suas própria regras no que à religião diz respeito, mas relativamente a gostos musicais, era um tirano: apenas o seu gosto prevalecia. E Frederico gostava as melodias pré-clássicas de tal forma que na Opera House em Berlim, apenas as peças antigas eram tocadas. O povo morria de tédio, mas fingia que adorava. Certo dia, numa das suas viagens pela Holanda, o rei Frederico decide permanecer anónimo. Sem paparazzi, portanto. Só para divertimento próprio. Decidiu fazer uma tournée como flautista (tournée talvez não seja o melhor termo, mas resolveu dar uns concertos pelas redondezas) e numa estalagem em Amesterdão pediu vol-au-vent. Mas o estalajadeiro achou que o rei tinha cara de pobre e temendo uma conta pendurada, não lhe serviu o pedido. Os colegas do rei disseram ao estalajadeiro que aquele homem conseguia em poucos minutos fazer dinheiro para dez vol-au-vents só com a sua música e o estalajadeiro respondeu que pois então os fizesse. E Frederico tocou.

Esta cena, no entanto, retrata apenas o espírito do rei e como à volta dele se criaram lendas. No quadro de Menzel (pintado cerca de um século após o concerto), o rei está numa sala com amigos e não numa estalagem. o quarto é forrado a dourado e sendo este um monarca alemão, trata-se de uma decoração ao melhor estilo rococó alemão. A fama musical do rei é lendária e deu azo a anedotas, pois mesmo que fosse muito mau flautista nunca nada o revelaria. Mas há sucessos neste percurso musical do monarca: em 1844 Meyerbeer compõe o libreto para obra denominada "An Army Camp in Silesi" que retrata no fundo um episódio da vida do rei.


No primeiro quadrado notamos a presença de três homens. O facto de estarem de pé indica o respeito pelo rei e pelas normas, pois segundo o protocolo, enquanto o rei estivesse de pé, ninguém, do sexo masculino, poderia estar sentado. Era uma honra ser convidado para um recital e mesmo obrigados, era bom que cada um dos convidados fosse pois a desfeita poderia custar caro. Perdoem-me esta observação, mas o homem mais da esquerda é muito parecido com o Paulo Portas. Tem aquela expressão beatífica que caracteriza o homem depois de cada sessão de branqueamento dentário. Chamava-se no entanto Barão Jacob Friedrich von Bielfeld ("foge cão que te fazem barão, para onde se me fazem visconde"- a monarquia alemã também gostava de distribuir títulos), era escritor e cortesão (é o que hoje se chamaria um "puxa-saco"). Mais atrás, a olhar para o céu está uma figura muito importante da história da matemática, mas também da arte da conversação, do entretenimento e do saber. Trata-se de Pierre Louis Moreau de Maupertuis o matemático e geógrafo que pairava na corte do rei. Foi o primeiro cientista a mostrar que a Terra era achatada nos pólos e mostrou isso a Frederico que o nomeou Presidente da Academia de Ciências. Diz-se que rivalizava e entrava em acesas discussões com Voltaire (os dois eram oriundos da mesma cidade: Potsdam). E como é que os génios rivalizam? Tentam publicar o maior número de artigos que conseguirem sobre matérias em que possam superar o outro génio. Ou então, como foi o caso, aguardam um deslize do outro. Quem deslizou foi Voltaire que insultou o rei, deixando espaço livre para o sempre (des)atento Maupertuis. O terceiro homem (Graham Greene? tu aqui?) é o chamado "furão"; é o tipo que está sempre presente, é solícito e a sua principal actividade é auto promover-se. Tinha por onde, uma vez que durante vários anos o conde Gustav Adolf von Gotter serviu como embaixador prussiano em Viena. Por isso tornou-se Lord Marshall da corte de Frederico. Frederico tinha seis irmãos e nenhum deles está presente na pintura, o que quer dizer que mais importante que o cargo que se tinha na corte, para cair nas boas graças de Frederico, era necessário ser agradável.


Como Frederico não mantinha boas relações com a sua família, incluindo com a esposa que morava em Berlim enquanto Frederico habitava o palácio de Potsdam, a senhora que se encontra dentro do segundo quadrado a contar da esquerda é a irmã de Frederico II, Wilhelmina, e a única excepção ao que acima foi dito. Aqui, no caso de Wilhelmina, não conta se ela é agradável ou não, se ela bajula o seu irmão ou não. Três anos mais velha que Frederico foi ela quem o protegeu da educação rígida do pai e da atmosfera austera da corte. Por isso ela está inquestionavelmente na vida de Frederico e enfadada ou não, assiste ao concerto. Ela é a única mulher que Frederico realmente respeita (Frederico nunca teve amantes) e Menzel dá-lhe, no quadro, a posição que lhe é devida; no centro da composição, local que estava reservado para a rainha. Wilhelmina está bastante iluminada na pintura, mas não é a única, uma vez que o pintor optou por colocar as senhoras sob a luz dos candelabros e os senhores na obscuridade.


No quadrado mais a direita podemos ver um homem ao piano, um dos poucos que Frederico prezava. Apesar do seu gosto pela música, era um homem de trato difícil e nem toda a gente o agradava. Entre aqueles cuja presença privilegiava estava o homem mais à direita da composição, de pé, de seu nome Johann Joachim Quantz e professor de flauta do rei. À espineta, por exemplo, está um dos homens que Frederico menos prezava. Chamava-se Carl Philipp Emanuel, era filho de Bach e sente-se pela sua expressão que não se encontra à vontade para desempenhar o papel de vassalo musical do rei. Parece que está à espera do momento para tocar, mas o seu olhar pedre-se no vazio e na mão não há a firmeza de quem se prepara para tocar. Frederico não "morria de amores" por ele, mas sempre era um Bach na corte. Carl Philipp Emanuel por seu lado não morria de amores por aquela prisão e de facto nem pertencia à coutada do rei, mas a mulher e os filhos registados nascidos prussianos, estavam sob o jugo da rainha que era o mesmo que dizer, sob o jugo do rei.


A escolha do tema por parte de Menzel não é aleatória. Ao pintar um rei em tempo de paz, a conviver com os seus súbditos, a divertir-se e a divertir os outros, numa atmosfera agradável, Menzel pretende dizer que tudo está bem. Que a situação política da Alemanha não estava assim tão má, que a humilhação dos alemães por parte de Napoleão não tinha afectado em nada a nação germânica. A imagem de um rei que toca flauta e provavelmente, música alemã, pode ter o poder de unir num sentimento nacionalista as diferentes facções em que o reino estava dividido. è também uma imagem muito forte politicamente porque a música desde sempre esteve presente na vida das famílias alemãs: faziam-se pequenos concertos e recitais caseiros. Menzel torna, através da música, o rei um ser acessível e ao juntar-lhe a presença feminina faz crer que aquela se trata de uma cena familiar. Faz dele um monarca burguês, o que era um sacrilégio para a altura.