terça-feira, setembro 16, 2008

- o carteiro -

"Lá em cima está o tiro-liro-lito/Cá embaixo está o tiro-liro-ló"
Adolphe Menzel
The flute concert of Frederick the Great at Sanssouci
1850-1852
Staatliche Museen, Berlim

O homem no centro da composição é nem mais nem menos do que Frederico, O grande, que não sei se se escreve com "letra grande". Eram tempos diferentes. Qual Nero, também Frederico achava que tinha "queda" para a música, mas quem tinha que pingar nos concertos eram os convidados. Frederico era considerado um monarca muito liberal para a época, sendo da opinião de que cada pessoa deveria viver de acordo com as suas própria regras no que à religião diz respeito, mas relativamente a gostos musicais, era um tirano: apenas o seu gosto prevalecia. E Frederico gostava as melodias pré-clássicas de tal forma que na Opera House em Berlim, apenas as peças antigas eram tocadas. O povo morria de tédio, mas fingia que adorava. Certo dia, numa das suas viagens pela Holanda, o rei Frederico decide permanecer anónimo. Sem paparazzi, portanto. Só para divertimento próprio. Decidiu fazer uma tournée como flautista (tournée talvez não seja o melhor termo, mas resolveu dar uns concertos pelas redondezas) e numa estalagem em Amesterdão pediu vol-au-vent. Mas o estalajadeiro achou que o rei tinha cara de pobre e temendo uma conta pendurada, não lhe serviu o pedido. Os colegas do rei disseram ao estalajadeiro que aquele homem conseguia em poucos minutos fazer dinheiro para dez vol-au-vents só com a sua música e o estalajadeiro respondeu que pois então os fizesse. E Frederico tocou.

Esta cena, no entanto, retrata apenas o espírito do rei e como à volta dele se criaram lendas. No quadro de Menzel (pintado cerca de um século após o concerto), o rei está numa sala com amigos e não numa estalagem. o quarto é forrado a dourado e sendo este um monarca alemão, trata-se de uma decoração ao melhor estilo rococó alemão. A fama musical do rei é lendária e deu azo a anedotas, pois mesmo que fosse muito mau flautista nunca nada o revelaria. Mas há sucessos neste percurso musical do monarca: em 1844 Meyerbeer compõe o libreto para obra denominada "An Army Camp in Silesi" que retrata no fundo um episódio da vida do rei.


No primeiro quadrado notamos a presença de três homens. O facto de estarem de pé indica o respeito pelo rei e pelas normas, pois segundo o protocolo, enquanto o rei estivesse de pé, ninguém, do sexo masculino, poderia estar sentado. Era uma honra ser convidado para um recital e mesmo obrigados, era bom que cada um dos convidados fosse pois a desfeita poderia custar caro. Perdoem-me esta observação, mas o homem mais da esquerda é muito parecido com o Paulo Portas. Tem aquela expressão beatífica que caracteriza o homem depois de cada sessão de branqueamento dentário. Chamava-se no entanto Barão Jacob Friedrich von Bielfeld ("foge cão que te fazem barão, para onde se me fazem visconde"- a monarquia alemã também gostava de distribuir títulos), era escritor e cortesão (é o que hoje se chamaria um "puxa-saco"). Mais atrás, a olhar para o céu está uma figura muito importante da história da matemática, mas também da arte da conversação, do entretenimento e do saber. Trata-se de Pierre Louis Moreau de Maupertuis o matemático e geógrafo que pairava na corte do rei. Foi o primeiro cientista a mostrar que a Terra era achatada nos pólos e mostrou isso a Frederico que o nomeou Presidente da Academia de Ciências. Diz-se que rivalizava e entrava em acesas discussões com Voltaire (os dois eram oriundos da mesma cidade: Potsdam). E como é que os génios rivalizam? Tentam publicar o maior número de artigos que conseguirem sobre matérias em que possam superar o outro génio. Ou então, como foi o caso, aguardam um deslize do outro. Quem deslizou foi Voltaire que insultou o rei, deixando espaço livre para o sempre (des)atento Maupertuis. O terceiro homem (Graham Greene? tu aqui?) é o chamado "furão"; é o tipo que está sempre presente, é solícito e a sua principal actividade é auto promover-se. Tinha por onde, uma vez que durante vários anos o conde Gustav Adolf von Gotter serviu como embaixador prussiano em Viena. Por isso tornou-se Lord Marshall da corte de Frederico. Frederico tinha seis irmãos e nenhum deles está presente na pintura, o que quer dizer que mais importante que o cargo que se tinha na corte, para cair nas boas graças de Frederico, era necessário ser agradável.


Como Frederico não mantinha boas relações com a sua família, incluindo com a esposa que morava em Berlim enquanto Frederico habitava o palácio de Potsdam, a senhora que se encontra dentro do segundo quadrado a contar da esquerda é a irmã de Frederico II, Wilhelmina, e a única excepção ao que acima foi dito. Aqui, no caso de Wilhelmina, não conta se ela é agradável ou não, se ela bajula o seu irmão ou não. Três anos mais velha que Frederico foi ela quem o protegeu da educação rígida do pai e da atmosfera austera da corte. Por isso ela está inquestionavelmente na vida de Frederico e enfadada ou não, assiste ao concerto. Ela é a única mulher que Frederico realmente respeita (Frederico nunca teve amantes) e Menzel dá-lhe, no quadro, a posição que lhe é devida; no centro da composição, local que estava reservado para a rainha. Wilhelmina está bastante iluminada na pintura, mas não é a única, uma vez que o pintor optou por colocar as senhoras sob a luz dos candelabros e os senhores na obscuridade.


No quadrado mais a direita podemos ver um homem ao piano, um dos poucos que Frederico prezava. Apesar do seu gosto pela música, era um homem de trato difícil e nem toda a gente o agradava. Entre aqueles cuja presença privilegiava estava o homem mais à direita da composição, de pé, de seu nome Johann Joachim Quantz e professor de flauta do rei. À espineta, por exemplo, está um dos homens que Frederico menos prezava. Chamava-se Carl Philipp Emanuel, era filho de Bach e sente-se pela sua expressão que não se encontra à vontade para desempenhar o papel de vassalo musical do rei. Parece que está à espera do momento para tocar, mas o seu olhar pedre-se no vazio e na mão não há a firmeza de quem se prepara para tocar. Frederico não "morria de amores" por ele, mas sempre era um Bach na corte. Carl Philipp Emanuel por seu lado não morria de amores por aquela prisão e de facto nem pertencia à coutada do rei, mas a mulher e os filhos registados nascidos prussianos, estavam sob o jugo da rainha que era o mesmo que dizer, sob o jugo do rei.


A escolha do tema por parte de Menzel não é aleatória. Ao pintar um rei em tempo de paz, a conviver com os seus súbditos, a divertir-se e a divertir os outros, numa atmosfera agradável, Menzel pretende dizer que tudo está bem. Que a situação política da Alemanha não estava assim tão má, que a humilhação dos alemães por parte de Napoleão não tinha afectado em nada a nação germânica. A imagem de um rei que toca flauta e provavelmente, música alemã, pode ter o poder de unir num sentimento nacionalista as diferentes facções em que o reino estava dividido. è também uma imagem muito forte politicamente porque a música desde sempre esteve presente na vida das famílias alemãs: faziam-se pequenos concertos e recitais caseiros. Menzel torna, através da música, o rei um ser acessível e ao juntar-lhe a presença feminina faz crer que aquela se trata de uma cena familiar. Faz dele um monarca burguês, o que era um sacrilégio para a altura.

4 Comments:

Blogger João Barbosa said...

gostei muito da análise e de ver o dr. Paulo Portas a olhar para o ar, mostrando a dentição alva.

16/9/08 11:25 da manhã  
Blogger AM said...

pois eu cá achei pior que ver o doutor Oliveira Salazar a assombrar nos apainelados das janelas verdes

16/9/08 10:07 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

gostei mesmo. instrutivo e interessante. só desconfio da origem germânica do voltaire, que julgo ter nascido em paris.

18/9/08 11:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Não gostei do "puxa-saco". Não serve um "lambe-botas"?

24/10/18 1:43 da tarde  

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