sexta-feira, setembro 12, 2008

- não vai mais vinho para essa mesa -


Vincent Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres

Quando a minha idade era outra que não esta a acédia atacava-me aos Domingos a meio da tarde. Não que tivesse a noção do dinheiro, das responsabilidades, do compromisso de levantar cedo para trabalhar, para cumprir e para ganhar um salário que mal dava para comprar divertimentos de Domingo. O meu spleen era de outra ordem: a idade não era muita, mas sabia do castigo divino que me esperava às segundas á tarde quando voltava da escola. Tudo porque o fim-de-semana tinha sido aquilo que se chama, um santo fim de semana. Era outra idade... Como esta tristeza sem razão que possa ser escalpelizada assim em praça pública (não muito pública, mas em breve será uma Plaza Mayor!), a chegar apenas a meio da tarde, havia tempo para um dos divertimentos preferidos do ano.
Calhava por alturas da Páscoa - depois é que percebi que só calhava por alturas da Páscoa e que era a Páscoa. A minha avó, que Deus a proteja pois não sei onde está, recebia em casa o compasso. Para mim o compasso era uma coisa diferente, era um objecto caro cujo nome, quando dito em contexto escolar causava calafrios aos meus pais. Mas havia o compasso da minha avó. E que ia às outras casas, está certo, mas era da minha avó porque achava que ali aquele pessoal do crucifixo e das rezas decoradas e transpiradas e das capinhas atadas com um fio a estrangular o pescoço, a gente do esforço em ter sapatos iguais, estava mesmo à vontade. A casa engalanava-se, a minha avó começava desde o dia anterior a tratar dos rojões, dos doces, do gado, de cozer a galinha caseira para a canja e do pão que ela amassava e cozia não sem antes benzer e proteger o alimento contra o mau olhado que com certeza existia porque estas coisas existem e valha-nos Deus "São Mamede te levede e Deus te acrescente" e pão no forno com uma cruz no peito da massa. Arejava também as mantas de veludo naftalinadas graças a um ano de protecção contra o uso que, segundo a minha avó, estragava as coisas. Tudo o que era novo era colocado dentro de um baú por isso não valia a pena oferecer àquela alma camisola ou travessão novo que era certo...ir para o baú.. Na casa havia duas casas: a "casa velha" e a "casa nova". Na casa velha não havia casa de banho, só um cubículo entre a casota do cão (sempre em renovação o canil da casa) e a pocilga, com uma tábua furada da qual saía um cheiro terrível. Era entrada directa no Inferno Meu Deus e quando a vontade obrigava só de nariz tapado. Geralmente respirava pela boca, mas quando chegava cá fora sentia necessidade de lavá-la. A "cozinha velha" era negra do fumo dos fogões a lenha, e do tecto que nunca soube de que era feito, pendia uma luz mortiça que após o almoço adormecia as mulheres. Na parte de baixo da casa nova, construída das mesmas paredes da casa velha, funcionava o dormitório velho onde velhos e novos dormiam todos juntos. As camas limpas e espaçosas dormiam vazias em cima das camas ataviadas. Era nesses aposentos cimeiros que as varandas se viravam para a rua que o compasso descia em Domingos de Páscoa e entrava pelo portão enfeitado de fetos e gerberas, que a minha avó não fazia por menos: "o que é bom para os pés de Nosso Senhor, é bom para nós". Nunca perguntei à minha avó, mas questionava-me se Deus merecia tantas honras. Afinal de contas ele só entrava lá em casa uma vez no ano e nem vinha sozinho, trazia gente para lhe limpar os pés no lugar onde cada um de nós dava o beijinho. Eu lavava a boca depois de vir do buraco com cheiro a Inferno, pensava, não havia razões para estarem a limpar os pés de um homem crescido. Mas era Cristo e Deus e mais não sei quem todos num só e eu temia-o. Temia-o quando ele vinha na cruz trazido por homens estrangulados na sua capinha de super-heróis rurais, mais curta, como se sabe que a capa de super herói urbano por uma questão prática. E temia-o ainda mais quando o padre, debaixo do solidéu em grinalda, seguro por seis homens, seis homens de vestes vermelho sangue de boi, o empunhava com a mão direita e com a esquerda brandia no altifalante ave-marias. As mantas serenas e mudas impunham o silêncio e respeitabilidade do verde azeitona e do preto vareja, solenizavam com as franjas hirtas e emolduravam grandes janelas com senhoras pequeninas que ali apoiavam o peito bem vestido depois de dias de labuta, enquanto atrás das paredes os calcanhares rachados tentavam fugir do buraco das meias.

A Páscoa era boa por causa dos doces do Café Castelo. Quase não valia a pena ir a casa da minha avó se não tivessem encomendado os doces. Eu que por mim falo, só ía lá por causa daqueles em forma de 8, cobertos com um açúcar muito fino. Tão fino pensava enquanto surripiava um antes dos senhores do compasso chegarem "não façam isso canalha que depois quando eles chegarem não há nada", "mas eles nunca comem, só bebem um cálice de vinho do Porto que o avô oferece", "mas parece mal", "mas são tão bons", que só por isso a Páscoa era melhor que o Natal. E tirava mais um e comendo no vão das escadas, enquanto esperava Nosso Senhor para lhe dar um beijo forçado, acompanhava o açúcar muito fino a desfazer-se na minha boca lavada e doce com o salmo sorrido: "à Vossa direita Senhor, a rainha dos Céus ornada do ouro mais fino". A Virgem também encomendava no Café Castelo.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

muito bonito. estive lá.

12/9/08 4:08 da tarde  
Blogger Belogue said...

no café? é que em casa da minha avó não deve ter sido! são os melhores biscoitos que conheço. nem as raivas me tiram do sério!

13/9/08 1:09 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

não, não, é COMO se tivesse estado lá :) mas naõ conheço os biscoitos. depois hás-de me dizer de qual café Castelo, que eu só conheço um, ali na rua quem vai do Rossio para a Igreja da Misericórdia, em SMF, será esse?

15/9/08 9:37 da manhã  
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