terça-feira, setembro 30, 2008

- o carteiro -

Eh pá, por aí não que bai dar uma ganda bolta… ou
Joga áis mãozinhais prá cima e vamô tjirá o pé do chão…
Este quadro de Ingres, bem como os outros que se lhe seguem no post, suscitaram-me uma dúvida: haveria, ou melhor, haverá um simbolismo na colocação das mãos da Virgem Maria, nas diferentes fases da sua vida, que no fundo se confundem com as da vida do seu filho? Nada fazia crer, segundo as pinturas que existisse, pelo menos neste caso em que estas quatro virgens mostram as palmas das mãos, uma matriz, uma vez que a de Ingres se refere a uma Virgem Corodada, a de Alessandro Alori, a uma Anunciação, a da Virgem do Sinal, a uma Madonna com o Menino e a de Gian Battista Piazetta a uma Nossa Senhora Imaculada. Cada uma delas estava pintada em momentos diferentes da vida da mãe de Cristo e em momentos diferentes da história do Cristianismo, logo esta iconologia não poderia ter sido determinada apenas por ordens superiores ou decisões de secretaria.

Ingres
Virgem Coroada
185
Tamenago Gallery, Tóquio


Alessandro Allori
Annuciation
1603
Galleria dell'Accademia, Florença

Anónimo
Virgem do Sinal
1732
Igreja da Transfiguração, Bolshye Sarachints, Ucrânia


Gian Battista Piazzetta
A Imaculada
século XVII
Pinacoteca de Parma

Não haveria anátema para quem não cumprisse o mandado uma vez que este, se existia, estava enraizado na memória colectiva, mais do que em qualquer escrito. Como garantir que as mãos da virgem se pintavam abertas para o espectador ou fechadas em oração para o anjo, se a Anunciação não refere nada disso, não fala da posição das suas mãos? Eu tinha no entanto a certeza que haveria aqui matéria de investigação, que estas mãos abertas de Ingres não eram apenas feitio, mas procuravam o efeito. O evangelho de São Lucas diz apenas isto: "E, no sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré,/A uma virgem desposada com um homem, cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria./E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres./E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras, e considerava que saudação seria esta./Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus./E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus./Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai;/E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim./E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço homem algum?/E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus./E eis que também Isabel, tua prima, concebeu um filho em sua velhice; e é este o sexto mês para aquela que era chamada estéril; /Porque para Deus nada é impossível./Disse então Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra. E o anjo ausentou-se dela." (Lucas 1, 26-38).
No entanto muitos foram os teólogos que a partir do século XII procuraram dar resposta aos estados de ânimo da Virgem espelhados na forma como as suas mãos eram muitas vezes retratadas. Entre eles encontramos Bernard of Clairvaux ("De laudibus Virginis matris "), Fra Roberto Caracciolo of Lecce ("Sermones de Annuciatione") e Giovanni de Cauli ("Meditationes vitae Christi") cujos escritos permitiam a comunicação e a troca de ideias entre os mais letrados, mas não deixavam espaço à reflexão para os que não tinham essa sorte (quase todos). A arte fazia assim o papel da letra. Nos "Sermones de Annuciatione" estabelecia-se mesmo uma relação entre os momentos da Anunciação e os sentimentos vividos pela mãe do Salvador. Eles seriam a conturbatio; ou seja, o primeiro momento, o momento de surpresa por saber da notícia, cogitatio que correspondia ao tempo de reflexão após a surpresa inicial, interrogatio que mais não era que a preocupação com as palavras do anjo, humiliatio que se refere à aceitação e submissão à vontade de Deus e por fim, meritatio ou seja, a alegria interior por servir Deus.
Vejamos o primeiro caso; a conturbatio. Giovanni de Cauli escreveu que a Virgem estava perturbada, mas sem motivo aparente. Talvez apenas perturbada pela aparição do anjo, ou pela forma como este se dirigiu a ela, dizendo que ela era a cheia de graça, que Deus estava com ela e que ela era abençoada acima de todas as mulheres. Maria deve ter corado, deve ter ficado envergonhada pois este era talvez o único e maior elogio que uma mulher de bem, de paz e respeitada poderia desejar. Maria alcançou a graça, a presença de Deus e a sua bênção e por isso a iconografia muitas vezes escolhe uma imagem de humildade por parte da Virgem para caracterizar este momento. É por isso frequentemente pintada com as mãos cruzadas sobre o peito como neste quadro de Murillo, imagem que muito agradou os mais conservadores, mas nem por isso se tornou a forma mais comum para retratar a conturbatio como podemos ver no exemplo de Sandro Botticelli ou de Perugino em que a Virgem está com as palmas das mãos viradas para fora, e elevadas à mesma altura. Ainda não é bem aquilo que Ingres pintou, mas já se nota a atitude de espanto e quase de negação perante a incredulidade das palavras do anjo. Há ainda alguns exemplos de Anunciações em que a Virgem, no momento em que vê o anjo, agarra a bíblia ou até o próprio véu, como é o caso da Anunciação de Simone Martini e Lippo Memmi, ou foge dela, como podemos ver no exemplo em baixo. Esta Anunciação de Lorenzo Lotto mostra a Virgem de cabeça baixa, de palmas das mãos viradas para nós e de costas para o anjo, quase como se este fosse uma tempestade da qual ela tem de se abrigar. O próprio gato - os gatos têm a capacidade de ver fenómenos sobrenaturais, pelo menos é o que dizem - foge a sete patas!

Bartolomé Esteban Murillo
Annunciation
1660-1665
Museo del Prado, Madrid


Sandro Botticelli
Cestello Annunciation
1489-90
Galleria degli Uffizi, Florença


Pietro Perugino
Anunciation
1489
Santa Maria Nova


Lorenzo Lotto
Annunciation
c. 1527
Pinacoteca Comunale, Recanati

Cogito ergo sum, não era assim? Depois de se ter mostrado espantada, surpreendida, humilde e pura, a Virgem mostra-se pensativa. Aliás, no Magnificat (pequena oração ou cântico que a Virgem entoa quando visita a sua prima Isabel e a criança lhe salta no ventre), Maria mostra-se pensativa e reflecte sobre tudo o que aconteceu: "Disse então Maria: A minha alma engrandece ao Senhor,/E o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador;/Porque atentou na baixeza de sua serva; Pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada,/Porque me fez grandes coisas o Poderoso; E santo é seu nome./E a sua misericórdia é de geração em geração Sobre os que o temem./Com o seu braço agiu valorosamente; Dissipou os soberbos no pensamento de seus corações./Depôs dos tronos os poderosos, E elevou os humildes./Encheu de bens os famintos, E despediu vazios os ricos./Auxiliou a Israel seu servo, Recordando-se da sua misericórdia;/Como falou a nossos pais, Para com Abraão e a sua posteridade, para sempre." (Lucas1, 46-55). No fundo, Maria não tinha muito em que pensar. Quando os teólogos falam em cogitatio, esquecem que aquela era a vontade de Deus e Maria não podia ir contra ela. E mostrando-se a Virgem sempre tão submissa, o que poderia fazer se o filho do salvador já estava no seu ventre? Abortar? O Nascimento de Cristo talvez tenha sido uma imposição divina em vez de uma escolha humana, o que faz sentido se pensarmos que é Cristo, mas deixa de fazer se pensarmos que antes de ser Cristo, foi Menino. O único exemplo, ou dos poucos exemplos em que Maria se mostra preocupada ou pensativa depois da Anunciação chega-nos pela mão de Henry Ossawa Tanner que nos apresenta a futura mãe de Jesus sentada numa cama, num quarto em estilo oriental, com um olhar perdido no espaço e de visível preocupação. O anjo já não está na sua presença, mas antes a luz do anjo, como um resquício das palavras proferidas. De qualquer forma, a Virgem poucas vezes se mostra pensativa, na arte. Há também um outro exemplo da reacção da Virgem no Tríptico de Perugia de Fra Angelico quando esta junta as mãos em sinal de oração e esboça um sorriso como que aliviada por esta revelação.

Henry Ossawa Tanner
The Annunciation
1898
Philadelphia Museum of Art

É também neste momento que a Virgem, para além de reflectir sobre o sucedido, acaba por inquirir o anjo; ou seja, a interrogatio. Ela pergunta-lhe como foi possível aquilo acontecer-lhe se ela não conhecia nenhum homem, se nunca havia estado com nenhum homem. Ele responde-lhe que nada é impossível para Deus (o que é uma boa desculpa, pois assim, qualquer pergunta futura já fica respondida). Esta resposta também é boa para os artistas porque se nada é impossível para Deus, nada é impossível para um artista; é mais fácil pintar o impossível do que o possível, pois no possível há referências anteriores e no impossível, não há impossível. Vários são os exemplos deste diálogo entre anjo e Virgem, como nos mostra Antonello of Messina na Virgin Annunciate. A Virgem não está a falar, os seus lábios estão fechados, mas a mão dela já se estende na nossa direcção, queremos acreditar que na do anjo também, para o interromper e perguntar "como foi isso possível?" Aliás, a virgem parece saber a resposta antes mesmo de fazer a pergunta; ou seja a interrogação precede o pensamento o que nos leva a concluir que a Virgem terá um papel mais activo do que aquele que a Cristandade nos fez acreditar que tinha.

Antonello da Messina
Virgin Annunciate
c. 1475
Galletria Nazionale della Sicilia, Palermo

Humiliatio é uma expressão forte por poder ser relacionada com "humilhação". O termo em latim refere-se a “qualquer coisa que perde importância”. Pode ser vista então à luz da humilhação pois quem se humilha ou é humilhado, toma uma posição inferior aos que o rodeiam, mas também pode ser visto à luz do tempo em questão; ou seja, a Virgem abandona a preocupação com a sua pessoa para aceitar o que lhe é dado. Que à luz de hoje é quase uma humilhação. Ao contrário do que dizem e foi referido atrás, não é uma condição que se aceita livremente, mas antes imposta à Virgem. Uma das melhores imagens da Humiliatio é este vitral de Burne-Jones onde do lado esquerdo podemos ver a forma como a Virgem faz as mãos pousarem aliviadas sobre o peito embora a sua expressão seja ainda de algum susto. Esta é talvez a fase mais difícil de definir de toda a Anunciação: na conturbatio a Virgem cruza as mãos sobre o peito ou levanta-as com as palmas das mãos viradas para fora; na cogitatio as suas mãos estão abandonadas no colo ou na Bíblia, sem grande expressão pois este é o momento em que a Virgem reflecte sobre o que lhe aconteceu; na interrogatio a mão da Virgem pode dirigir-se para o anjo, pode existir um movimento de mãos que denuncie a sua intervenção, mas na humiliatio, poucos são os exemplos da aceitação com alegria do fruto da vontade do Senhor. Maria expressa essa aceitação com alívio, mas também com angústia.

Sir Edward Burne-Jones
Annunciation (the left-hand and centre panels of a three-light window at St. Columba's Church
1860
St. Columba's Church, Topcliffe, Yorkshire

Por fim a meritatio que em inglês é “merit” e em português mérito, conta a fase da Anunciação em que a Virgem sente a alegria interior pelas palavras do anjo. Maria foi a escolhida, o anjo já se foi, mas a partir daquele momento ela não está sozinha pois no seu ventre está o Outro, aquele que virá para servir. Ela vai dar vida a Deus, uma vez que do Pai nasceu o Filho e todos são um só. Graças a ela, o Pai vai deixar de ser apenas espírito para passar a ser matéria. No entanto, devo dizer que os exemplos vistos (e já ando nisto há dois dias), não me transmitem essa alegria. Talvez mais a expressão de auto-reconhecimento do mérito, noção da responsabilidade futura, mas nada de alegria. A Virgem de Ticiano tem um rosto triste e tal como os outros exemplos, mostra o seu perfil, mais resignada e portadora de um mistério do que em êxtase. Outro exemplo é a Blessed Virgin de Bernardo Cavallino que mostra, não o rosto mas a testa. Não está de perfil, não está a três quartos, mas praticamente de frente com a cabeça baixa o suficiente para lhe notarmos a testa e o perfil alongado, numa profundidade exterior que também é, a meu ver, interior.

Vecellio Ticiano
Polyptych of the Resurrection: Virgin Annunciate
1522
Santi Nazaro e Celso, Brescia


Bernardo Cavallino
The Blessed Virgin
1650
Pinacoteca di Brera, Milão

Todo este post a propósito da primeira pintura, da pintura de Ingres, que eu acho, não merece. Primeiro porque o quadro de Ingres chama-se Virgem Coroada e logo não se insere neste contexto, mas foi o quadro que me levou à pesquisa. Segundo, porque se eu fosse grega ficaria muito magoada com o tipo: é que na Grécia, mostrar as palmas das mãos é como lançar uma maldição.