segunda-feira, julho 29, 2013

- original soundtrack -

não gosto de Wagner. ele também, se me conhecesse, não gostaria de mim. Nunca ouvi nada de wagner de que gostasse. preconceito meu, de certeza, por ele ter sido um autor tão caro ao regime nazi. mas ao ver o "melancholia" do lars von trier fiquei a gostar do prelúdio da ópera Tristão e Isolda do Wagner, e perdoei-lhe (e ele com isso...). afinal de contas, um bom artista não tem de ser uma boa pessoa (pelo menos foi essa a conclusão a que cheguei depois de muito pensar). fica por isso aqui a banda sonora de hoje.
- não vai mais vinho para essa mesa -

sonhei que ia ao espaço de autocarro. só que no caminho, o autocarro teve um acidente (contra uma moto), na Estrada Nacional. Na sequência disto o motorista disse que já não me podia levar ao espaço, mas podia levar a Las Vegas (!?).
- o carteiro -

mais um bocadinho de Proust. não quero que vos falte nada.

a relação da Recherche com a pintura não é só aquela que vimos, ou pelo menos, não se processa apenas dessa forma. parece que tudo no livro (nos livros) nos chega por analogia com a pintura. a forma como as diferentes cenas são apresentadas a marcel, é como na pintura. e não digo isto no sentido figurado: ele observa as personagens como quem vê por uma tela, só que no caso de marcel, a tela é a janela. muitas das cenas mais marcantes do livro, aparecem a marcel através da janela. e quando não é ele a ver de fora para dentro ou de dentro para fora, são outras personagens como a tia Léonie que utilizava a janela para ver o que se passava fora de casa, já que se recusava a sair da mesma. No primeiro volume encontramos essa referência quando marcel e a família vão a Combray visitar a tia. Na descrição que faz do quarto o autor diz, relativamente à janela, apenas isto:

"Do outro lado, a cama ladeava a janela; tinha a rua debaixo dos olhos..."[1]

Parece pouco para quem como eu quer formar uma teoria. Mas em seguida, três páginas à frente, quando Françoise, a criada, entra no quarto da tia Léonie, esta bombardeia-a com questões acerca daquilo que viu, como a senhora Groupil que passou com um quarto de hora de atraso para ir buscar a irmã, a senhora Imbert que levava espargos, a Maguelone que tinha ido buscar o médico Piperaud, os sinos que dobravam pela senhora Rousseau...[2]

No mesmo volume, mais à frente, surge uma das cenas mais marcantes do livro, referente à relação lésbica - somente sugerida por Proust - entre a filha de Vinteuil e uma amiga. Esta cena também chega ao narrador através da janela.

"A janela estava entreaberta, a luz acesa, via todos os seus movimentos sem que ela me visse, mas se me fosse embora fazia estalar as silvas [...] Ao fundo do salão da menina Vinteuil, em cima da chaminé, estava poisado um pequeno retrato do pai, que ela foi buscar [...] e depois atirou-se para um canapé e puxou para junto de si uma mesinha onde colocou o retrato [...]. Pouco depois entrou a amiga. A menina Vinteuil recebeu-a sem se levantar, com as duas mãos atrás da cabeça, e recuou para a outra ponta do sofá como que para lhe dar lugar [...] Não tardou a levantar-se, e fingiu querer fechar as portadas sem o conseguir.
- Então deixa tudo aberto, tenho calor - disse a amiga.
- É que é desagradável, assim vêem-nos - respondeu a menina Vinteuil.
[...]
- E então - acrescentou ela (julgando dever acompanhar de uma piscadela de olho maliciosa e terna estas palavras [...] - ainda que nos vissem melhor seria. [...]«A menina parece-me estar esta tarde com pensamentos muito lúbricos» [...] No cavado do corpete de crepe, a menina Vinteuil sentiu que a amiga lhe aplicava um beijo; soltou um gritinho, fugiu, e correram uma atrás da outra aos saltos [...] Depois a menina Vinteuil acabou por cair sobre o canapé, coberta pelo corpo da amiga"[3]

Aqui, apesar da cena decorrer de forma movimentada (avanço até à janela, deitar no canapé, saltos), o plano do observador é fixo, frontal e rectangular. É um outro mundo para o narrador, uma terra estrangeira - Gomorra, que a filha do compositor apresenta ante o narrador. Esta cena, em que Gomorra surge em formato rectangular, tem paralelo com uma outra, em que Sodoma surge em formato circular. Ocorre no último volume quando o narrador contempla a flagelação do Barão de Charlus, num quarto com Jupien, através de um olho de boi lateral:

"Não tardaram a mandar-me subir para o 43, mas a atmosfera era tão desagradável e tão grande a curiosidade que, uma vez bebido o meu cassis, tornei a descer a escada e depois, mudando de ideias, voltei a subir e ultrapassei o andar do quarto 43 e fui até lá acima. De repente, pareceu-me ouvir [...] «Por amor de Deus, por piedade, peço-lhe, solte-me, não me bata com tanta força», dizia uma voz. «Eu beijo-lhe os pés, eu humilho-me, não torno mais. Tenha piedade.» «Não, meu crápula,» respondeu outra voz, «e já que te pões a berrar e te arrastas de joelhos, vou amarrar-te à cama, nada de piedade» - e ouvi o estalar de um chicote, provavelmente com pregos aguçados, porque foi seguido de gritos de dor. Reparei então que na parede daquele quarto havia um olho-de-boi lateral [...] e lá dentro, acorrentado a uma cama como Prometeu ao rochedo, recebendo os golpes de um chicote de facto semeado de pregos que Maurice lhe vibrava, já todo em sangue e coberto de equimoses que provavam que não era a primeira vez que se sujeitava àquele suplício, vi diante de mim o senhor de Charlus."[4] 

Na cena em que a menina Vinteuil se entrega aos prazeres da carne com a sua amiga, a homossexualidade é inaugural (de facto ocorre no primeiro volume) enquanto na cena relativa ao Barão de Charlus, no último volume a homossexualidade é vista como conclusiva. Temos assim o sadismo na homossexualidade feminina (a menina Vinteuil posiciona o retrato do pai em local visível, para magoar a amiga e assim ver o seu prazer aumentado) relacionado com o quadrado, com a abertura rectangular, enquanto o masoquismo na homossexualidade masculina está relacionada com o circular.Isto não acontece apenas aqui. Raymonde Coudert aponta que a conotação do sadismo com o quadrangular acontece logo no início, no primeiro volume, aquando da descrição do quarto do narrador onde é feita a oposição entre as formas redondas da lanterna mágica com as rectangulares do quarto:

"fora moralmente intoxicado pelo aroma desconhecido do vetiver, convencido da hostilidade das cortinas roxas e da insolente indiferença do relógio que palrava alto como se eu não estivesse ali; onde um estranho e impiedoso espelho de pé, de forma quadrangular, barrando obliquamente um dos cantos da sala, ocupava nítido na doce plenitude do meu usual campo de visão uma localização que nele não estava prevista [...] o quarto de dormir tornava a ser o ponto fixo e doloroso das minhas preocupações. Bem tinham tido a ideia, para me distraírem nas tardes em que me achavam com um aspecto por demais infeliz, de me darem uma lanterna mágica com que cobriam o meu candeeiro até à hora do jantar [...] [5] 

A cena que leva o narrador a ver e ouvir Jupien e Charlus é também ela cheia de volta e reviravoltas, complexa e não linear como a que lhe proporciona a visão da cena entre as jovens raparigas. O narrador sobe e desce, ouve e depois vê. Já antes algo fazia antever isto. Proust descreve-o no terceiro volume:

"[...] pois o senhor de Charlus só vinha ao palacete dos Guermantes da parte da tarde, às horas em que Jupien estava no escritório [...]quando a atitude do senhor de Charlus mudou, a de Jupien [...] imediatamente se harmonizou com ela. [...] O barão [...] andava de um lado para o outro [...] Jupien saiu pelo portão [...] o barão [...] disparou vivamente no seu encalço [...] Jupien [...] regressou, seguido pelo barão. [...] A porta da loja fechou-se atrás deles e não consegui ouvir mais nada" [6] 

Mas vamos ao que nos trouxe aqui: a janela como forma de introduzir as diferentes cenas como se as mesmas se tratassem de quadros. Isto volta a acontecer no segundo volume quando o narrador faz uma visita ao atelier de Elstir e vê, não o bando de raparigas que havia visto antes, mas uma das ciclistas do bando:

"Estir e eu tínhamos ido até uma janela, que dava, atrás do jardim, para uma estreita avenida transversal, quase um pequeno caminho rústico. Tínhamos ido para ali para respirar o ar mais fresco da tarde adiantada. Eu julgava-me bem longe das raparigas do pequeno bando [...] De repente, apareceu nele, caminhando a passos rápidos, a jovem ciclista do pequeno bando [...]" [7] 

E como diria o outro: "e assim acontece"
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[1] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Swann, p. 52
[2] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Swann, p. 62
[3] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Swann, pp. 169-172
[4] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Tempo Reencontrado, p. 132
[5] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Swann, pp. 14-15
[6] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: Sodoma e Gomorra, pp. 12-14
[7] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: À Sombra das Raparigas em Flor, pp. 427-428
  
-ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou "bós" sabeis "qu'eu" gosto de moda. gosto, "prontos". estava eu aqui, apreciar a colecção da Band of Outsiders e pensei: onde é que já vi isto? "Isto" é o estampado de um modelito, estampado esse que parecia mesmo, mesmo, mesmo aquele quadro do Hockney "A bigger splash". mas, não era. ora observem lá:

















Band of outsiders
Resort
2014


















Hockney
A bigger splash
1967
Tate Gallery, Londres

a verdade é que lhe no modelo faltam palmeiras e a mancha branca do mergulho que acabou de ser dado. descobri então que um autor que se chama Guy Yanai (algumas coisas aprecio, outras nem por isso), israelita, trabalhou com a marca Band of Outsiders nesta colecção. nos seus trabalhos usa cores fortes, puras, sem sombreado e sem simulação de espaço ou perspectiva. aliás, uma das coisas que caracteriza o seu trabalho e que resulta muito bem, é o facto de ele tratar objectos do dia-a-dia sem profundidade. às vezes parece uma mistura de Hockney, com Lichenstein e Matisse. "Bejam" lá se não é...


















Guy Yanai
Splash on failed painting
- o carteiro -

que não se deite fora a água do banho com o menino lá dentro
a exposição que conta a história de um quadro
vocês sabem como é: oporto rules!
o papa com o papa da pop
- não vai mais vinho para essa mesa -


































sexta-feira, julho 26, 2013

desculpem, mas às vezes tenho as minhas coisas e não me apetece postar.
após a morte da minha avó sinto-me um pouco com ele. sem atirar o prato ao chão, mas incapaz de relativizar. 

quinta-feira, julho 25, 2013

- o carteiro -









































































terça-feira, julho 23, 2013

- original soundtrack -

esta imagem do filme faz-me lembrar as pinturas do Hammershoi. escusado será dizer (mesmo dizendo) que adoro o filme.










Es bellen die Hunde, es rascheln die Ketten;
[Die Menschen schnarchen] in ihren Betten, 
Träumen sich manches, was sie nicht haben, 
Tun sich im Guten und Argen erlaben; 

Und morgen früh ist alles zerflossen. 
Je nun, sie haben ihr Teil genossen 
Und hoffen, was sie noch übrig ließen, 
Doch wieder zu finden auf ihren Kissen. 

Bellt mich nur fort, ihr wachen Hunde, 
Laßt mich nicht ruh'n in der Schlummerstunde! 
Ich bin zu Ende mit allen Träumen. 
Was will ich unter den Schläfern säumen?

The hounds are barking, their chains are rattling; 
Men are asleep in their beds, 
They dream of the things they do not have, 
Find refreshment in good and bad things. 

And tomorrow morning everything is vanished. 
Yet still, they have enjoyed their share, 
And hope that what remains to them, 
Might still be found on their pillows. 

Bark me away, you waking dogs! 
Let me not find rest in the hours of slumber! 
I am finished with all dreaming 
Why should I linger among sleepers?

(Im Dorfe Staier, Schubert)


- o carteiro -

a terceira e última parte do trabalho sobre as correspondências artísticas entre Proust e a pintura. (a primeira parte está aqui e a segunda aqui) talvez dê continuidade a este trabalho. o pior mesmo são as fontes. não sei, dependo do tempo que tiver. e da força anímica

















Fig. 11
Jean Patricot
Charles Ephrussi
1905















Fig. 12
Charles Ephrussi


Mas Kazuyoshi Yoshikawa aborda a questão de outra forma. Se é de facto Charles Ephrussi quem ali está nos dois quadros convém então procurar os retratos de Ephrussi e estabelecer a comparação. Encontramos o pastel de Louise Abbéma (1853-1927) em 1887 em que este se apresenta no seu gabinete, com um livro aberto na mão, como amante das artes e das letras que era.[1] Embora seja Ephrussi, não é, como diz o texto, um “homem de fraque no seu salão”. O retrato de Charles Ephrussi de Léon Bonnat é que corresponde mais à descrição. Não sabemos se ele se movimenta “no seu salão”, mas é, aparentemente, um “homem de fraque” e, tal como nos rascunhos citados anteriormente é um “grande homem de barba”. Mas há dois aspetos na pintura e na descrição que são antitéticos. È que segundo o livro, o homem do quadro de Elstir veste fraque; ou seja, laço branco, o que não acontece no retrato de Ephrussi da autoria de Bonnat. Sendo assim, Proust poderia ter ido buscar inspiração a outros retratos de mecenas de fraque que conhecia, atribuindo autoria a Elstir. De facto, este é um procedimento familiar: Proust sobrepõe vários modelos na tela de Elstir, como Théodore Duret de Whistler, Robert de Montesquiou também de Whistler (que não mostra um homem barbudo, mas um dandy e um colecionador de arte) e o Ephrussi de Léon Bonnat. Porém – e aqui se coloca o outro aspeto – de nenhum dos retratos destes homens, cada um com as suas pilosidades dando cumprimento ao “grande homem de barba”, se pode dizer que possui a “oposição entre os folhos brancos da sua camisa e as nobres sinuosidades do fraque”. 

A questão da barba é igualmente importante por outra razão. Tanto no retrato pintado por Bonnat como do quadro de Renoir em que Ephrussi é retratado, a barba está sempre bem visível. Obviamente Charles Ephrussi não era o único homem na altura com barba, no entanto o facto de ser de origem judaica dá mais importância à barba. Fica assim explicado porque é que o duque de Guermantes zomba desse homem de chapéu quando diz, depois do narrador lhe perguntar quem é o homem de chapéu alto que surge no quadro de Elstir:

«“Meu Deus”, respondeu-me ele, “eu sei que é um homem que não é um desconhecido nem um imbecil na sua especialidade, mas estou confundido com os nomes. Tenho-o aqui debaixo da língua, é o senhor… o senhor… enfim, não importa, já não sei. Swann dir-lhe-á, foi ele que fez com que aquelas coisas fossem compradas pela senhora de Guermantes […] O que lhe posso dizer é que essa criatura é para o senhor Elstir uma espécie de Mecenas que o lançou e que muitas vezes o tirou de dificuldades encomendando-lhe quadros. Por gratidão – se chamar a isso gratidão, depende dos gostos – ele pintou-o naquele lugar, onde com o seu ar endomingado faz um efeito bastante esquisito. Pode ser um figurão muito endinheirado, mas é evidente que não sabe em que circunstâncias se usa uma cartola»[2] 

O duque não se lembra do nome do senhor retratado no quadro de Elstir, um desconhecido, mas diz que o “herói” Swann saberá de quem se trata. Nada mais irónico já que sabemos que o modelo de Swann é Ephrussi, o judeu insignificante que no quadro de Renoir (Le Déjeuner des Canotiers) parece deslocado graças à sobriedade com que se apresenta. Lembremo-nos que entre assuntos de homossexualidade e arte Proust aborda neste romance a questão política, mais concretamente, o caso Dreyfus[3] que agitou a época. Ao subestimar Ephrussi, o duque anuncia o que vai ser o fim de Swann – seu simétrico literário – no último volume da Recherche. 

Também da coleção de Durand-Ruel era o quadro Vue de Vintimille (Fig. 13) de Monet que o narrador descreve no terceiro volume da Recherche nestes termos:


«Às vezes, naqueles últimos dias de Inverno, entrávamos, antes de irmos passear, em alguma das pequenas exposições que então abriam e em que Swann, colecionador de marca, era cumprimentado com especial deferência pelos donos das galerias onde tinham lugar. E, naquele tempo ainda frio, os meus antigos desejos de partir para o Sul, para Veneza, eram despertados por aquelas salas onde uma Primavera já adiantada e um sol ardente punham reflexos violáceos nos Alpilles rosados…»[4]
















Fig. 13
Claude Monet 
Vue de Vintimille
1884
Art Gallery and Museum, Glasgow

O quadro de Monet é de 1884 e em 25 de Abril de 1899, quando Proust e Ephrussi foram à Durand-Ruel, o quadro estava lá. Isto acentua não só a relação entre o quadro do livro e o quadro de Monet, como a relação entre Swann, “colecionador de marca, […] cumprimentado com especial deferência”, e Ephrussi.[5] O narrador começa a ter conhecimento acerca do trabalho de Elstir quando visita o seu atelier.[6] Lá vê paisagens, retratos e naturezas-mortas. É só após esta visita que o narrador compreende a poesia das naturezas-mortas. O apreço pelas naturezas-mortas relembra a reação do jovem depois de ver os quadros de Chardin no Louvre que ele relembra nesta passagem:

«Agora de bom grado deixava-me ficar sentado quando já levantavam as mesas e, se não era uma daquelas ocasiões em que as raparigas do pequeno bando podiam passar, já não era apenas para o lado do mar que eu olhava. Desde que os vira nas aguarelas de Elstir, procurava reencontrar na realidade, amava como algo de poético, o gesto interrompido das facas ainda atravessadas, a redondez tufada de um guardanapo desfeito, em que o sol intercala um troço de veludo amarelo, o copo meio vazio que assim mostra melhor o nobre alargamento das suas formas e, no fundo do seu vidrado translúcido e semelhante a uma condensação do dia, um resto de vinho escuro, mas cintilante de luzes, a deslocação dos volumes, a transmutação dos líquidos pela iluminação, a alteração das ameixas que passam do verde ao azul e do azul ao ouro na compoteira já meio esvaziada, o passeio das cadeiras velhinhas que duas vezes por dia se vêm instalar em redor da toalha estendida na mesa como sobre um altar onde se celebram os ritos da gula e sobre a qual permanecem algumas gotas de água lustral no fundo das ostras, como que em pequenas pias de água benta de pedra; tentava encontrar a beleza onde nunca tinha imaginado que estivesse, nas coisas mais usuais, na vida profunda das "naturezas mortas".»[7]

As naturezas-mortas de Elstir são como pinturas impressionistas na tradição de Chardin. Proust tinha consciência que muitos dos artistas realistas e impressionistas da época foram influenciados pelo trabalho de Chardin. Na Recherche o autor aponta um paradoxo: as mesmas pessoas que não apreciavam o trabalho dos Impressionistas admiravam Chardin e não compreendiam a ligação entre o artista do século XVIII e os seus próprios contemporâneos:

«As pessoas que detestavam aqueles "horrores" espantavam-se de que Elstir admirasse Chardin, Perronneau, tantos pintores de quem eles, gente da sociedade, gostavam. Não tinham consciência de que Elstir tinha à sua maneira repetido perante o real (com a marca própria do seu gosto por certas pesquisas), o mesmo esforço de um Chardin ou de um Perronneau, e que por consequência, quando parava de trabalhar por si, admirava neles tentativas do mesmo género, como que fragmentos antecipados de obras suas. Mas a gente da sociedade não associava pelo pensamento à obra de Elstir essa perspectiva do Tempo que lhes permitiria apreciar, ou pelo menos contemplar sem incómodo, a pintura de Chardin. No entanto, os mais velhos poderiam pensar que durante a sua vida haviam visto diminuir, à medida que os anos os afastavam dela, a distância intransponível entre o que consideravam uma obra-prima de Ingres e o que julgavam ir ficar para sempre como um horror (por exemplo, a Olympia de Manet) até as duas telas virem a parecer gémeas.»[8] 

Nestas observações Proust mostra que a dívida de Manet para com Chardin era irreconhecível pelos inimigos do Impressionismo. Depois de Manet ter visto quadros de Chardin na galeria Martinet em 1860, fez várias cópias dos mesmos e as suas naturezas-mortas dos anos 60 do século XIX, como Still Life with Carp (Fig. 13), trazem à memória as naturezas-mortas de Chardin (Fig. 14). Apesar da arte de Elstir ser uma síntese de pinturas de muitos artistas que Proust admirava para além de Manet, a insistência do autor na relação entre Chardin e Elstir é importante, já que delineia a afinidade entre o “moderno” e a “tradição”.














Fig. 13
Edouard Manet
Still Life with Carp
1864
Art Institute of Chicago, Chicago

















Fig. 14
Jean Siméon Chardin
Still Life with Cat and Fish
1728
Thyssen-Bornemisza Museum, Madrid


Chardin é citado quatro vezes na Recherche, sempre a propósito de Elstir. O nome de Chardin subsiste como autor de certas figuras, não somente Elstir, mas também Françoise, a criada da família do narrador. No segundo volume, À Sombra das Raparigas em Flor, Chardin e Whistler, exemplos dos esforços “conscientes” dos artistas, acompanham o «gosto infalível e ingénuo» de Françoise que sabe compor a sua apresentação como os pintores compõem os seus quadros, ao ponto de cada detalhe - «laçada de fita» sobre o chapéu, «uma rosa branca ou cor de enxofre» «no lugar onde devia estar» - dar a «sensação de conjunto». Que Françoise tenha dado origem a uma digressão estética não é indiferente na medida em que ela representa no romance o génio francês[9]:

«a modéstia e a honestidade que muitas vezes conferiam nobreza ao rosto da nossa velha criada, que recebera como oferta as roupas que, como mulher reservada mas sem baixeza, «que sabe pôr-se no seu lugar», vestira para a viagem para ficar digna de ser vista na nossa companhia sem parecer querer exibir-se…»[10] 

O mosaico de personagens que compõem Elstir parece estar, entre outros, muito próximo de Chardin, mesmo quando Chardin é Renoir:

«As pessoas de gosto dizem-nos hoje que Renoir é um grande pintor do século XVIII. Mas ao dizerem isso esquecem-se do Tempo e de que foi preciso muito, mesmo em pleno século XIX, para que Renoir fosse saudado como grande artista.»[11] 

Assim, antes da pequena frase, que diz que Elstir repetia «perante o real (com a marca própria do seu gosto por certas pesquisas), o mesmo esforço de um Chardin»[12], ocorre esta formulação fundamental da ligação entre pintura e realidade e entre pintura e discurso sobre arte:

«Elstir tentava arrancar ao que acabava de sentir aquilo que sabia; o seu esforço consistiria muitas vezes em dissolver aquele agregado de raciocínio a que chamamos visão.»[13]
___________________________
[1] Existem outras imagens de Charles Ephrussi como o desenho de Jean Patricot de 1905 (Fig. 11) e uma fotografia, provavelmente, dentro dessa data (Fig. 12). 

[2] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes, p. 502 
[3] O caso Dreyfus envolve o oficial francês Alfred Dreyfus (1859-1935) em 1859. Este oficial foi acusado de alta traição e contra ele foram movidos processos que mais tarde se revelaram fraudulentos e que foram levados a cabo graças a uma onde nacionalista que cobria a Europa. Convém lembrar que Dreyfus era judeu. 
[4] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: À Sombra das Raparigas em Flor. Mem Martins: Relógio d’Água, 2003, p. 122 
[5] HOUPPERMANS, Sjef – Marcel Proust Aujourd’hui, pp.47 
[6] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: À Sombra das Raparigas em Flor, pp. 419-439 
[7] IDEM, Ibidem, p. 453 
[8] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes, p. 423 
[9] PROUST, Marcel – Comme Elstir Chardin…. Paris: Altamira, 1999, p.48-52 
[10] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: À Sombra das Raparigas em Flor, p. 232 
[11] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes, p. 331 
[12] IDEM, Ibidem, p. 423 
[13] IDEM, Ibidem, p. 423

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

amados, coisas lindas da mãe: aqui vai mais um antes e depois para animar a casa, o país, a vida e tudo e tudo e tudo. sabem, quando penso: "mas porque é que estás a fazer isto? porque é que te dedicas a estudar estas coisas? não achas que já tens idade de fazer bebés e encostar a barriga ao fogão? - lembro-me logo daquela frase do Robert Motherwell: "Art is much less important than life, but what a poor life without it!”. não sei isso serve de alguma coisa. ultimamente tenho pensado muito nesta necessidade das pessoas continuarem a viver, de fazer o que sempre fizeram, mesmo quando as coisas já não fazem sentido. faz-me lembrar aquele diálogo surreal que a Rita Blanco tem os actores que fazem de filhos dela no "Sangue do meu sangue". Depois de saber que a filha está grávida do próprio pai e que o filho levou uma valente surra, ela chega a casa e pergunta-lhes o que estão a ver na televisão e pede-lhes que não deixem as luzes acesas (?!). 
Bem, vamos à vida (que frase paradigmática!). O Paulo mostrou-me a segunda imagem e alguém disse que era uma paródia ao Baco de Caravaggio. Mas eu andei cá a magicar e não me lembrava, na minha biblioteca de imagens mentais de ver nenhum Caravaggio assim. Parecia-me demasiado "solar", quando o Caravaggio é mais "saturnino". E foi quando se fez luz e vi o Baco de Velazquez a encenar uma coroação, com uma coroa de folhas, de um dos seus súbditos. Vamos agora à parte histórica da coisa, aos factos. Velazquez pintou o quadro de Baco rodeado de oito bêbados para Filipe IV que o pendurou (ao quadro) na seu quarto de Verão. A pintura é não só uma raridade no contexto da obra de Velazquez como na história da pintura espanhola que geralmente não mostra as cenas de "inebriamento alcoólico" - vamos chamar-lhe assim - de forma tão explícita como era apanágio da pintura flamenga. Em Espanha, na Espanha doentiamente católica do século XVII a embriaguez era vista como um vício desprezível. Aliás, "Bêbado" ou "borracho" era o mais humilhante e cruel dos insultos. Sim, que eles lá com a inquisição (ninguém vai ver o link, mas é muito engraçado. aliás, tudo dele é muito engraçado, desbragado) podiam ser carrascos, assassinos, mas bêbados... nem pensar! (Para falar a verdade, essa é também uma palavra que me incomoda, ainda mais quando acompanhada pelo respectivo ou respectiva). Mas na corte, ao que parece, era costume e considerado altamente divertido convidar os actores dos teatros de comédia para um serão, fazê-los beber e assim entreter as senhoras.
Este Baco que aqui vemos coroa os seguidores com coras de folhas de hera (que, segundo se dizia, tornava o vinho mais fresco), e outros camponeses que olham para nós. Neste caso, olhavam para o rei, já que o quadro era para ele. Ou seja: o rei podia rir-se deles quando para o quadro olhava, mas eles estariam sempre a rir-se do rei travestidos, com honras reais.
A imagem de baixo, segue completamente a imagem de cima. Trata-se de um pequeno convívio, imortalizado em fotografia, tirada em 1908 no atelier de Amadeo de Sousa Cardoso em Paris, que contou com ele e com amigos. Ao que parece, e visto não existir nada escrito acerca disto ou de acções semelhantes, foi momento único no tempo e não uma performance ou happening que mostra Amadeo e os colegas a recriar a cena de Velazquez. Se bem que, tanto a de cima como a de baixo são imagens performativas, com uma acção a decorrer, e ambas a pedirem a nossa atenção. bem, vou para dentro.   














Velazquez
The triumph of Bacchus
1629
Museo del Prado, Madrid



















Amadeo de Sousa Cardoso
1908
- o carteiro -

o espaço "gente gira é outra coisa" do Belogue (parte II)

















Jasper Johns a gozar "forte e feio"


















Keith Haring a "pichar"


















Matisse concentradíssimo, sócio!


















Picasso a cachimbar












Roy Lichenstein a ganhar o dia
- não vai mais vinho para essa mesa -

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

o problema do livro é que dá como certo, em várias ocasiões - isto para não dizer que é esse o seu tema - a influência directa do De Rerum Natura na mudança de pensamento da Idade Média para a Idade Moderna. o manuscrito por si só, e por melhor que seja, não pode ter mudado todo o século XV. Lembremos que a Idade Média já há muito tempo não é vista como "período das trevas". O exemplo mais paradigmático é também literal: o vidro, ainda que não tão aperfeiçoado como hoje, já existia e permitia que os interiores fossem iluminados pela luz natural durante mais tempo. Desde o século XIII as relações feudais vinham a mudar e renasceu o mundo urbano que desde a Antiguidade tinha ficado esquecido. Territórios como Portugal, que não queriam pagar mais caro por certas mercadorias que lhe chegavam através de intermediários, empreenderam as viagens transcontinentais e transoceânicas necessárias para chegar de outra forma aos mesmos domínios. Estas viagens deitaram por terra as ideias da Idade Média de um mundo plano e no centro do universo em torno do qual tudo girava. No Renascimento, muitas coisas de facto mudaram, mas outras não. 

Ora, primeiro, o autor coloca no "mesmo saco" as diferentes fases da Idade Média. O facto do De Rerum Natura ter sido escrito numa época de primazia dos livros, e de depois se ter seguido - é verdade - um período em que a leitura e a escrita não foi fomentada (período esse do século V até ao século XV, mais ou menos), não faz com que toda a Idade Média tenho sido uma época de desconhecimento da leitura e da escrita. Os livros vindos da Antiguidade continuavam a existir, em mosteiros e em certas cortes como a de Carlos Magno. Mais ainda: a escrita foi impulsionada, principalmente a de temática religiosa, mas não só. Então e as trovas, os romances de cavalaria, os poemas de autores como Petrarca ou Dante (que foram justamente influenciados pelos textos clássicos)? Segundo: o autor dá a entender que o De Rerum Natura veio dar a conhecer a nova ideia de que não existia vida para além da morte, que o hedonismo era a via, que Deus não existia, e o objectivo da vida era o prazer e não o castigo, a dor. Se o manuscrito tivesse de facto sido tão importante, o Cristianismo tinha morrido no Renascimento e não foi isso que aconteceu. O que aconteceu, isso sim, foi uma coexistência entre os princípios modernos e a ideia do divino que só sofre um verdadeiro abalo com a Revolução Francesa e o Iluminismo. Por outro lado, se o mesmo manuscrito tivesse mudado a face do mundo e aberto as portas ao Renascimento, o que se observava era que a partir daí toda a gente viveria a dar largas à sua imaginação no que concerne ao prazer. De facto, tanto houve uma explosão de sensualismo (com os nus na arte, com o romance como tipologia), como o seu contrário (a maior repressão imposta pela Contra Reforma, por exemplo, ainda que mais tarde). O que se observa, neste livro como em muitas outras coisas, é a ideia errada que após a queda de Roma e as invasões bárbaras, a Europa caiu na mais profunda escuridão, que o mundo Antigo foi apagado da memória, e que por consequência, poetas, escultores e pintores deixaram de saber escrever, esculpir e pintar. nada mais errado: as invasões trouxeram de facto a destruição de muito do existente, mas não apagaram a capacidade de desenhar, de esculpir, de escrever. Os escultores da Idade Média esculpiam assim - sem respeito pelas proporções - não porque não soubessem esculpir, mas porque retratar com naturalismo não era o seu propósito.  

a parte boa do livro é aquela em que o autor, levado pela narrativa, descreve o tempo em que Poggio trabalhou para o Papa Baldassare Cossa de forma muito natural, sem necessitar - como acontece em outras partes - de sublinhar a relação entre o De Rerum Natura e o pensamento renascentista, não conseguindo de facto concretizar essa ideia.

sábado, julho 20, 2013

estou com uma telha...
vou dormir
(e vocês a pensar: "e eu com isso")
[no autocarro]
- ela?... ela desde sempre foi menina de se "esquifar" ao trabalho.
- dificuldades toda a gente tem...
- sim, mas ela não era muito "presisdente"

quinta-feira, julho 18, 2013

- original soundtrack -














Sometimes a wind blows 
And you and I
Float
In love
And kiss
Forever
In a darkness
And the mysteries
Of love
Come clear
And dance
In light
In you
In me
And show
That we
Are love

(Mysteries of love, Anthony and the Johnsons)
- não vai mais vinho para essa mesa -

eu e a ana (ou a ana e eu) estamos a pensar criar uma página no facebook para pessoas que são contra o facebook e outra para pessoas que tomam banho com sabonete (em vez de gel de banho)
- o carteiro -

(segunda parte. a primeira está aqui)

Mas voltemos a Charles Ephrussi. Este crítico francês também foi pintado por Renoir, não diretamente, como num retrato, mas de forma dissimulada num quadro que também se intitula Dejeuner, mas neste caso, Le Déjeuner des Canotiers (Fig. 6).













Fig. 6 
Pierre-Auguste Renoir
Le Déjeuner des Canotiers
1880-1881
The Phillips Collection, Washington



Chegamos até esse quadro não através dos estudos em torno do mesmo – no que concerne à identificação das personagens – mas da descrição que surge no segundo volume do livro de Proust. Num serão em casa dos Guermantes, o narrador pede ao duque que lhe mostre os quadros de Elstir e Proust descreve aquilo que se acredita ser Le Déjeuner des Canotiers:

«Comoveu-me reencontrar em dois quadros (esses mais realistas, e de uma fase anterior) o mesmo homem, uma vez de fraque no seu salão e outra de jaquetão e chapéu alto numa festa popular à beira de água, onde evidentemente não tinha qualquer papel a desempenhar, e que provava que para Elstir ele não era apenas um modelo habitual, mas um amigo, quiçá um protetor, de quem gostava […] A festa à beira de água tinha algo de mágico. O rio, os vestidos das mulheres, as velas dos barcos, os inúmeros reflexos de uns e outras estavam lado a lado naquele quadrado de pintura que Elstir recortara numa maravilhosa tarde. O que deslumbrava no vestido de uma mulher que por um momento parara de dançar por causa do calor e por estar sem fôlego, era igualmente rutilante, e da mesma maneira, no pano de uma vela parada, na água do pequeno porto, no pontão de madeira, na folhagem e no céu.»[1] 


O narrador refere que em dois quadros de Elstir figuravam duas personagens muito semelhantes, provavelmente a mesma pessoa. Descreve também um quadro que em tudo é semelhante ao quadro de Renoir. De facto Proust havia visto o quadro de Renoir, juntamente com Ephrussi na coleção de Durand-Ruel (1831-1922).[2] Ambos apresentam o barco no fundo com a vela branca, a folhagem, a cerca em madeira, as jovens sentadas ou recostadas, os homens mais ou menos compostos. Mas o narrador olha para um em particular: o homem que está vestido de negro, com chapéu na cabeça e de costas em pano de fundo. Esse homem foi identificado [3] com Charles Ephrussi que como mecenas e amigo destes pintores figurava logicamente nas obras dos mesmos. Mas lá estão presentes igualmente outros nomes relevantes, como a atriz Ellen Andrèe (1857-1925), no centro a levar um copo aos lábios; o barão Raoul Barbier de chapéu castanho e rosto dirigido para a filha do proprietário; a filha do proprietário, Alphonsine Fournaise (1845-1937), encostada ao gradeamento de madeira; Alphonse Fournaise (1823-1905), o dono da Maison Fournaise, também encostado ao gradeamento, de chapéu de palha; o pintor Caillebotte (1848-1894) sentado ao contrário na cadeira, regata branca e a olhar para Aline Charigot; Aline Charigot (1859-1915), amante de Renoir e depois sua mulher a pegar num gato, Angèle Legault ao lado de Caillebotte; o jornalista Adrien Maggiolo de pé junto a Caillebotte e a Angèle Lagault e atrás, de pé, Eugène Pierre Lestringez e Paul Lohote com o braço a cingir a cintura da atriz Jeanne Samary (1857-1890). Em pano de fundo encontramos então de costas para o observador Charles Ephrussi e de frente para ele, Jules Laforgue (1860-1887), poeta simbolista (Fig. 6a).[4]














Pierre-Auguste Renoir Le Déjeuner des Canotiers (1 – Ellen Andrèe (1857-1925); 2 - o barão Raoul Barbier; 3 - Alphonsine Fournaise (1845-1937); 4 - Alphonse Fournaise (1823-1905); 5 - Caillebotte (1848-1894); 6 - Aline Charigot (1859-1915); 7 - Angèle Legault; 8 - Adrien Maggiolo; 9 - Eugène Pierre Lestringez; 10 - Paul Lohote; 11 - Jeanne Samary (1857-1890); 12 - Ephrussi e 13 - Jules Laforgue (1860-1887)).


O outro quadro de que Proust fala na citação anterior pode ser visto numa inversão da ideia que até aqui tem sido habitual, em que os quadros de autores reais como Manet ou Monet inspiram a criação de imagens mentais no decorrer da leitura do livro. Segundo Kazuyoshi Yoshikawa,[5] o modelo para o retrato de Elstir é uma pintura de Léon Bonnat (1833-1922) relativa a Charles Ephrussi (Fig. 7). 

















Fig. 7
Léon Bonnat
Charles Ephrussi
1906



O quadro de Bonnat foi pintado antes da obra de Proust ter sido publicada e tal pode de facto ser uma opção. A descrição do retrato (“homem, uma vez de fraque no seu salão”) pode corresponder a uma de duas imagens já que a cena anteriormente transcrita, em que o narrador identifica a personagem do homem com chapéu alto recebeu, nos manuscritos de Proust, outro tratamento. Neles encontramo-la da seguinte forma:

«Havia também na casa da Duquesa de Guermantes, dois Elstir, réplicas de dois quadros célebres que estão no Luxemburgo e que se tornaram depois famosos sendo adquiridos pelo Luxemburgo. Um é um interior elegante. O marido que regressa do teatro ou de uma soirée deixa entrever sob o seu sobretudo que está de fato. É um casal que, ou está à espera de alguém ou cujos convidados acabam de sair. No marido – um homem grande barbudo – a oposição entre os folhos brancos da sua camisa e as nobres sinuosidades do fraque, dão-lhe uma elegância severa, digna de Vélasquez, a este fato do qual não se poderia crer que tanta beleza pudesse ser extraída. Está de pé atrás da sua mulher sentada num vestido de veludo preto cuja cauda [é como a] garupa escura e rugida de uma onda magnífica, emoldurada por uma espuma que jorra salpicada de rendas. As criancinhas estão à volta do casal, em ternas cores vegetais a condizer com as delicadas nuances dos tapetes, dos reposteiros e das flores nos vasos.»[6]

Atendendo a esta passagem, que nunca integrou a Recherche, Proust misturou no quadro de Elstir dois outros. A parte do quadro relativa à senhora com os seus dois filhos lembra, pela descrição, o de Renoir, Madame Charpentier and her Children (Fig. 8). O autor acrescenta o marido com uma descrição detalhada que permite identificar o modelo: o grande homem de barba que chega do teatro ou de um serão, com um sobretudo ou capa e se encontra de pé no seu salão faz referência, segundo Emily Eells[7], ao retrato de Théodore Duret (1838-1927) (Fig. 9) de Whistler. Este retrato da autoria de Whistler não se encontrava na exposição que Proust viu do pintor em Paris, em 1905. É provável que o tenha conhecido, tal como ao retrato de Robert de Montesquiou (1855-1921) (Fig. 10), modelo para o Barão de Charlus, através de uma reprodução. Neste retrato de corpo inteiro o defensor e biógrafo de Whistler traz no braço uma capa rosa, que tem como propósito não apenas dar um toque de cor à tela cinza e preto, mas também atenuar a simetria das linhas paralelas das pernas, amaciando o seu contorno pelo jogo das pregas. Para além disso a capa em seda rosa e o leque vermelho que a personagem tem na mão sugerem uma presença feminina. O lado direito do quadro está associado à sensualidade feminina, enquanto o chapéu alto no lado esquerdo sugere uma masculinidade sóbria e sem fantasia.[8] 
 













Fig. 8 
Pierre-Auguste Renoir
Madame Charpentier and her Children
1878
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque



















Fig. 9
Whistler (1834-1903)
Arrangement in Flesh Colour and Black: Portrait of Theodore Duret
1883
Metropolitan Museum Art, New York





















Fig. 10
Whistler
Arrangement in Black and Gold: Comte Robert de Montesquiou-Fezensac
1892
The Frick Collection, New York



Mas Kazuyoshi Yoshikawa aborda a questão de outra forma. Se é de facto Charles Ephrussi quem ali está nos dois quadros convém então procurar os retratos de Ephrussi e estabelecer a comparação. Encontramos o pastel de Louise Abbéma (1853-1927) em 1887 em que este se apresenta no seu gabinete, com um livro aberto na mão, como amante das artes e das letras que era.[9] Embora seja Ephrussi, não é, como diz o texto, um “homem de fraque no seu salão”. O retrato de Charles Ephrussi de Léon Bonnat é que corresponde mais à descrição. Não sabemos se ele se movimenta “no seu salão”, mas é, aparentemente, um “homem de fraque” e, tal como nos rascunhos citados anteriormente é um “grande homem de barba”. Mas há dois aspectos na pintura e na descrição que são antitéticos. É que segundo o livro, o homem do quadro de Elstir veste fraque; ou seja, laço branco, o que não acontece no retrato de Ephrussi da autoria de Bonnat. Sendo assim, Proust poderia ter ido buscar inspiração a outros retratos de mecenas de fraque que conhecia, atribuindo autoria a Elstir. De facto, este é um procedimento familiar: Proust sobrepõe vários modelos na tela de Elstir, como Théodore Duret de Whistler, Robert de Montesquiou também de Whistler (que não mostra um homem barbudo, mas um dandy e um colecionador de arte) e o Ephrussi de Léon Bonnat. Porém – e aqui se coloca o outro aspeto – de nenhum dos retratos destes homens, cada um com as suas pilosidades dando cumprimento ao “grande homem de barba”, se pode dizer que possui a “oposição entre os folhos brancos da sua camisa e as nobres sinuosidades do fraque”. 

A questão da barba é igualmente importante por outra razão. Tanto no retrato pintado por Bonnat como do quadro de Renoir em que Ephrussi é retratado, a barba está sempre bem visível. Obviamente Charles Ephrussi não era o único homem na altura com barba, no entanto o facto de ser de origem judaica dá mais importância à barba. Fica assim explicado porque é que o duque de Guermantes zomba desse homem de chapéu quando diz, depois do narrador lhe perguntar quem é o homem de chapéu alto que surge no quadro de Elstir:

«“Meu Deus”, respondeu-me ele, “eu sei que é um homem que não é um desconhecido nem um imbecil na sua especialidade, mas estou confundido com os nomes. Tenho-o aqui debaixo da língua, é o senhor… o senhor… enfim, não importa, já não sei. Swann dir-lhe-á, foi ele que fez com que aquelas coisas fossem compradas pela senhora de Guermantes […] O que lhe posso dizer é que essa criatura é para o senhor Elstir uma espécie de Mecenas que o lançou e que muitas vezes o tirou de dificuldades encomendando-lhe quadros. Por gratidão – se chamar a isso gratidão, depende dos gostos – ele pintou-o naquele lugar, onde com o seu ar endomingado faz um efeito bastante esquisito. Pode ser um figurão muito endinheirado, mas é evidente que não sabe em que circunstâncias se usa uma cartola»[10]

O duque não se lembra do nome do senhor retratado no quadro de Elstir, um desconhecido, mas diz que o “herói” Swann saberá de quem se trata. Nada mais irónico já que sabemos que o modelo de Swann é Ephrussi, o judeu insignificante que no quadro de Renoir (Le Déjeuner des Canotiers) parece deslocado graças à sobriedade com que se apresenta. Lembremo-nos que entre assuntos de homossexualidade e arte Proust aborda neste romance a questão política, mais concretamente, o caso Dreyfus[11] que agitou a época. Ao subestimar Ephrussi, o duque anuncia o que vai ser o fim de Swann – seu simétrico literário – no último volume da Recherche. 


[1] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes, pp. 423-424 [2] HOUPPERMANS, Sjef – Marcel Proust Aujourd’hui. Amesterdam: Editions Rodopi, 2003, pp.48 
[3] IDEM, Ibidem, pp.47-48 
[4] In <http://www.musee-fournaise.com/fournaise/fr/canotiers.asp?limage=undefined
[5] VVAA – Proust et ses peintres, pp. 87-94 
[6] Tradução da autora a partir do original: “Il y avait aussi chez la Duchesse de Guermantes, deux Elstir, répliques de deux tableaux célèbres qui sont au Luxembourg devenus depuis fameux et acquis depuis par le Luxembourg. L’un est un intériur élègant. Le mari qui rentre du théâtre ou de soirée, laisse oir sous son pardessus/ est en habit. C’est un couple qui attend peut-être du monde ou dont les invites viennent de partir. Chez le mari – un grand home barbu – l’opposition entre les blancs bouillons de sa chemise et les nobles sinuosités du frac, donnent [sic] une elegance severe, digne de Vélasquez, à notre habit de soirée d’où on n’êut pas cru qu’on pût extraire tant de beautè. Il est debout derrière sa femme assise dans une robe de velours noire, don’t le traîne qui a par terre la croupe foncée et grondante d’une magnifique vague, se borde d’une écume jaillissante et soulevée de denteles. De petits enfants sont autor du couple, en tendres couleurs presque végétales assorties aux delicates nuances, des tapis, des tentures des fleurs dans des vases.” IDEM, Ibidem, p. 42 (Os sublinhados são do autor) 
[7] IDEM, Ibidem, pp. 37-47 
[8]
IDEM, Ibidem, p. 43 
[9]
Existem outras imagens de Charles Ephrussi como o desenho de Jean Patricot de 1905 (Fig. 11) e uma fotografia, provavelmente, dentro dessa data (Fig. 12). 
[10]
PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes, p. 502 
[11]
O caso Dreyfus envolve o oficial francês Alfred Dreyfus (1859-1935) em 1859. Este oficial foi acusado de alta traição e contra ele foram movidos processos que mais tarde se revelaram fraudulentos e que foram levados a cabo graças a uma onde nacionalista que cobria a Europa. Convém lembrar que Dreyfus era judeu.

- o carteiro -

o espaço "gente gira é outra coisa" do Belogue. Cada um sabe de si...


















Marcel Duchamp a "xequematar"



















Jasper Johns a avacalhar



















Frank Lloyd Wright a pensar nas usonianas



















Dalí a ser Dalí



















Andy Wharhol a afiar o dente

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes de depois ou como vários testículos se transformam em mamocas, ou como, eu não sei, mas pelo o que tenho "ouvisto", em coisas "sexuaizes", isto anda tudo ligado. A primeira imagem é de uma cópia da escultura de Artémis de Éfeso. Artémis, ou Diana era deusa da fertilidade na mitologia clássica, aqui retratada, aparentemente, com muitos seios no corpo. Segundo uma teoria dos anos 80, não trata de mamocas, mas de testículos de boi, o que até faz sentido se notarmos que estas mamocas não têm mamilos e se pensarmos que o boi era símbolo da fertilidade no mundo antigo (não clássico). Mas também há quem continue a afirmar tratar-se de mamocas, frutos ou ovos. O "antes e depois" de hoje só incluía a primeira e a terceira imagem, mas encontrei a segunda que faz a passagem dos frutos aos seios. É uma imagem de uma grisalha de um quadro de Rubens. Uma grisalha é uma escultura simulada numa pintura. Na terceira imagem, vemos que a ideia da Artémis de Éfeso, com mamocas (deu-me vontade de escrever Mao-mocas) ou sem elas, dá aqui lugar a uma alegoria da Natureza. A Natureza próspera, provavelmente uma natureza revelada na Primavera, é aqui feminina, "polimástica" (não sei se esta palavra existe) e rica - daí a relação com a Primavera, já que esta terceira figura tem não só vários seios como está envolta em plantas e animais. Não quero estar para aqui a extrapolar, mas penso que será possível que em alguma altura esta mulher de vários seios tenha sido usada como uma alegoria da caridade nos sete actos de misericórdia. Não sei se se lembram, mas um dos actos era dar de comer aos famintos. E isto parece-me ligado ao que acontece com a última imagem em que a mulher, com os seus vários seios é a imagem da abundância e da abundância nasce a caridade.  quer dizer, depende... às vezes os mais caridosos são os que menos têm.  

















Artemis de Éfeso
Séc. I



















Rubens
The Discovery of the Child Erichthonius (pormenor)
1615
Liechtenstein Museum, Viena




















Tribolo
The Goddess of Nature
c. 1529
Musée National du Château, Fontainebleau
- carteiro -

[1]
poderia isto ser mais embaraçoso? podia, mas não era a mesma coisa

[2]
"Dust", no Egipto

[3]
Katie Paterson foi ao espaço e veio (clicar play em baixo)

segunda-feira, julho 15, 2013

45kgs



















sábado, julho 13, 2013

- original soundtrack -

"ih! olha aí conjuntão pesadão! olha ela chegando aí, gente! olha que beleza! Ai, toda cheirosa, toda bonitinha, toda gatinha, toda do papai! Olha que beleza rapaziada! Hein? Humm... boa noite pessoal" (gosto muito desta música. mas um dia destes deixa de fazer sentido. um dia destes o seu jorge vai ter de cantar antes "pobrezinha, pobrezinha, pobrezinha, pobrezinha, pobrezinha atum Auchan, pobrezinha, pobrezinha, pobrezinha, pobrezinhha, pobrezinha, nem pêra nem maçã". ou então, daqui por muito tempo vamos dizer aos nossos netos: "isto é do tempo em que ainda havia burguesia". e eles vão dizer: "xiiii, o avô é mesmo antigo." 















Vai no cabeleireiro
No esteticista
Malha o dia inteiro
Vida de artista

Saca dinheiro
Vai de motorista
Com seu carro esporte
Vai zoar na pista

Final de semana
Na casa de praia
Só gastando grana
Na maior gandaia
Vai pra balada
Dança bate estaca
Com a sua tribo
Até de madrugada

Burguesinha,
burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha
Só no filé

Burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha
Tem o que quer

Burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha
No croissant

Burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha, 
burguesinha
Suquinho de maçã

(Burguesinha, Seu Jorge)

- não vai mais vinho para essa mesa -

sonhei que namorava com o José Saramago (que deus o guarde!) e que ele quis acabar a relação. eu sofri. como sofri! lembro-me de acordar a chorar. no sonho ele desancou-me. do pior!. disse-me que nunca mais me queria ver "nem pintada". e depois alguém me perguntou "ainda namoras com ele?". "não", disse eu. "ele acabou comigo e nunca mais me quer ver". "mas olha que ele está sempre ali na pastelaria!". e eu disse "ai é? Então vou lá".

e foi isso  
- o carteiro -

primeira parte de um daqueles trabalhos que eu gosto de fazer. honestamente, acho que quem tiver paciência também vai gostar muito de ler. é sobre as relações entre a Recherche (para os amigos) e a pintura:


No início era o espargo; o molho de espargos. Ainda que Marcel Proust (1871-1922) mereça todos os encómios numa introdução condizente, o trabalho que aqui se inicia não pretende escalpelizar a grande obra (em todos os sentidos) de Proust, “Em Busca do Tempo Perdido”, mas apenas apontar e aprofundar as relações entre esta e as outras, as de arte, de que Proust se socorre. O autor faz referência a obras de arte de Vermeer ou Botticelli para descrever personagens, paisagens ou situações. No entanto, e como seria de esperar de uma obra desta dimensão, o que preside à enunciação destas obras é mais profundo e prende-se não só com a estrutura do livro – em constante relação com a realidade do autor – como também com uma teia de influências que procuraremos aqui mostrar. Partiremos de uma situação do livro, para falar dos intervenientes, obras que os ilustram e fusão subentendida entre realidade e ficção.

Por isso sim, no início era o espargo, o espargo que surge no terceiro volume da Recherche como tema de parte de uma intervenção da duquesa de Guermantes num convívio em sua casa. Para ser vista pelos convidados como uma pessoa de espírito, a duquesa tinha por hábito depreciar os seus bens para que os outros os apreciassem. Na dissertação desta personagem acerca das obras de arte que possuía surge este excerto:

«Swann tinha o atrevimento de querer que comprássemos “Um Molho de Espargos”. Até estiveram cá em casa alguns dias. Mas o quadro só tinha isso, um molho de espargos precisamente iguais aos que o senhor está neste momento a engolir. Mas eu recusei-me a engolir os espargos do senhor Elstir. Pedia por ele trezentos francos. Trezentos francos por um molho de espargos! Um luís, é o que vale, mesmo temporãos!»[1] 

O excerto merece várias análises: análise da observação da duquesa, das personagens referidas (Swann apresentado no primeiro volume e Elstir, um pintor), do quadro em si e das relações que tanto o quadro como as personagens estabelecem com o século XIX parisiense. Comecemos pela duquesa e o seu comentário beócio de quem confunde “a rima com o poema”. É que a duquesa atribui aos espargos pintados, o mesmo valor dos espargos que serve durante a refeição, como se algo do quotidiano não pudesse ser igualmente passível de constituir uma obra de arte. 

Quanto à personagem de Elstir, é sabido que o modelo de Proust para a construir é tanto Whistler como Manet (1832-1883), Renoir (1841-1919), Chardin (1699-1779), Vuillard (1868-1940) ou Degas (1834-1917); ou seja, para elaborar a personagem de um pintor Proust usa o conhecimento que tem de outros, sendo que em alguns casos o conhecimento é pessoal. Tanto Vuillard como Degas viviam como ermitas, tal como Elstir. Tanto um como outro podiam ser o modelo de Elstir, embora com menor probabilidade para Degas que abominava a homossexualidade.[2] A Whistler (1834-1903), Proust foi buscar o nome: “Elstir” vem de uma espécie de anagrama com a palavra “Whistler”, à qual se retiraram as letras W e H tendo trocado a ordem das restantes. O caso de Manet e Renoir é mais profundo. É que na realidade, Manet pintou dois quadros intitulados Une Botte d’Asperges (Fig. 1).

Fig. 1
Edouard Manet
Une Botte d’asperges
1880
Wallraf-Richartz-Museum, Colónia


Proust toma aqui Elstir por Manet e atribui a uma personagem ficcional a acção de uma pessoa real. Aliás, nesta mesma passagem, um pouco atrás o narrador refere a relação entre Elstir e Manet, como se o primeiro conhecesse a obra do segundo e assim os dois coexistissem:

«(…) o retrato solene que datava mais ou menos daquele mesmo período em que a personalidade de Elstir ainda não estava completamente definida e se inspirava um pouco em Manet.»[3]

Mas a duquesa vai mais longe ao baralhar realidade com ficção quando diz, ainda um pouco antes: «(…) olhe, acho que Zola escreveu justamente um estudo sobre Elstir (…).»[4] Obviamente Zola (1840-1902), personagem real, não pode ter escrito um estudo sobre Elstir, personagem criada por Proust, sendo para mais os dois coetâneos. O que se passa é que quando a duquesa faz esta referência a Zola ela convida-nos a dar uma volta pela obra de Zola que escreveu em 1867, isso sim, um estudo intitulado “Edouard Manet”.

Mas voltemos aos espargos: um dos quadros Une Botte d’Asperges que Manet pintou foi muito apreciado por um crítico de arte e coleccionador do tempo de seu nome Charles Ephrussi (1849-1905). Ephrussi gostou tanto do Une Botte d’Asperges que pagou por ele mais do que aquilo que o pintor pedia. Manet pedia 800 francos e Ephrussi deu 1000. Manet vendeu o quadro, mas acabou por pintar outro, apenas com um espargo (Fig. 2), quadro esse que ofereceu a Charles Ephrussi e que fez acompanhar de um bilhete que dizia o seguinte: “falta um espargo ao molho que levou”.[5] Falamos aqui de Charles Ephrussi porque ele foi uma das bases para a construção da personagem Swann que é quem, no livro, aconselha à duquesa de Guermantes a aquisição do Elstir. Mas como vimos, a personagem de Elstir também tinha sido construída tendo por base outro autor: Renoir. A relação que este estabelece com Elstir vem por intermédio de Swann/Ephrussi, razão pela qual vale a pena conhecer um pouco mais desta personagem.













Fig. 2
Edouard Manet
L'asperge
1880
Musée d'Orsay, Paris

Os Ephrussi eram uma família austríaca e judia de banqueiros que brilhou na sociedade parisiense e vienense do século XIX. Charles Ephrussi, em especial, era um amante e coleccionador de arte, apoiante dos Impressionistas[6] em ascensão, entre eles, Manet que pintou um dos mais famosos quadros do Impressionismo: Le Déjeuner sur l’Herbe (Fig. 3). Este quadro figurou no “Salon des Refusés” em 1863 causando grande escândalo pois colocou ante o observador não somente duas mulheres em convívio com dois homens entre árvores e rio, mas duas mulheres despidas, sem identidade sacra, junto a dois homens vestidos, todos a observarem o observador. É aqui importante referir que as jovens modelos não estão nuas; mas sim despidas. Estar nu parece ser, na história da arte, algo que aproxima o sujeito de um estado embrionário, puro. Estas mulheres estão despidas pois junto a elas vemos as suas roupas. E se estão despidas é porque, ou alguém as despiu ou elas se despiram. Se alguém as despiu elas serão umas mundanas que a isso se sujeitam; se se despiram serão ainda piores porque o fizeram, atendendo ao bom ambiente da cena, de livre vontade. 














Fig. 3
Edouard Manet
Le Déjeuner sur l'Herbe
1863
Musée d'Orsay, Paris

Um dos autores que criticou este quadro foi Odilon Redon (1840-1916) cujo ponto de vista é contado na Recherche. A propósito dele o autor simbolista escreve:

«O pintor não está a ser inteligente se, após ter pintado uma mulher nua, ela nos deixa com a sensação que se vai vestir novamente… Há uma no Le Déjeuner sur l’Herbe de Manet que se apressa a fazê-lo, depois do desconforto de estar sentada na relva fria ao lado dos senhores de aparência severa que junto a ela se encontram.»[7]

Outro modelo de Proust para Swann foi Charles Haas (1832-1902), um dandy judeu que tentava naqueles tempos fazer passar a sua origem despercebida.[8] Ora, Charles Haas está presente no quadro de Tissot (1836-1902) (Fig. 4), Tissot este que talvez numa graça entre pares, pintou um quadro muito semelhante ao Le Dejeuner sur l’Herbe de Manet, ao qual chamou La Partie Carrée (Fig. 5), mas onde as figuras femininas estão vestidas. 












Fig. 4
James Tissot
Le Cercle de la Rue Royale
1868
Musée d'Orsay, Paris
















Fig. 5 
James Tissot 
La Partie Carré 
1870 
Coleção Privada

O quadro de Manet de 1863 remete-nos para o poema “De Tarde” de Cesário Verde (1855-1886):

«Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!»


Ainda que não se saiba se Cesário Verde conhecia ou tinha tido contacto com o quadro de Manet, a verdade é que encontramos alguns aspetos em comum como “pique-nique de burguesas” (as personagens do quadro estão a fazer um pique-nique), “Foste colher” (a figura feminina em fundo parece estar a colher ou apanhar algo), “Nós acampámos” (no sentido de instalar no campo), “talhadas de melão, damascos/E pão-de-ló molhado em malvasia” (na pintura, no chão, há pão e frutos) “dois seios como duas rolas” (a figura feminina em primeiro plano está despida e tem aquilo a que se chamava, e correspondia ao ideal de beleza, seios como maçãs ou em forma de maçã – seios pequenos, redondos e firmes). Mas Cesário Verde não foi o único autor português que tomou o quadro de Manet como inspiração. Referimos que se trata de inspiração pois neste caso não se coloca o problema da precedência do quadro sobre o poema. O texto em causa é de Nuno Júdice (1949) e trata-se de “Almoço na Relva com Gato à Espreita”:

«Às vezes quando corto a relva, no jardim,
ouvindo os pássaros chilrear, interrompo-me
a pensar: e se, debaixo do pinheiro que cheira
a resina, se juntassem aqueles homens de fato e
lavallière, com barba e chapéus pretos, e
as mundanas nuas, rindo-se, como se vê no quadro
de manet? Eu não me sentaria na relva, como
eles: puxava uma cadeira, daquelas de baloiço,
que tenho na casa de arrumação; abria
o saco das compras, onde estão cadernos, livros,
a máquina fotográfica; e contava-lhes,
em francês, aquela história do gato chinês:
“Um dia, o sábio U Li-Po foi, de burro,
à feira. No caminho, parou debaixo de uma
ameixoeira: o sol era forte, e um sábio, mesmo
quando é chinês, e tem chapéu de mandarim,
não aguenta tantas horas à torreira. Quando dormia,
ouviu perguntar: quem és, U Li-Po? A voz pareceu-lhe
a dele; e respondeu: Por que me pergunto a mim
próprio o meu próprio nome? Mas a voz insistiu:
Quem és? Então, U Li-Po acordou: e viu um gato,
com chapéu de mandarim, a desenhar o seu rosto
num caderno de arroz. Quem és tu, ó gato? Eu
sou U Li-Po, disse-lhe o gato. E U Li-Po ficou sem
saber se o gato era ele no sonho em que estava, ou
se ele era o gato à sombra da ameixoeira.”
Os homens talvez se rissem; e as mundanas, coradas,
juntar-se-iam debaixo dos arbustos, tapando-se
com folhas de vinha (que felizmente, estão mirradas
e já não tapam grande coisa). Eu, então, pergun-
tar-lhes-ia de que sonho é que vêm? O de manet,
ainda cheio de flores primaveris e de botões
brancos como os seios das mundanas? Ou o meu,
já cansado de cortar a relva – e farto do gato que,
do telhado, se ri para mim lambendo os bigodes de chinês?»


Neste caso os elementos presentes tanto no poema como no quadro são mais evidentes, já que Nuno Júdice cita a pintura de Manet. Temos assim “homens de fato e lavallière, com barba e chapéus pretos, as mundanas nuas”, “ameixoeiras” e “arbustos”. 

(continua...)


[1] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes. Mem Martins: Relógio d’Água, 2003, p. 502 
[2] ALEXANDER, Patrick – Who’s Who in Proust. S. l.: Patrick Alexander, 2007, p. 28 
[3] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes, pp. 501-502 
[4] IDEM, Ibidem, pp. 501 
[5] “Merci pour la Botte; il manquait une”. BROMBERT, Beth Archer – Edouard Manet: Rebel in a Frock Coat. Chicago: Chicago University Press, 1997, p. 439 
[6] O prestígio dos Impressionistas inscrevia-se de forma anagramática na palavra Simonet (Monet, Sisley & Cia, passamos para Si+Monet=Simonet). Simonet é o nome de família de Albertine, o amor do narrador que representa, a par de Elstir a pintura já que Proust a cristaliza na imagem que tem do bando de jovens na praia, a que Albertine pertence. VVAA – Proust et ses peintres. Amesterdão: Editions Rodopi, 2000, p. 59 
[7] Tradução da autora do original: “The painter is not being inteligente if, after he has painted a nude woman, she leaves us with the feeling that she is about to get dressed again… There i sone in Manet’s Le Déjeuner sur l’Herbe who will hasten to do so, after the discomfort of sitting on the cold grass beside the down-to-earth gentlemen she is with.” VVAA - Manet, 1832-1883: Galeries Nationales Du Grand Palais, Paris, April 22-August 8, 1983, the Metropolitan Museum of Art, New York, September 10-November 27, 1983. New Iorque: Metropolitan Museum of Art, 1983, p. 170 ISBN 0-87099-359-3 
[8] Vemo-lo no extremo direito do quadro de Tissot de 1868, Le Cercle de la Rue Royale, que retrata o grupo de membros deste clube de acesso restrito. No romance de Proust, Swann era um dos poucos judeus que frequentava o exclusivo do Jockey Club.