- ars longa, vita brevis -
hipócrates
o problema do livro é que dá como certo, em várias ocasiões - isto para não dizer que é esse o seu tema - a influência directa do De Rerum Natura na mudança de pensamento da Idade Média para a Idade Moderna. o manuscrito por si só, e por melhor que seja, não pode ter mudado todo o século XV. Lembremos que a Idade Média já há muito tempo não é vista como "período das trevas". O exemplo mais paradigmático é também literal: o vidro, ainda que não tão aperfeiçoado como hoje, já existia e permitia que os interiores fossem iluminados pela luz natural durante mais tempo. Desde o século XIII as relações feudais vinham a mudar e renasceu o mundo urbano que desde a Antiguidade tinha ficado esquecido. Territórios como Portugal, que não queriam pagar mais caro por certas mercadorias que lhe chegavam através de intermediários, empreenderam as viagens transcontinentais e transoceânicas necessárias para chegar de outra forma aos mesmos domínios. Estas viagens deitaram por terra as ideias da Idade Média de um mundo plano e no centro do universo em torno do qual tudo girava. No Renascimento, muitas coisas de facto mudaram, mas outras não.
Ora, primeiro, o autor coloca no "mesmo saco" as diferentes fases da Idade Média. O facto do De Rerum Natura ter sido escrito numa época de primazia dos livros, e de depois se ter seguido - é verdade - um período em que a leitura e a escrita não foi fomentada (período esse do século V até ao século XV, mais ou menos), não faz com que toda a Idade Média tenho sido uma época de desconhecimento da leitura e da escrita. Os livros vindos da Antiguidade continuavam a existir, em mosteiros e em certas cortes como a de Carlos Magno. Mais ainda: a escrita foi impulsionada, principalmente a de temática religiosa, mas não só. Então e as trovas, os romances de cavalaria, os poemas de autores como Petrarca ou Dante (que foram justamente influenciados pelos textos clássicos)? Segundo: o autor dá a entender que o De Rerum Natura veio dar a conhecer a nova ideia de que não existia vida para além da morte, que o hedonismo era a via, que Deus não existia, e o objectivo da vida era o prazer e não o castigo, a dor. Se o manuscrito tivesse de facto sido tão importante, o Cristianismo tinha morrido no Renascimento e não foi isso que aconteceu. O que aconteceu, isso sim, foi uma coexistência entre os princípios modernos e a ideia do divino que só sofre um verdadeiro abalo com a Revolução Francesa e o Iluminismo. Por outro lado, se o mesmo manuscrito tivesse mudado a face do mundo e aberto as portas ao Renascimento, o que se observava era que a partir daí toda a gente viveria a dar largas à sua imaginação no que concerne ao prazer. De facto, tanto houve uma explosão de sensualismo (com os nus na arte, com o romance como tipologia), como o seu contrário (a maior repressão imposta pela Contra Reforma, por exemplo, ainda que mais tarde). O que se observa, neste livro como em muitas outras coisas, é a ideia errada que após a queda de Roma e as invasões bárbaras, a Europa caiu na mais profunda escuridão, que o mundo Antigo foi apagado da memória, e que por consequência, poetas, escultores e pintores deixaram de saber escrever, esculpir e pintar. nada mais errado: as invasões trouxeram de facto a destruição de muito do existente, mas não apagaram a capacidade de desenhar, de esculpir, de escrever. Os escultores da Idade Média esculpiam assim - sem respeito pelas proporções - não porque não soubessem esculpir, mas porque retratar com naturalismo não era o seu propósito.
a parte boa do livro é aquela em que o autor, levado pela narrativa, descreve o tempo em que Poggio trabalhou para o Papa Baldassare Cossa de forma muito natural, sem necessitar - como acontece em outras partes - de sublinhar a relação entre o De Rerum Natura e o pensamento renascentista, não conseguindo de facto concretizar essa ideia.
4 Comments:
Portanto, há gente a escrever sobre a Idade Média sem ter lido Tatarkiewicz e visto, por exemplo, Andrei Rublev. Estamos sempre a aprender.
Caro Pedro:
Para além do George Duby (O tempo das catedrais), era um outro sobre estética medieval, mas depois digo com mais certeza.
outro livro que tem uma boa introdução acerca da estética medieval (desmistificando a passagem da Idade Média para o Renascimento) é a "Arte do Ocidente" de Henri Focillon.
Ou "A Estética da Idade Média" de Fumagalli Brocchieri, da Editorial Estampa (esta colecção é fácil de arranjar e relativamente em conta)
Obrigado.
Os três existem na biblioteca da Póvoa e já estão, aliás, aqui, na minha mesa.
No meu trabalho de estética medieval, os dois livros de fundo que usei foram:
- Tatarkiewicz, W. (1970). History of Aesthetics (Vols. II - Medieval Aesthetics) -(R. M.
Montegomery, Trad.) Polish Scientific Publishers.
- Eco, U. (1989). Arte e Beleza na Estética Medieval. (A. Guerreiro, Trad.) Editorial
Presença.
Mas estudava a estética de autores medievais e não 'a estética medieval'.
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