quinta-feira, julho 18, 2013

- o carteiro -

(segunda parte. a primeira está aqui)

Mas voltemos a Charles Ephrussi. Este crítico francês também foi pintado por Renoir, não diretamente, como num retrato, mas de forma dissimulada num quadro que também se intitula Dejeuner, mas neste caso, Le Déjeuner des Canotiers (Fig. 6).













Fig. 6 
Pierre-Auguste Renoir
Le Déjeuner des Canotiers
1880-1881
The Phillips Collection, Washington



Chegamos até esse quadro não através dos estudos em torno do mesmo – no que concerne à identificação das personagens – mas da descrição que surge no segundo volume do livro de Proust. Num serão em casa dos Guermantes, o narrador pede ao duque que lhe mostre os quadros de Elstir e Proust descreve aquilo que se acredita ser Le Déjeuner des Canotiers:

«Comoveu-me reencontrar em dois quadros (esses mais realistas, e de uma fase anterior) o mesmo homem, uma vez de fraque no seu salão e outra de jaquetão e chapéu alto numa festa popular à beira de água, onde evidentemente não tinha qualquer papel a desempenhar, e que provava que para Elstir ele não era apenas um modelo habitual, mas um amigo, quiçá um protetor, de quem gostava […] A festa à beira de água tinha algo de mágico. O rio, os vestidos das mulheres, as velas dos barcos, os inúmeros reflexos de uns e outras estavam lado a lado naquele quadrado de pintura que Elstir recortara numa maravilhosa tarde. O que deslumbrava no vestido de uma mulher que por um momento parara de dançar por causa do calor e por estar sem fôlego, era igualmente rutilante, e da mesma maneira, no pano de uma vela parada, na água do pequeno porto, no pontão de madeira, na folhagem e no céu.»[1] 


O narrador refere que em dois quadros de Elstir figuravam duas personagens muito semelhantes, provavelmente a mesma pessoa. Descreve também um quadro que em tudo é semelhante ao quadro de Renoir. De facto Proust havia visto o quadro de Renoir, juntamente com Ephrussi na coleção de Durand-Ruel (1831-1922).[2] Ambos apresentam o barco no fundo com a vela branca, a folhagem, a cerca em madeira, as jovens sentadas ou recostadas, os homens mais ou menos compostos. Mas o narrador olha para um em particular: o homem que está vestido de negro, com chapéu na cabeça e de costas em pano de fundo. Esse homem foi identificado [3] com Charles Ephrussi que como mecenas e amigo destes pintores figurava logicamente nas obras dos mesmos. Mas lá estão presentes igualmente outros nomes relevantes, como a atriz Ellen Andrèe (1857-1925), no centro a levar um copo aos lábios; o barão Raoul Barbier de chapéu castanho e rosto dirigido para a filha do proprietário; a filha do proprietário, Alphonsine Fournaise (1845-1937), encostada ao gradeamento de madeira; Alphonse Fournaise (1823-1905), o dono da Maison Fournaise, também encostado ao gradeamento, de chapéu de palha; o pintor Caillebotte (1848-1894) sentado ao contrário na cadeira, regata branca e a olhar para Aline Charigot; Aline Charigot (1859-1915), amante de Renoir e depois sua mulher a pegar num gato, Angèle Legault ao lado de Caillebotte; o jornalista Adrien Maggiolo de pé junto a Caillebotte e a Angèle Lagault e atrás, de pé, Eugène Pierre Lestringez e Paul Lohote com o braço a cingir a cintura da atriz Jeanne Samary (1857-1890). Em pano de fundo encontramos então de costas para o observador Charles Ephrussi e de frente para ele, Jules Laforgue (1860-1887), poeta simbolista (Fig. 6a).[4]














Pierre-Auguste Renoir Le Déjeuner des Canotiers (1 – Ellen Andrèe (1857-1925); 2 - o barão Raoul Barbier; 3 - Alphonsine Fournaise (1845-1937); 4 - Alphonse Fournaise (1823-1905); 5 - Caillebotte (1848-1894); 6 - Aline Charigot (1859-1915); 7 - Angèle Legault; 8 - Adrien Maggiolo; 9 - Eugène Pierre Lestringez; 10 - Paul Lohote; 11 - Jeanne Samary (1857-1890); 12 - Ephrussi e 13 - Jules Laforgue (1860-1887)).


O outro quadro de que Proust fala na citação anterior pode ser visto numa inversão da ideia que até aqui tem sido habitual, em que os quadros de autores reais como Manet ou Monet inspiram a criação de imagens mentais no decorrer da leitura do livro. Segundo Kazuyoshi Yoshikawa,[5] o modelo para o retrato de Elstir é uma pintura de Léon Bonnat (1833-1922) relativa a Charles Ephrussi (Fig. 7). 

















Fig. 7
Léon Bonnat
Charles Ephrussi
1906



O quadro de Bonnat foi pintado antes da obra de Proust ter sido publicada e tal pode de facto ser uma opção. A descrição do retrato (“homem, uma vez de fraque no seu salão”) pode corresponder a uma de duas imagens já que a cena anteriormente transcrita, em que o narrador identifica a personagem do homem com chapéu alto recebeu, nos manuscritos de Proust, outro tratamento. Neles encontramo-la da seguinte forma:

«Havia também na casa da Duquesa de Guermantes, dois Elstir, réplicas de dois quadros célebres que estão no Luxemburgo e que se tornaram depois famosos sendo adquiridos pelo Luxemburgo. Um é um interior elegante. O marido que regressa do teatro ou de uma soirée deixa entrever sob o seu sobretudo que está de fato. É um casal que, ou está à espera de alguém ou cujos convidados acabam de sair. No marido – um homem grande barbudo – a oposição entre os folhos brancos da sua camisa e as nobres sinuosidades do fraque, dão-lhe uma elegância severa, digna de Vélasquez, a este fato do qual não se poderia crer que tanta beleza pudesse ser extraída. Está de pé atrás da sua mulher sentada num vestido de veludo preto cuja cauda [é como a] garupa escura e rugida de uma onda magnífica, emoldurada por uma espuma que jorra salpicada de rendas. As criancinhas estão à volta do casal, em ternas cores vegetais a condizer com as delicadas nuances dos tapetes, dos reposteiros e das flores nos vasos.»[6]

Atendendo a esta passagem, que nunca integrou a Recherche, Proust misturou no quadro de Elstir dois outros. A parte do quadro relativa à senhora com os seus dois filhos lembra, pela descrição, o de Renoir, Madame Charpentier and her Children (Fig. 8). O autor acrescenta o marido com uma descrição detalhada que permite identificar o modelo: o grande homem de barba que chega do teatro ou de um serão, com um sobretudo ou capa e se encontra de pé no seu salão faz referência, segundo Emily Eells[7], ao retrato de Théodore Duret (1838-1927) (Fig. 9) de Whistler. Este retrato da autoria de Whistler não se encontrava na exposição que Proust viu do pintor em Paris, em 1905. É provável que o tenha conhecido, tal como ao retrato de Robert de Montesquiou (1855-1921) (Fig. 10), modelo para o Barão de Charlus, através de uma reprodução. Neste retrato de corpo inteiro o defensor e biógrafo de Whistler traz no braço uma capa rosa, que tem como propósito não apenas dar um toque de cor à tela cinza e preto, mas também atenuar a simetria das linhas paralelas das pernas, amaciando o seu contorno pelo jogo das pregas. Para além disso a capa em seda rosa e o leque vermelho que a personagem tem na mão sugerem uma presença feminina. O lado direito do quadro está associado à sensualidade feminina, enquanto o chapéu alto no lado esquerdo sugere uma masculinidade sóbria e sem fantasia.[8] 
 













Fig. 8 
Pierre-Auguste Renoir
Madame Charpentier and her Children
1878
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque



















Fig. 9
Whistler (1834-1903)
Arrangement in Flesh Colour and Black: Portrait of Theodore Duret
1883
Metropolitan Museum Art, New York





















Fig. 10
Whistler
Arrangement in Black and Gold: Comte Robert de Montesquiou-Fezensac
1892
The Frick Collection, New York



Mas Kazuyoshi Yoshikawa aborda a questão de outra forma. Se é de facto Charles Ephrussi quem ali está nos dois quadros convém então procurar os retratos de Ephrussi e estabelecer a comparação. Encontramos o pastel de Louise Abbéma (1853-1927) em 1887 em que este se apresenta no seu gabinete, com um livro aberto na mão, como amante das artes e das letras que era.[9] Embora seja Ephrussi, não é, como diz o texto, um “homem de fraque no seu salão”. O retrato de Charles Ephrussi de Léon Bonnat é que corresponde mais à descrição. Não sabemos se ele se movimenta “no seu salão”, mas é, aparentemente, um “homem de fraque” e, tal como nos rascunhos citados anteriormente é um “grande homem de barba”. Mas há dois aspectos na pintura e na descrição que são antitéticos. É que segundo o livro, o homem do quadro de Elstir veste fraque; ou seja, laço branco, o que não acontece no retrato de Ephrussi da autoria de Bonnat. Sendo assim, Proust poderia ter ido buscar inspiração a outros retratos de mecenas de fraque que conhecia, atribuindo autoria a Elstir. De facto, este é um procedimento familiar: Proust sobrepõe vários modelos na tela de Elstir, como Théodore Duret de Whistler, Robert de Montesquiou também de Whistler (que não mostra um homem barbudo, mas um dandy e um colecionador de arte) e o Ephrussi de Léon Bonnat. Porém – e aqui se coloca o outro aspeto – de nenhum dos retratos destes homens, cada um com as suas pilosidades dando cumprimento ao “grande homem de barba”, se pode dizer que possui a “oposição entre os folhos brancos da sua camisa e as nobres sinuosidades do fraque”. 

A questão da barba é igualmente importante por outra razão. Tanto no retrato pintado por Bonnat como do quadro de Renoir em que Ephrussi é retratado, a barba está sempre bem visível. Obviamente Charles Ephrussi não era o único homem na altura com barba, no entanto o facto de ser de origem judaica dá mais importância à barba. Fica assim explicado porque é que o duque de Guermantes zomba desse homem de chapéu quando diz, depois do narrador lhe perguntar quem é o homem de chapéu alto que surge no quadro de Elstir:

«“Meu Deus”, respondeu-me ele, “eu sei que é um homem que não é um desconhecido nem um imbecil na sua especialidade, mas estou confundido com os nomes. Tenho-o aqui debaixo da língua, é o senhor… o senhor… enfim, não importa, já não sei. Swann dir-lhe-á, foi ele que fez com que aquelas coisas fossem compradas pela senhora de Guermantes […] O que lhe posso dizer é que essa criatura é para o senhor Elstir uma espécie de Mecenas que o lançou e que muitas vezes o tirou de dificuldades encomendando-lhe quadros. Por gratidão – se chamar a isso gratidão, depende dos gostos – ele pintou-o naquele lugar, onde com o seu ar endomingado faz um efeito bastante esquisito. Pode ser um figurão muito endinheirado, mas é evidente que não sabe em que circunstâncias se usa uma cartola»[10]

O duque não se lembra do nome do senhor retratado no quadro de Elstir, um desconhecido, mas diz que o “herói” Swann saberá de quem se trata. Nada mais irónico já que sabemos que o modelo de Swann é Ephrussi, o judeu insignificante que no quadro de Renoir (Le Déjeuner des Canotiers) parece deslocado graças à sobriedade com que se apresenta. Lembremo-nos que entre assuntos de homossexualidade e arte Proust aborda neste romance a questão política, mais concretamente, o caso Dreyfus[11] que agitou a época. Ao subestimar Ephrussi, o duque anuncia o que vai ser o fim de Swann – seu simétrico literário – no último volume da Recherche. 


[1] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes, pp. 423-424 [2] HOUPPERMANS, Sjef – Marcel Proust Aujourd’hui. Amesterdam: Editions Rodopi, 2003, pp.48 
[3] IDEM, Ibidem, pp.47-48 
[4] In <http://www.musee-fournaise.com/fournaise/fr/canotiers.asp?limage=undefined
[5] VVAA – Proust et ses peintres, pp. 87-94 
[6] Tradução da autora a partir do original: “Il y avait aussi chez la Duchesse de Guermantes, deux Elstir, répliques de deux tableaux célèbres qui sont au Luxembourg devenus depuis fameux et acquis depuis par le Luxembourg. L’un est un intériur élègant. Le mari qui rentre du théâtre ou de soirée, laisse oir sous son pardessus/ est en habit. C’est un couple qui attend peut-être du monde ou dont les invites viennent de partir. Chez le mari – un grand home barbu – l’opposition entre les blancs bouillons de sa chemise et les nobles sinuosités du frac, donnent [sic] une elegance severe, digne de Vélasquez, à notre habit de soirée d’où on n’êut pas cru qu’on pût extraire tant de beautè. Il est debout derrière sa femme assise dans une robe de velours noire, don’t le traîne qui a par terre la croupe foncée et grondante d’une magnifique vague, se borde d’une écume jaillissante et soulevée de denteles. De petits enfants sont autor du couple, en tendres couleurs presque végétales assorties aux delicates nuances, des tapis, des tentures des fleurs dans des vases.” IDEM, Ibidem, p. 42 (Os sublinhados são do autor) 
[7] IDEM, Ibidem, pp. 37-47 
[8]
IDEM, Ibidem, p. 43 
[9]
Existem outras imagens de Charles Ephrussi como o desenho de Jean Patricot de 1905 (Fig. 11) e uma fotografia, provavelmente, dentro dessa data (Fig. 12). 
[10]
PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes, p. 502 
[11]
O caso Dreyfus envolve o oficial francês Alfred Dreyfus (1859-1935) em 1859. Este oficial foi acusado de alta traição e contra ele foram movidos processos que mais tarde se revelaram fraudulentos e que foram levados a cabo graças a uma onde nacionalista que cobria a Europa. Convém lembrar que Dreyfus era judeu.

2 Comments:

Anonymous pmramires said...

Escapou-me alguma coisa ou falta a figura 10 («tal como ao retrato de Robert de Montesquiou (1855-1921) (Fig. 10)»), 11 e 12 (nota 9)?



19/7/13 2:18 da tarde  
Blogger Belogue said...

tem toda a razão. fiz a correcção e a imagem já se encontra lá. obrigada

19/7/13 11:15 da tarde  

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