segunda-feira, setembro 22, 2008

- o carteiro -
[diz-se que um dia Berado chegou a casa com uma reprodução da Mona Lisa, a achar que era a verdeira e ofereceu-a à esposa. esta explicou-lhe que a verdadeira estava no Louvre.]
A bem dizer, assim que ninguém nos ouça, toda a arte é kitsch porque a arte não é o objecto representado, mas sim a representação do objecto. E a bem da verdade, o kitsch na arte é só uma parte do kitsch; ou como dizia alguém que conheço "is just a part of life". A coisa foi sempre vista como uma questão de gosto e como uma questão de posse: as classes mais altas desdenhavam os gostos, gestos e usos da classes mais baixas pois não julgavam capazes de comprá-la. Veja-se o exemplo das cores e das vestes: nem todos podiam vestir púrpura ou dourado. Eram cores que estavam reservadas para a representação de divindades ou para uso e representação de reis e imperadores. Não porque o púrpura tivesse um significado especial, mas porque o pigmento era muito caro e difícil de obter. Como as classes mais desfavorecidas não podiam adquirir tecidos com essas cores, vestiam as outras, as que eram de fácil obtenção e circulação comum. Criou-se logo aí a separação entre quem era bom e especial e entre quem era irrelevante. A força das classes mais pobres nunca foi suficiente para destronar este tipo de pensamento (o mesmo se aplicava à comida).
Hoje, quem determina as modas não é o poder religioso ou político, nem mesmo o poder económico, mas a indústria de tendências. São eles, os artistas, os escritores, os estilistas e os académicos em geral que dizem aquilo que se vai usar a todos os níveis. São também eles que determinam que as imagens do moinho, do Jeff Koons e as restantes (e tantas outras que não coloquei aqui), são kitsch, que os seus executores são kitsch, que os produtores e os fotógrafos são kitsch, mas que quem usufrui delas com verdadeiro prazer é apenas uma pessoa sem gosto. Porque não ter gosto e ser kitsch é diferente e ser kitsch pode ser visto como uma excentricidade reversível, enquanto o gosto, diz-se, ou nasce connosco ou... não.

Jeff Koons
Winter Bears
1988
Tate Gallery

A palavra - já devem ter lido isto um cento de vezes - tem várias origens. Uns dizem que a palavra remonta ao século XIX quando num episódio mal explicado, uns turistas americanos de visita a Munique pretenderam comprar uma peça de arte. Não queriam no entanto gastar muito e por isso preferiram comprar o esquisso do que a obra acabada. Esquisso em inglês é "sketch". A palavra poderia ter vindo daí para designar as obras de arte que não sendo as reais, satisfazem os gostos dos menos exigentes, por serem menos onerosas. Havia também já no século XVIII a palavra "kitschen" para designar uma actividade invulgar como apanhar lama na estrada ou mesmo pintar móveis com a intenção que pareçam antigos. (a segunda actividade percebo de que forma se relaciona com kitsch, mas a primeira não). Há ainda outras origens ou outras palavras que podem ter originado esta tal como o verbo "vekitschen" que queria dizer "vender a preços baixos". Como podemos ver o kitsch está na sua origem associado à dialéctica rico/pobre, caro/barato.

quarto old mill no Madonna Inn, San Luis Obispo, California (mais quartos aqui)

O kitsch tanto pode ser o que Thomas Kinkade faz (no seu site podemos ler que ele é o artista americano mais coleccionável e que a industria associada ao seu nome que vende reproduções fotográficas retocadas a pinceladas move milhões de dólares anualmente. Segundo a lógica isto já faria de Kinkade um tipo com bom gosto), como o que faziam as ditaduras de Estaline e Hitler ao considerar degenerada toda a arte que não era a sua e criando mesmo uma nova estética com valores muito bem definidos e que glorificavam, invariavelmente os próprios regimes. Neste caso e mais uma vez, segundo a lógica, o poder deveria ter bom gosto, mas ao criar um sistema restrito de signos (e ao imitarem a imitação - porque se a arte já é imitação da natureza, a arte kitsch é imitação da imitação da natureza), a arte ariana e a estalinista tornam-se kitsch.

Liberace

A própria separação entre arte e arte kitsch não é justa e pode mesmo dizer-se que é tendenciosa pois uma é Arte, como Deus e a outra é arte kitsch, como por exemplo, o Deus dos Muçulmanos. Ideia semelhante tinha o crítico de arte Clement Greenberg que defendia que a arte kitsch pode ser um divertimento para os que procuram o prazer estético imediato ou que não têm grandes exigências em relação ao mesmo, mas podia ser perigoso para os mais inocentes. A grande diferença entre quem gosta de kitsch e quem nem gosta, é a tolerância. Os adeptos da "grande arte", da arte dos museus, da arte com valor inquestionável, a arte validada pelos críticos, não aceita o kitsch, despreza o kitsch e age da mesma forma para com os cultores do kitsch. Estes por seu lado tanto apreciam o kitsch como a "grande arte". A cultura visual voluntária faz por cada um deles o seu papel. Outra ideia e que vem corroborar a primeira frase deste texto ("A bem dizer, assim que ninguém nos ouça, toda a arte é kitsch porque a arte não é o objecto representado, mas sim a representação do objecto.") é a de Schopenhauer quando nos seus ensaios define a diferença entre "artístico" e "interessante". Para o filósofo artístico poderia ser tudo, mas interessante estava reservado para os especiais. Tal como a diferença entre único e singular: todos somos únicos, mas nem todos somos singulares. A sua luta era contra a arte setecentista que imitava tão bem a natureza que nos fazia crer que as naturezas mortas não eram planas, mas tridimensionais e provocavam em nós sensações semelhantes ao que é retratado em si. Esta já é uma visão mais extrema, uma vez que cria, entre a arte ainda mais um nicho de diferença entre a verdadeira e a kitsch.

Adolphe-William Bouguereau
Child at Bath
1886
Henry Art Gallery, University of Washington


O que distingue então o kitsch da outra arte? Primeiro, quem faz, quem compra, quem gosta. Depois, o facto de o kitsch levar consigo despojos de outras obras de arte tentando provocar em quem vê a mesma sensação daquilo que está na génese de cada um dos despojos: Koons utiliza a cerâmica, os quartos no Madonna Inn têm sempre um tema que é transposto literalmente para o espaço, Liberace é uma mistura entre Drag Queen e gala de entrega de prémios (veja-se a enfadonha entrevista que concedeu a Edward R. Murrow no filme "Good night and Good Luck") e os quadros apresentados são versões de quadros de pintores clássicos e pintores impressionistas.

Giovanni Boldini
Testa di giovane su fondo rosa
1912
Colecção Privada

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

O seu blogue é sempre interessante ! mesmo quando não concordo consigo ! continue sempre ...
não se esqueça,
que "agua mole em pedra dura tanto bate até que fura"

25/9/08 2:38 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O seu blogue é sempre interessante ! mesmo quando não concordo consigo ! continue sempre ...
não se esqueça,
que "agua mole em pedra dura tanto bate até que fura"

25/9/08 2:38 da tarde  
Blogger Belogue said...

olá maria. obrigada pelo elogio. quanto às discordâncias, se não as quisesse retirava a caixa de comentários. esteja à vontade para discordar.

26/9/08 12:49 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home