- ars longa, vita brevis -
hipócrates
[é a segunda vez que escrevo este post e desculpem lá se não está como é costume, mas detesto ter de dizer ou escrever a mesma coisa duas vezes]
antes e depois ou "como este post já me está a dar sono porque passar a ferro faz sono. Pelo menos a mim. Não parece uma imagem típica de Degas, nem do Impressionismo. Os pintores da vida real não gostavam de muita realidade: Monet preferia os nenúfares, Renoir as senhoras rechonchudas, Degas as bailarinas e os cavalos e só Manet parece encaixar-se nas cenas da vida mais real. Mas Degas tem algumas telas dedicadas ao costumeiro como “The Absinthe Drinker” ou “Rape”. No entanto há que reconhecer que as engomadeiras mais depressa serviriam os ideiais de Lautrec ou de Daumier do que (da maior parte) dos bens nascidos pintores impressionistas. Mas uma vez cá chegados há que falar no assunto. Na arte, seja ela impressionista ou realista, as pessoas que trabalham (os semeadores, os homens que partem pedra, as mulheres que engomam) são retratadas como muito simples e robustas, não só porque de facto deviam viver na simplicidade e porque o seu trabalho obrigava a condição física condizente, mas também no trato pictórico que levam que é quase sempre muito abonatório. Porque estão revestidos de uma inocência e ausência de cupidez que a sua condição orienta, são vistos como criaturas ligadas à Terra e por isso, caras aos pintores. É ver como é diferente a luz de os semeadores de Millet e a luz dada ao retrato de uma dama nobre que com a sua pele de ébano e elegância extrema está mais perto de um encontro com Deus do que com as divindades cnóticas. Esta inocência nem permite aos trabalhadores, aos mais pobres, aos que sofrem desejar ter aquilo que produzem ou ser como aqueles para quem produzem. Para este "antes e depois" teremos de tomar como ponto de comparação no "antes", não a pintura inteira, mas apenas a mulher que se dobra sobre o ferro. A sua colega no entanto é parte essencial da pintura para perceber a diferença que existe entre esta e o "depois". Enquanto uma das mulheres ainda engoma, a outra relaxa: boceja (ou canta?!), leva a mão à nuca como que a esticar-se, endireita as costas e com uma das mãos agarra na garrafa de vinho. Não fiquem chocados os leitores: os tempos eram outros, as pessoas madrugavam, tomavam as suas refeições a horas muito diferentes daquilo que se faz hoje e os pratos não eram compostos da mesma forma. As necessidades laborais para uns e o status para outros, bem como a dificuldade em encontrar alimento e os hábitos, fazia com que os alimentos fossem para uns, escassos e até de fraca qualidade nutricional, e para outros, em abundância, mas nem por isso saudável. Acreditava-se que o vinho era uma força regeneradora, que dava força e ajudava na convalescença, bem como poderia colmatar as carências de outros alimentos. Ainda hoje se acredita, em muitas aldeias do interior, que as sopas de cavalo cansado são um bom pequeno-almoço e o mata-bicho vê-se em meios mais urbanos. A outra engomadeira, faz pressão com todo o corpo no ferro, como se estivesse a alisar a roupa, não através do ferro e do fogo, mas através do seu próprio peso. A tarefa é duplamente árdua: os ferros não tinham a tecnologia de hoje (era necessário acender o lume - daí a importância dada às lareiras e ao lume no centro da cozinha e da vida familiar. mal nascia o dia acender o lume era a primeira tarefa e alimentá-lo até ao final da jorna era a segunda tarefa. isto porque com o fogo cozinhava-se, aquecia-se água para a lavar, e alimentava-se o ferro - retirar as brasas e colocá-las na gaveta inferior do ferro) e para além de pesados, os ferros tinham de estar sempre a ser alimentados e deviam sujar bastante a roupa, o que implicava a atenção e a força constantes.
Picasso pintou esta engomadeira, se não a mesma pelo menos uma inspirada na de Degas, durante o seu período azul (que daria um bom anúncio a tampões!) e revestiu-a dos mesmos tons melancólicos e tristes que caracterizavam as figuras desta sua fase. A engomadeira de Picasso é a antecipação do pathos humano que Picasso viria a retratar tantas vezes, e outras não, mas que nos é sempre sugerido pela técnica angulosa. No entanto, a engomadeira de Picasso distingue-se da de Degas em dois aspectos: ela é muito mais etérea (malgré moi, parece, segundo li, que se aproxima muito e propositadamente das figuras de El Greco), e eleva-se aos céus como uma chama, um sopro de vida azul. Ela quase não parece existir, fundindo-se com o fundo e tão irreal. Por outro lado, esta engomadeira é tristeza e trabalho, é pedido de descanso eterno enquanto a de Degas, não obstante o trabalho que está a realizar tem a possibilidade de divertimento mal acabe o trabalho que está a realizar. Não acredito que uma das engomadeiras acabe, beba o vinho e a outra continue entre lamentos a engomar roupa sem fim. As duas irão sentar-se e conversar e se calhar catar piolhos e dar um jeito no cabelo. A engomadeira de Picasso é uma mulher sozinha que serve os propósitos do pintor. Não obstante a possível identificação de Picasso com estas figuras, as figuras dos pobres, dos trabalhadores e dos desfavorecidos pois ele próprio teve um início de vida conturbado e recheado de dificuldades, a verdade é que os pobres e os oprimidos desde sempre foram o panegírico social de que os artistas se serviam para cumprirem o seu papel de alertar para a realidade envolvente.
Edgar Degas
Women Ironing
c. 1884-86
Musée d'Orsay, Paris
Picasso
Woman Ironing
1904
Solomon R. Guggenheim Museum
2 Comments:
acho que está mesmo a bocejar e não a cantar... parece-me
vá-la, deixe-me imaginar que ela estava a cantar. podia estar a bocejar, mas é sabido que nesses trabalhos domésticos em grupo, as mulheres cantam... ou falam da vida dos outros.
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