Depois de termos apresentado a influência da Biblia Pauperum na arte e na religião da Idade Média para a frente, apresentamos hoje outra fonte, um pouco diferente, mas que julgo, igualmente interessante. Trata-se do Hortus Deliciarium ou "jardim das delícias", ou ainda "paraíso" e que é uma fonte basicamente gráfica. Pensa-se que a autora tenha sido Herrade de Hohenburg, que foi abadessa do mosteiro de Hohenburg. Hohenburg fica no centro da Alemanha e ganhou importância graças ao trabalho da sua abadessa que propôs uma reforma e renovação espiritual dos mosteiros. Essa reforma passaria, segundo Herrade pelo regresso ao ensinamento através do livro. Isto é particularmente importante pois a sociedade da Idade Média não era alfabetizada. A alfabetização foi algo que se perdeu com a queda do Império Romano. E era justamente nos mosteiros que os livros eram copiados e divulgados. A obra foi escrita em latim ao longo de 20 anos e patrocinada por Frederico Barba Ruiva. O manuscrito não é uma compilação de textos bíblicos, mas antes um conjunto de reflexões acerca desses textos, como uma enciclopédia. Tinha como objectivo catequizar as pessoas que ao livro tivessem acesso. O livro original era um texto corrido e não estava dividido como o Speculum ou a Biblia Pauperum. Mas dividia-se porém em três grandes partes: uma dedicada ao Antigo Testamento, outra ao Novo Testamento e por fim, uma outra era referente a visões morais e episódios sobre o fim dos tempos. A imagem que trazemos hoje aqui (na verdade sou eu quem traz a imagem, mas como estou a escrever um trabalho e tenho de dizer o "nós", acabo por contaminar a escrita toda). Trata-se, aparentemente, de uma crucifixão (pode escrever-se crucificação e crucifixão), mas há um conjunto de elementos que têm de ser vistos.
As duas cortinas que vemos em cima, são o véu do templo, que de facto existiam. Não se trata da iconostásis, que é posterior e própria da igreja ortodoxa. Trata-se de um véu que que separava Deus dos homens; ou seja, que separava uma zona, dentro do templo, reservada para Deus - e onde se faziam os sacrifícios - e a zona para os homens comuns, manchados pelo Pecado Original. Isto acontecia assim, mas ainda hoje temos na Igreja uma área habitada pelo corpo de Cristo: o sacrário. Só o Sumo Sacerdote podia penetrar nessa área, mas isso também não era sempre, era uma vez por ano. Isto que estou a dizer não é invenção, estava escrito na Bíblia (o que não quer dizer que não seja invenção). Está presente na Carta aos Hebreus no Novo Testamento. Ali podemos ver: "Com efeito, a primeira aliança continha normas para o culto e um santuário terrestre. Foi construída uma tenda, a primeira, chamada o Santo, na qual se encontrava o candelabro e a mesa dos pães da oferenda. Por detrás do segundo véu estava a tenda chamada Santo dos Santos, onde se encontrava o altar de ouro para os perfumes e a Arca da aliança, toda recoberta de ouro, contendo um vaso de ouro com o maná, a vara de Aarão que tinha florescido e as tábuas da aliança. Sobre a Arca estavam os querubins da glória, que cobriam com a sua sombra o propiciatório. Mas não é agora o momento de falar desse assunto em pormenor. Ora, estando assim dispostas as coisas, os sacerdotes entram continuamente na primeira tenda para celebrar o culto; mas na segunda, só entra o Sumo Sacerdote, uma vez por ano, e não entra sem levar consigo o sangue que oferece por si próprio e pelos pecados involuntários do povo. (Heb 9; 1-7). Para além de falar do véu do templo, este excerto fala igualmente da Arca da Aliança. É possível ver a Arca da Aliança nas cenas da circuncisão e da apresentação no templo. Também Josefo escreveu acerca do véu do templo, dizendo que tinha 12cm de espessura e que nada nem ninguém podiam rasgá-lo. Neste caso parti-lo porque 12cm não é espessura de tecido ou folha.Mas, aqui nesta imagem o véu to templo não aparece direitinho como seria suposto. Isto porque quando Cristo morreu algo aconteceu. Diz em Lc 23; 43-46: "Ele respondeu-lhe: «Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso.» Por volta do meio-dia, as trevas cobriram toda a região até às três horas da tarde. O Sol tinha-se eclipsado e o véu do templo rasgou-se ao meio. Dando um forte grito, Jesus exclamou: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.» Dito isto, expirou.". Quando Jesus morreu, o véu do templo deixou de separar o puro do impuro, pois com a morte de Cristo cada um de nós tinha alcançado da salvação eterna. Foi para isso que ele morreu. Diz-se...
Segue-se, ao centro em cima, a lua e o sol. Porquê? Porque quando Jesus morreu fez-se noite:"Ao chegar o meio-dia, fez-se trevas por toda a terra, até às três da tarde. E às três da tarde, Jesus exclamou em alta voz: «Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?», que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?". Note-se que as trevas ocorreram antes do véu do templo se rasgar. Por isso na imagem temos a presença do Sol (alusão ao meio-dia) e a lua (numa alusão às trevas). Para além disso, a Lua parece especialmente triste.
do lado esquerdo e direito, logo a seguir a Jesus, vemos dois homens, que são dois soldados. Um deles tem consigo uma lança, e o outro a vara com a esponja em vinagre e um balde, onde provavelmente a ensoparia. São ambos símbolos da paixão, mas não estão os dois presentes nos mesmos Evangelhos. Marcos fala da esponja com vinagre: "Um deles correu a embeber uma esponja em vinagre, pô-la numa cana e deu-lhe de beber, dizendo: «Esperemos, a ver se Elias vem tirá-lo dali.»" (Mc 15; 36). Já João é o evangelista que fala da lança: "Porém, um dos soldados traspassou-lhe o peito com uma lança e logo brotou sangue e água." (J0 19; 34). A propósito desta passagem da lança, não me lembro de nenhuma representação que mostre água a sair do corpo de Cristo, mas é algo para investigar.
De um lado para a esquerda e de outro para a direita encontramos quem eu penso ser Maria, mãe de Jesus e João. Maria, porque tem o nimbo. Acho que se fosse Maria Madalena não teria nimbo. João, porque parece novo e porque era um dos discípulos mais próximos de Jesus. Jesus até chegou a dizer a João: "Então, Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe: «Mulher, eis o teu filho!» Depois, disse ao discípulo: «Eis a tua mãe!» E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a como sua." (Jo 19; 26-27). De facto, na dormição da virgem, que é uma passagem com base nos apócrifos, João é quem está à cabeceira de Maria.
Os dois "companheiros" de Jesus que estão crucificados têm nome e estão diferenciados. Como se lembram Jesus foi crucificado com dois ladrões, como um impostor. Daí a razão para ser estranho que na maior parte das representações a sua cruz de Jesus a maior... Os ladrões chamavam-se Dimas e Gestas. Gestas é o mau ladrão, o da direita, que está a olhar para o lado. Já o da esquerda é o bom ladrão, o que olha para Jesus: "E um dos malfeitores que estavam pendurados blasfemava dele, dizendo: Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e a nós. Respondendo, porém, o outro, repreendia-o, dizendo: Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesma condenação? E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam; mas este nenhum mal fez. E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino." (Lc 23; 39-42). Não existe nos evangelhos canónicos referência a estes nomes, mas existe nos apócrifos. Vamos encontrá-los, na declaração de José de Arimateia (texto apócrifo), que diz o seguinte: "El primero, llamado Gestas, solía dar muerte de espada a algunos viandantes, mientras que a otros les dejaba desnudos y colgaba a las mujeres [...] El segundo, por su parte, estaba encartado de la siguiente forma. Se llamaba Dimas; era de origen galileo y poseía una posada." (I, 2).
Também do lado equerdo e direito vemos duas figuras femininas montadas em animais. A da direita tem o olhos tapados por um véu e está montada num burro sem corda. A da esquerda está montada num animal de 4 cabeças e 4 patas diferentes. Este animal representa o tetramorfo, os quatro símbolos que representam os quatro evangelistas. Assim temos: Marcos identificado pelo leão (e pela pata de leão), João representado pela águia (e pela garra), Lucas é representado pelo touro (pata de touro, atrás) e Mateus é representado por uma cabeça humana (pé). Estas analogias são bíblicas, mas acho que a relação entre cada um deles e o símbolo ficou a dever-se a Santo Irineu, mas não tenho a certeza. Na bíblia surgem em Ezequiel 1; 10: "E a semelhança dos seus rostos era como o rosto de homem; e do lado direito todos os quatro tinham rosto de leão, e do lado esquerdo todos os quatro tinham rosto de boi; e também tinham rosto de águia todos os quatro." Quem vem montado neste animal é uma mulher que tem numa das mãos uma taça e na outra, bem alto, a cruz. Esta figura aparece triunfante, de cabeça erguida a olhar para Jesus e com uma coroa. Trata-se da Igreja Cristã em oposição à Sinagoga. No fundo o que esta cena mostra são as alegorias da Igreja (fé cristã) e da Sinagoga (fé judaica) que foram muito célebres em cenas da arte da Idade Média, principalmente na Alemanha e em França. Como podemos ver, a imagem de uma igreja vitoriosa junto a uma igreja derrotada, faz acreditar que o cristianismo tinha vencido. Para a taça que esta figura tem na mão desce diretamente o sangue de Cristo. A outra figura, que representa o judaísmo, mostra uma figura feminina com os olhos tapados (em algumas representações está mesmo com os olhos vendados), com instrumentos da circuncisão, a tábua com os dez mandamentos e um animal que iria ser oferecido em sacrifício. Os olhos vendados mostram a sua cegueira ante a divindade de Cristo. O facto de estar montada no dorso de um burro terá algum significado, até porque o burro parece bastante aborrecido. Na Reforma o burro era o animal aplicado em alguns quadros para os pintores se referirem aos judeus, com sentido depreciativo.