segunda-feira, abril 16, 2012

- o carteiro -

Van Gogh
Fifteen sunflowers in a vase
1888
National Gallery, Londres

Quando a minha idade era outra que não esta - talvez esta menos um mês - olhei para os meus pais, um de cada lado da mesa. O meu pai tinha as sobrancelhas como o Álvaro Cunhal, que Deus o tenha lá em cima a desafiar a lei da gravidade, embora não saiba se o Cunhal gostaria muito de se ver junto de Deus ou este de o ter lá. Tinha também pêlos a sair das orelhas, uma veia roxa no nariz e cada vez mais dificuldade em cortar as unhas dos pés. A minha mãe falava de um cansaço crónico enquanto eu reparava nos olhos cada vez mais cobertos pelas pálpebras flácidas. Notava mais a velhice nele do que nela. E ao reparar aquele quadro, entre o degradante e o pio, pensei que a morte estava próxima. a deles e a minha, pois é impossível a deles aproximar-se sem a minha se fazer chegar mais à frente. não senti incómodo com a ideia de morte, mas de repente... senti uma enorme saudade deles. sei que nunca mais vou vê-los e para quem não acredita numa redenção, independentemente desta se encontrar ou não em Deus, esta é a maior despedida. cada dia é uma despedida. Cada dia lhes imagino as maleitas da idade: as aparadeiras, as quedas na casa de banho, os ossos fracos, a vista cansada. imagino que lhes seguro a mão com muita força no dia em que eles me deixarem para sempre, no dia em que ficarem num caixão fechados, sem espaço para respirar ou virar de costas. Imagino também que eles morrem bem porque a nossa vida foi sempre muito divertida, mesmo quando era dramática, porque hoje estou a escrever isto e eles poderão ler. Porque sei que nunca vou levá-los a dar uma volta de carro junto ao mar devido à minha incapacidade para conduzir e que mais tarde, aborrecidos de mais um fim-de-semana em casa, irão dizer com ironia que eu sou uma desnaturada. morrem bem porque já começámos as despedidas entre nós. sabemos que há um fim; apenas um fim. a vida não tem ensaio geral, embora tenha pensado isso até ao dia que comecei a vê-los assim.

2 Comments:

Blogger alma said...

Beluga,
Este texto é de um enorme amor !!
Fernando Pessoa ao lê-lo iria rectificar a opinião sobre as cartas de amor ...
Um bem haja

23/4/12 3:14 da tarde  
Blogger Belogue said...

Amo-os muito e acho que foi por eles e pelos meus amigos - mais do que por mim - que melhorei.
Quanto ao FP, não me faça corar!

25/4/12 10:55 da tarde  

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