quinta-feira, dezembro 29, 2011

- original soundtrack -

It's okay in the day I'm staying busy
Tied up enough so I don't have to wonder where is he
Got so sick of crying
So just lately
When I catch myself I do a 180
I stay up clean the house
At least I'm not drinking
Run around just so I don't have to think about thinking
That silent sense of content
That everyone gets
Just disappears soon as the sun sets

He gets fierce in my dreams
Seizing my guts
He floats me with dread
Soaked to the soul
He swims in my eyes by the bed
Pour myself over him
Moon spilling in
And I wake up alone

If I was my heart
I'd rather be restless
The second I stop the sleep catches up and I'm breathless
This ache in my chest
As my day is done now
The dark covers me and I cannot run now
My blood running cold
I stand before him
It's all I can do to assure him
When he comes to me
I drip for him tonight
Drowning in me we bathe under blue light

He gets fierce in my dreams
Seizing my guts
He floats me with dread
Soaked to the soul
He swims in my eyes by the bed
Pour myself over him
Moon spilling in

And I wake up alone
And I wake up alone
And I wake up alone
And I wake up alone

(Wake up alone, Amy Winehouse)
- o carteiro -

esquece lá isso. o que está a dar (ou estará a dar) são os TIMBI

- o carteiro -

o paper de Iconografia Profana sobre o tema do espelho na pintura - parte I

O que seria de Alice sem o espelho para entrar num mundo diferente, onde a imaginação regia a Lógica e a Física? E da mesma forma, o que seria da Rainha Má da Branca de Neve, sem o espelho para lhe revelar que a mais bela se encontrava num reino distante? Nas estórias, tal como na História, inclusive a da Arte, o espelho desempenha vários papéis. Podemos acreditar que revela, como uma matrioska, o infinito de Citizen Kane, ou que como São Paulo, o reflexo do espelho é apenas uma parte da imagem e que por isso não tem correspondência com o real. Ou podemos ainda recuar até Platão que formulou o conceito de Ideia como a imagem refletida. Sejamos mais ou menos propensos ao cinema, à religião ou à literatura infantil, a verdade é que o espelho se encontra na nossa vida e moldou, através das imagens que levou à mente do observador, a forma como nos vemos e acima de tudo, como vemos. Lembremo-nos da Vénus de Velázquez que se olha ao espelho, ou do Casamento dos Arnolfini ou até da jovem que atende o cliente ao balcão do bar no Folies-Bergères de Manet. O denominador comum entre eles é o espelho e, acima de tudo, aquilo que ele reflete.

O quadro de Petrus Christus, um artista flamengo contemporâneo de Van Eyck, foi executado em 1449 e sobre a sua autoria não restam dúvidas. (Fig. 1) Tal como o colega Van Eyck, também Petrus Christus deixa neste uma marca. Ao fundo do quadro, na mesa, podemos ler: “Petrus Christus fez-me no ano de 1449”. (Fig. 2) Van Eyck fez do Retrato dos Arnolfini um documento que testemunhou a sua passagem pela boda; este pintor por seu lado fez do quadro uma personagem. A cena parece ser bastante simples: um casal ricamente vestido e um homem a pesar ouro conversam num espaço interior exíguo. Este homem, a quem cabe a tarefa de pesar o ouro, é Santo Elói, protetor dos ourives e ferreiros e também ele ourives, enquanto o casal, tanto poderá ser Santa Godeberta e seu marido, como apenas um casal anónimo. Atentemos então neste par: estão ambos vestidos de acordo com o estilo da época e até, diga-se, de forma reservada apenas aos membros da corte. A senhora, com o seu brocado dourado típico de Itália e toucado bordado com pérolas, e o senhor com um colar pesado e um broche pendente do chapéu indicam-nos a presença de gente influente. Acerca da identidade deste par há que ter em conta duas opções. Santo Elói teve alguma fama chegando mesmo a trabalhar para o rei merovíngio Dagoberto e para Clotário II. O noivo tem ao peito não apenas um colar, mas aquilo que parece ser o colar com as armas de Gelders, uma família da época, de onde saiu Mary que casou com aquele que se tornou o rei James II da Escócia, justamente em 1449. (Fig. 3) Para corroborar a ideia de que se trata de um casal, podemos atender ao cinto nupcial, típico nos casamentos da altura, e que se encontra em cima do balcão. O cinto pousado na bancada, por seu lado, orienta o nosso olhar até Santo Elói, que o autor recupera e contextualiza na oficina de ourives cerca de 1000 anos depois.
Fig. 1
Petrus Christus
Santo Elói na sua oficina
1449
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque

Fig. 2

Fig. 3

Elói trabalhava para uma guilda de ferreiros e ourives e eram estas organizações que determinavam, entre outras coisas, que os ourives deviam trabalhar com as janelas abertas para os dissuadir da adulteração dos metais, mas também, que evitassem ao mesmo tempo atrair atenções através de um espirro, por exemplo. Relativamente ao conteúdo das prateleiras podemos ver que não obstante o grande número de peças, a mais valiosa, a vários níveis, era o dente de tubarão fossilizado (encontramos dois pendurados na parede) já que se cria que detetava veneno em contacto com o mesmo. Mas havia outras peças com valor semelhante, como a taça em forma de coco que era tida por antídoto, mas apenas porque se acreditava que os frutos exóticos tinham o poder de reverter o efeito de um veneno. Os outros objetos, partilham com estes, o efeito curativo, embora possuíssem por si valor material. Entre eles notamos a presença de um coral que serviria para estancar hemorragias, rubis que preveniam a putrefação, safiras para curar úlceras, bem como uma bolsa para guardar o cinto nupcial, um rosário de coral e âmbar e por fim o relicário ou âmbula. (Fig. 4) Em cima da mesa encontra-se o espelho, convexo como era uso das classes menos abastadas (os espelhos eram uma novidade e apenas os mais ricos possuiam espelhos planos), dirigido para um espaço ao qual não temos acesso; ou seja, o espaço exterior. A superfície redonda do espelho reflete uma janela aberta (provavelmente a abertura necessária ao ofício) e o mundo exterior, onde vemos duas pessoas a passar, sendo que uma delas traz consigo aquilo que foi considerado um falcão (Fig. 5). Lembremo-nos que nesta época a caça era um desporto de corte bastante comum no qual homens e mulheres tinham possibilidade de conviverem (vejamos, a título de exemplo, o mês “Agosto” nas iluminuras do Livro de Horas do Duque de Berry). (Fig. 6) A cena ficou composta e no século XIX a pintura deu entrada numa coleção alemã, pela mão de alguém que se dizia ser o último representante da guilda dos ourives da Antuérpia.
Fig. 4

Fig. 5

Fig. 6

No que concerne ao espaço as figuras estão colocadas num canto do mesmo: numa das paredes podemos ver duas janelas altas e na outra, uma cortina verde, aberta, corrida para os clientes – e nós – podermos observar as preciosidades do ourives. O espaço é pintado como acanhado, não porque o fosse na realidade, mas porque Christus, à semelhança do que havia feito em outros quadros seus – e do que havia visto em Van Eyck – coloca o ponto fulcral da cena para o lado direito da pintura. A inscrição a emoldurar o quadro, as moedas do lado direito e a atração que constitui as prateleiras levam o observador a pensar que o espaço é exíguo, mas à esquerda há mais balcão e de certeza, espaço para a senhora arrastar o seu vestido. Da mesma forma, o espelho hemisférico em primeiro plano funciona como um repoussoir, um efeito que chama a atenção do observador, e que reflete o exterior da loja e estabelece também a ligação com o interior já que o vermelho forte das vestes do ourives ainda está refletido na superfície do espelho. Cada uma das personagens ocupa um espaço específico e tem com as outras personagens uma relação pensada e quase matemática. Senão vejamos: o ângulo da sombra das peças na prateleira é igual ao realizado entre a parede e as prateleiras. E apesar de tudo nos parecer um pouco apertado, a noção de espaço continua a sobressair através do eixo vertical e central que começa com as curvas do cinto, avança até à mão de santo Elói, sobe até à mão da jovem, ombro do ourives e desagua na mão, espada e figura do jovem homem. (Fig. 7) Este eixo associa as três figuras numa massa de relações. Um exemplo disso é que estas três figuras formam um triângulo e que a diagonal formada pela mão que abraça a jovem, o seu braço, a sua mão esquerda e a mão esquerda do ourives levam-nos até ao espelho onde estão refletidas as duas figuras que por sua vez nos devolvem ao nosso lugar. (Fig.8) Dadas as dimensões reduzidas do espaço, o vermelho da veste de St. Elói trá-lo para a frente da composição, isolando esta figura das outras e dirigindo o nosso olhar também para ele. É que esta figura, não só pela sua veste, mas também pela sua atitude, difere muito do jovem casal, já que o ourives se mostra muito calmo, em oposição ao nervosismo dos noivos. Num gesto um pouco retórico, segura a aliança com vista a dirigi-la à balança que medirá, de forma metafórica a fidelidade futura dos nubentes. Apesar de todas estas relações que podemos estabelecer entre as personagens e não obstante o referido eixo, temos de ter em atenção que a sugestão de perspetiva é facilmente desmontada: as prateleiras correm planas atrás de Elói, enquanto a cortina e as janelas fazem uma sugestão de linha de oblíqua. Em suma, enquanto Van Eyck pintou uma cena pública num espaço privado, Christus faz exatamente o contrário. Neste sentido, o espelho e o que nele está refletido pode não fazer, por contraste a alusão ao que se passa no interior da oficina.
Fig. 7

Fig. 8

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou "como eu gosto mesmo do Caillebotte, ainda que os quadros dele sejam um bocadinho pirosos. quer dizer, quase todos os quadros são pirosos quando retirados do seu contexto espácio-temporal (estudar para o exame de literatura comparada está a fazer com que use esta linguagem!), e este não deveria ser exceção. mas a verdade é que uma natureza-morta nunca está de facto fora de moda ou quase nunca é feia. talvez as naturezas-mortas de hoje fossem cestos de ipod's, ipad's e gps's, em vez de cestos de frutas. é que tal como a fruta apodrece, aquelas coisas também um dia vão à vida... mas uma natureza-morta é sempre uma natureza-morta. aquilo que ali vemos é intemporal: os instrumentos musicais, as flores, os frutos, o espelho. quer dizer, se calhar sou eu a pensar que é intemporal, e não é, mas acho que é. mesmo aquele quadro com a raia é intemporal. bem, vamos ao que interessa. embora pareça que se trata só de bolos em cima de uma mesa, é mais do que isso. e ninguém me tira da ideia que as inúmeras mesas postas do Bonnard também possam sem naturezas-mortas. já dissemos aqui que as naturezas-mortas não eram o estilo preferido das academias, nem o eram dos impressionistas, círculo a que Caillebotte pertencia embora o seu nome seja menos citado. no entanto Manet, Monet e Renoir pintaram naturezas-mortas, algumas subentendidas (Renoir pintou-as nos piqueniques). Cézanne que uns consideram um impressionista e outros um pós-impressionista, pintou-as várias vezes. o que eu gosto neste quadro é que parece ter sido pintado como se ele tivesse passado pela montra de uma pastelaria e tivesse retido esta imagem. os bolos estão cortados (não fisicamente), mas a imagem deles no quadro, como se esta fosse apenas uma pequena parte de toda a abundância. na paris desta época nem tudo eram rosas - ou bolos - e por isso penso que o mesmo quadro ou o mesmo tema pintado por outro impressionista menos abastado talvez fosse diferente. afinal - e com a honrosa exceção dos homens que colocam o soalho numa casa, as cenas de Caillebotte eram sempre acerca do mundo abastado e próspero que ele tão bem conhecia.
Mas depois de um tempo... achamos que não existe mais naturezas-mortas. é como se a natureza-morta fosse o fio que podia ligar uma arte académica a uma arte revolucionária e acho que depois de uma certa altura, a arte tornou-se mais convencional do que aquilo que era com um Rubens ou com um Pré-Rafaelita. o que quero dizer é que na nossa cabeça as naturezas-mortas são de estilos de arte também mortos; são imagens figurativas e por isso, a partir do momento em que a arte procurou o abstrato, as naturezas-mortas foram afastadas da temática. mas elas estiveram sempre lá. e continuaram tão atuais que em 63 Thiebaud voltou à carga. claro que a identificação visual da coisa conta muito e abstração não permitia isso. Thiebaud também pinta os bolos como numa montra, cortados na margem do quadro, mas dá-lhes toda a composição. Gosto principalmente das cores pastel do massapão, do chantilly e do chocolate como se isto fosse delicatessen, num país que não teve alta pastelaria. gosto do retrato de uma abundância um crítica, da típica dieta americana antes do movimento pop.
Caillebotte
Gâteaux
1882
Coleção Privada

Wayne Thiebaud
Cakes
1963
National Gallery of Art, Washington
- o carteiro -


De "A morte em Veneza", às Destiny's Child passando pela "Morte em Veneza" e pelo "Fausto"

Vocês bem sabem que gosto muito de "A morte em Veneza" do Thomas Mann e da "Morte em Veneza do Visconti". Pois no seguimento de uma investigação por conta própria, dessas que às vezes empreendo, mas desta feita com um propósito académico - e contando com a ajuda de um anónimo que forneceu o tão desejado artigo do Pedro Mexia - cheguei a algumas conclusões que me permitiram dar esta grande volta. Não sei se concordam, mas lá vai.
Se estabelecêssemos uma análise intertextual (entre textos) entre o "Dr. Fausto" de Thomas Mann e "A morte em Veneza" do mesmo autor poderíamos ver um conjunto de pontos em que as duas personagens principais de cada um dos livros se toca. Adrian Leverkhün, o Fausto de "Dr. Fausto" e Gustav von Aschenbach, o escritor no livro de Thomas Mann, vendem-se. O primeiro vende a sua alma ao diabo a troco de tempo que lhe permita concretizar a grande obra (onde já se percebe a busca pelo dodecafonismo de Schöenberg), enquanto Gustav se vende pela beleza. O Fausto, em termos absolutos, vende-se pelo conhecimento total. No mesmo livro, Gustav von Aschenbach enceta um diálogo interior que tem eco no diálogo platónico entre Sócrates e Fedro, já que Aschenbach conhece e percebe a impossibilidade da materialização do perfeito: assim que tocasse no perfeito, no objecto da sua adoração que é Tadzio e que representa a beleza enquanto coisa material, vinda dos sentidos e não como uma fórmula matemática, o mesmo desapareceria. O desejo esgotar-se-ia na sua satisfação, razão pela qual, tanto no livro como no filme, Aschenbach surge atormentado. Se Aschenbach é, como o classificou João Barrento, um "Prometeu sem generosidade" ele é também como Apolo que sabe não poder tocar Dafne. Aliás, a mitologia está sempre presente na história humana. Até nas telenovelas brasileiras que não são de desdenhar porque se aprende muito acerca dos sotaques. Bem, foi um aparte.

Se, porém, estabelecêssemos uma análise transtextual, entre as várias obras (literárias ou cinematográficas), ficaríamos a saber mais. Serenus Zeitblom, o interlocutor de Adrian Leverkhün no "Dr. Fausto" de Thomas Mann, e Alfred (o colega compositor de Aschenbach na "Morte em Veneza" de Visconti - que transforma Aschenbach também em compositor - com quem ele troca ideias e com quem está quase sempre em desacordo) funcionam nas obras como Mefistófeles já que tentam constantemente os seus colegas. Zeitblom representa a paixão e o destino e tenta assim Adrian Leverkhün que é a imagem do progresso e racionalidade. Já Alfred incita Aschenbach a escrever e compor com o coração, com os sentidos e não com a matemática. São eles, cada um à sua maneira, quem tenta as personagens principais e as leva no caminho da desgraça. Bom, a verdade é que cada um deles, Leverkhün ou Aschenbach procuram essa desgraça como forma de compreender o mundo, de abarcar tudo o que é possível. Não se contentam, recusam o que têm, porque o que têm, porque é lógico, é facilmente desmontável. Preparados para tudo, exceto para os sentimentos. Convém aqui dizer que o modelo de construção do Aschebach do filme foi tanto Schoenberg como Mahler, cuja obra e está presente na banda sonora do filme e o marca quase por inteiro (há pouquíssimo diálogo). Além disso, a viagem de Aschebach a Veneza baseia-se na viagem que Thomas Mann levou a cabo com a mulher e outro familiar, também a Veneza, altura em que viu o jovem Tadzio (na realidade muito diferente do actor que dá corpo a Tadzio no filme, mas que segundo dizem, era um belo rapaz na época. Nessa viagem Mann soube que Mahler havia falecido, o que o perturbou bastante. Assim, Adrian Leverkhün, Gustav von Aschebach (o do filme) e Schoenberg partilham a mesma profissão: são os três compositores. A música que tem muita importância no filme de Visconti não o tem apenas pela mão de Mahler. Há um pequeno e delicioso apontamento de Beethoven. O barco que leva Aschebach a Veneza (tanto no livro como no filme), chama-se Esmeralda. É também o nome de uma espécie de borboleta que Zeitblom refere ter sido a fonte de contaminação de Adrian Leverkhün quando este fica doente. (No filme e no livro Aschenbach também fica contagiado: de amor e de cólera). No filme, o nome de uma prostituta a que Aschenbach recorda ter recorrido, após a morte da mulher (e cuja atriz é por acaso muito parecida com a Marisa Berenson que faz de esposa do compositor) também se chama Esmeralda. Quando ele entra no quarto dela ela toca Für Elise de Beethoven, o mesmo que um Tadzio entediado toca no Hotel des Baines. Sabem que isto fez-me lembrar aquela música dos The Cure,Letter to Elise.

Bem, mas voltando às comparações transtextuais... A ampulheta que o Aschenbach do filme fala e para que olha tem eco no tempo oferecido a Leverkhün no seu primeiro encontro com o diabo. O tempo é aquilo que marca a angústia de Aschebach, tanto no filme como no livro, embora no filme seja mais evidente. Primeiro, quer aceitar o seu tempo, quer viver o resto de tempo que tem, em paz, sem cair no ridículo, sem ser uma vergonha para homens como ele. Vê-se no filme, como no início ele se envergonha do homem que tenta parecer mais jovem, com os lábios pintados com rouge e o rosto com blush. Mas depois, numa busca pela juventude (afinal ele vai para uma colónia de Verão junto à praia do Lido, cheia de jovens que se passeiam como deuses gregos embrulhados nas suas toalhas), acede a rejuvenescer nas mãos de um barbeiro que o deixa como o velho criticado no barco. Aschenbach aquiesce: que fazer? Ele quer poder chegar a Tadzio, quer poder fazer parte do grupo que se junta na praia e ainda brinca a fazer castelos na areia. Quando o barbeiro o deixa pronto diz-lhe algo que me marcou: "agora o senhor está pronto para amar", como se amar fosse uma prerrogativa dos jovens... Mas há mais: assim como o Aschenbach do filme é inspirado em Mahler, o Adrian Leverkhün de "Dr. Fausto" é inspirado em Schoenberg e Nietzsche através de conversas de Mann teve com Teodoro Adorno (acho que Schoenberg no entanto não gostou nada desta comparação e fez questão de se afastar dela. Afinal Leverkhün persegue os doze tons enquanto Schoenberg criou o Serialismo).

Sobre o filme poderíamos ficar aqui a falar para quase sempre. Eu pelo menos podia. As referências são inúmeras: a forma como o velho no barco diz a Aschebach "cumprimentos ao ser amorzinho", indicando já com isto que: quem vai a Veneza se apaixona, que Aschenbach não consegue esconder a sua inquietação e busca pela beleza e fazendo com a mão um gesto que não é bem o de um beijo, mas de uma sucção dos dedos. Não se trata de colocar os dedos nos lábios, mas na boca bastante vermelha. Depois, o barqueiro, que como Caronte leva Aschenbach, não para onde ele quer, mas para onde ele, barqueiro quer. O homem diz algo que Aschenbach não percebe ser para seu bem: "para onde o senhor deseja ir, as malas não podem ir", quando Aschenbach mostrava interesse em sair da gôndola e parar antes de chegar ao hotel. Quando de facto a personagem principal se vê sem as suas coisas, sem a sua bagagem que ocupa planos importantes do filme com o monograma GVA à vista, vê-se também sem o seu microcosmos, sem a sua segurança. É a partir daí que ele dá asas à paixão que sente e deixa de ser reprimir. Quando o compositor, aborrecido por lhe ter calhado um barqueiro tão voluntarioso, se mostra disposto a pagar logo e sair em qualquer sítio, e pergunta "quanto é?",o gondoleiro responde-lhe "o senhor pagará". Aschenbach pagou com a vida pois a paixão não lhe permitiu ver que quanto mais protelava a hora de sair de Veneza, para poder estar na presença de Tadzio, mais se contaminava. No fim do filme, essa contaminação parece sair do corpo moribundo de Aschenbach quando a tinta negra do cabelo pintado (artifícios do barbeiro), lhe escorre do rosto enquanto dois jovens (ah... a tormenta mesmo na morte), levam da praia para fora. Mas há também os morangos que pontuam muitas cenas numa alusão à sensualidade e os planos ao ir para a estação e ao vir da estação, a visão de Santa Maria della Salute como prenúncio de uma praga (foi construída para aplacar uma peste que assolou a cidade), há Tadzio apolíneo até ao fim, mas cujo amor de Aschenbach transforma quase em dionisíaco. Esse é aliás o processo de transformação do compositor, que correspondia no fundo ao processo de transformação de uma Alemanha orgulhosa numa Alemanha dominadora e por fim, numa Alemanha destroçada, sem identidade que culminou com a Segunda Guerra Mundial. É um filme excelente, o mais bonito que já vi embora isto valha de pouco porque infelizmente não vi tantos filmes como gostaria.

Mas como disse, o tema hoje avançava pelo menos até ao Fausto e falar do mito sem falar da música, não está certo. Sabe-se que foi adaptado para a ópera de Gounod (a ópera coloca a meu ver o desejo romântico que está subjacente a estas personagens românticas marcadas já pela/o Gesamtkunstwerk de Wagner). Quando esta obra estreou em Portugal, os seus figurinos foram pedidos para uma outra subjacente ao mesmo tema e de seu nome "Gran-Doutor", da autoria de um português, cujo nome não recordo. Há também o Fausto de Berlioz que nos merece alguma atenção. É que no livro "Margarida e o Mestre" de Bulgakov, para além de existir uma epígrafe do Fausto de Goethe e da substituição do cão negro pelo gato negro (Fasuto andava acompanhado por um cão negro, tal como São Domingos. O cão é presença importante em Frei Luís de Sousa e na Odisseia de Homero sendo que em ambas as obras é o cão quem primeiro reconhece o dono respetivo), nota-se que existe uma personagem com o nome de Berlioz e que o fagote, o instrumento musical fagote fazia parte do séquito do diabo. Não sei se tem alguma coisa a ver, mas quero acreditar que sim. Sabe-se que o Fausto também esteve presente no cienma expressionista como "O consultório do Dr. Caligari" de Robert Weine, no "Dr. Mabuse" de Fritz Lang e no "Fausto" de Murnau. Mas quando chegamos às chamadas Belas-Artes, temos de ver pelo menos três exemplos: as litografias de Delacroix acerca de Fausto a partir da peça homónima, a tela de Johann Peter Krafft que mostra uma visão medieval (bem ao gosto dos românticos), e flamenga (uma mistura estranha) e, last but not least, o desenho de Rembrandt onde é aplicado o anagrama , tal como Schoenberg o aplicava quando compunha, anagrama esse que foi usado no Fausto original. Este anagrama que aparece, qual epifania, na janela, faz-me lembrar um outro quadro de Rembrandt. Trata-se de Belshazzar's Feast, que corresponde ao capítulo 5 do Livro de Daniel quando Belsazar, rei da Bailónia ofereceu um grande banquete no qual corria vinho a abundantemente dos jarros retirados do templo de Jerusalém. Enquanto ali se adoravam outros deuses, como deuses de ferro, madeira, ouro. Ora quando isto estava a acontecer, surgiram uns dedos de homem na parede, que escreveram algo que o rei pediu a todos no rei que ajudassem a decifrar. Era MENE, MENE, TEQUEL, UFARSIM que queria dizer que Deus ahvia contado e terminado o reino de Belsazar, o rei tinha sido julgado e perante Deus estava em falta, razão pela qual havi de morrer e o seu reino dividido. Nessa noite o rei morreu. Quando vejo este quadro, lembro-me sempre da expressão The wrinting's on the wall do disco das destiny's child e também desta música da Beckham. Ela diz: "cos sex is written in the scribble, writing's on the wall". Atenção que como designer ela é excelente.

















Rembrandt
Belshazzar's Feast
1635
National Gallery, Londres
- não vai mais vinho para essa mesa -

terça-feira, dezembro 27, 2011

estou aborrecida, vou dormir.

sábado, dezembro 24, 2011

- não vai mais vinho para essa mesa -

- não vai mais vinho para essa mesa -

segunda-feira, dezembro 19, 2011

- original soundtrack -

o que é que querem que faça? é Natal e eu gosto da música. é uma fraqueza minha, sou foleira, bem sei, mas o órgão aos 54 segundos...

- não vai mais vinho para essa mesa -

fiquei muito feliz de saber que o José Rodrigues dos Santos escreveu "O Último Segredo". é que sendo assim, não tem mais nenhuma parvoíce para escrever.
- ars longa, vita brevis -
hipócrates


antes e depois ou depois e antes ou como já nem sei como apresentar isto.  cronologicamente, o primeiro teria sido Pontormo e depois Botticelli teria feito um quadro relativo ao primeiro, mas como o quadro de Pontormo é póstumo... cá vai. Em 1474 , mais coisa menos coisa, Botticelli pinta um jovem em três quartos, o que não era nada comum no retrato italiano. Apesar dos italianos terem sido muito avançados no Renascimento, em relação ao retrato não foram e pode mesmo dizer-se que os flamengos tinham algum avanço. O que se passava era que o retrato flamengo, sem constrangimentos de maior, representava as pessoas em três quartos, meio corpo, com as mãos postas sobre o colo ou a segurar um objeto. estes retratos conseguiam ser mais fiéis à realidade e digo isto partindo de um exemplo. Federico da Montefeltro, italiano, fazia-se retratar sempre de perfil e mais importante do que isso, sempre do mesmo lado. A razão para isto era a mesma que ainda hoje leva o Júlio Iglésias a só aceitar ser fotografado de um lado do rosto: estéticas. Federico tinha cegado de um olho e por isso não era possível retratá-lo mostrando o lado direito do rosto. Porém a Itália tinha uma boa razão, no geral e não neste caso específico, para retratar pessoas de perfil. Os retratos italianos tinham conhecido com as medalhas, os frescos e os bustos romanos o perfil como forma de assumir e dar a conhecer o carácter de alguém. o perfil nobilitava. bem, a verdade é que só os nobres é que eram retratados, por isso... ficava ela por ela. Para além disso a arte italiana continuava apegada à tradição bizantina que idealizava o retrato. Mas de facto vê-se que o retrato italiano é sobretudo o retrato de perfil e o retrato flamengo é o retrato a três quartos. pelo verismo, e só por isso, digo que o flamengo era mais "avançado". O que é que acontece? Acontece então que na referida data Botticelli retrata aquele jovem, já não de perfil, mas a três quartos. Este mesmo jovem tem na mão uma medalha com um perfil, perfil esse que era de Cosimo-o-velho. Ora, analisando o perfil da medalha com o perfil de Cosimo retratado num quadro póstumo (Cosimo morreu em 1464), vemos que é o mesmo. muito provavelmente existia um outro quadro de Cosimo a partir do qual se fez a medalha, isto porque acho muito difícil ter sido ao contrário e por isso a medalha ter dado origem ao quadro. também pode ter acontecido as imagens serem extraordinariamente parecidas porque os pintores tinham capacidade de retratar o real com fidelidade, coisa de que não duvido, mas custa-me a crer que o homem não tenha mudado de fisionomia. de qualquer forma, ficam aqui as imagens e a história. 



sexta-feira, dezembro 16, 2011


AM:
Fiquei a pensar, coisa que cada vez acontece menos. às vezes acho que este curso nos quer disciplinados, a pensar os movimentos artísticos um de cada vez, sem relações entre os factos e os intervenientes, avulsos, com meia dúzia de bitaites de professores...
mas fiquei a pensar. de ontem para hoje, a minha certeza quanto aos bons artistas terem de ser boas pessoas, desvaneceu-se. a contundência foi-se. a verdade verdade, é que depende muito daquilo que se considera um bom artista e uma boa pessoa. passadas as definições iniciais, ficariam os exemplos. aqueles que conheço melhor, tanto como outra pessoa qualquer é o de Rodin e o de Caravaggio. para mim Rodin foi um escroque com obra sobreestimada. mas mesmo hoje, pegasse eu numa biografia dele, só leria aquilo que quereria ler. de imediato me vieram à ideia os livrinhos da Taschen. mas esses são sempre tão simpáticos... não escolho a impossibilidade de dar uma opinião por razões metafísicas. voltando à biografia. o que escolhi saber do Rodin limitou-me a visão da obra dele. antes disso, antes da Camille Claudel, achava a obra dele genial. talvez eu seja mais sensível às questões del corazon. quanto ao Caravaggio, diz-se que matou um homem, mas isso para mim não faz dele um mau homem. o facto de a pessoa reincidir é que me faz pensar que não tem valores. que quer? a ideia de redenção é parola, mas está-nos nos genes. lembrei-me do Charlie Chaplin que em casa não era assim tão divertido, mas isso não lhe retira nada. lembrei-me também da arquitetura do período nazi e a verdade é que gosto. é horrível dizer isto, mas gosto. e pior que dizer isto é sentir-me culpada por dizê-lo. 
por isso caro AM (e todos quantos quiserem/souberem), peço-lhe um exemplo de alguém, de um artista qualquer, que sendo má pessoa, tenha tido uma obra digna de tal. acho que não sossegarei enquanto não esclarecer isto.

quinta-feira, dezembro 15, 2011

- original soundtrack -

tinha aqui a "La vie en rose", mas fica para outro dia. decidi postar o mais novo da Roisin Murphy que vocês já sabem que adoro, embora não goste muito daquela coisa de House e Dance Music. para falar a verdade, nem sei o que é.
(Simulation, Roisin Murphy)
- não vai mais vinho para essa mesa -

a mais bela imagem deste Natal será, certamente, a do alegado estripador a confessar crimes tendo como banda sonora a Popota a cantar num canal de televisão.

(não sei se repararam)
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou "ah pois é, hoje levam uma injeção de Van Eyck. ora andava eu aqui a estudar as relações entre o espelho e a arte (já tinha publicado dois posts sobre isso, tenho a certeza que leram...) e eis senão quando percebo que o Van Eyck, para além de ter sido plagiado pela Angelina e pelo Brad Pitt, teve um fã na época, que eu diria que tinha sido o "antes" e não o "depois" desta história. Ora em 1472, pouco anos após o quadro dos Arnolfini, David Aubert que trabalhava para a corte de Filipe, o Bom, fez-se retratar a trabalhar na sua oficina e a ser "surpreendido" pelo amo (Carlos, o Temerário). Não sei se repararam que, para além do "depois" parecer ser anterior ao "antes", David Aubert reproduziu, na parede da oficina, o espelho, o candelabro, o fio de contas e a vassoura. No "depois" as roupas têm um ar mais antiquado - se calhar estava a usar-se o vintage - e o traço aparenta não ser da escola de Van Eyck. Não vou fazer aqui considerações sobre se é melhor ou pior, se houve um retrocesso ou não: cada época e cada pintor com as suas idiossincrasias. Às vezes a forma também é conteúdo e por vezes aquilo que para nós é uma evolução (preocupação com a perspetiva), para os outros pode ser secundário. É óbvio que em Van Eyck a perspetiva tem um estudo mais cuidado, mas isso deixarei para depois). Em David Aubert a perspetiva parece aplicar-se apenas a partir do pavimento, enquanto a lareira está demasiado pronunciada. Mas não se pode dizer que o artista desconhecesse as regras ou que fosse mau. Talvez o objectivo fosse mesmo pintar assim, dando a ideia que o espaço, ainda que familiar, adquiria com a presença de um membro da nobreza, um je ne sais quoi. seja como for, a semelhança com van Eyck é tão evidente que chega a ser pornográfica. bem, vou embora. dói-me a barriga.
Jan van Eyck
O casal Arnolfini
1434
National Gallery, Londres

O casal Arnolfini (pormenor)

David Aubert
Charles the bold surprising David Aubert
1463-1465
Biblioteca Real, Bruxelas


Charles the bold surprising David Aubert (pormenor)
- o carteiro -

o post que eu não gostava de encontrar antes de fazer o trabalho (porque depois ia pensar: "quem foi o &$##*»ª% que fez isto?")

Van Eyck não deixou qualquer indicação acerca das personagens principais do quadro e só por volta de 1500 foi possível saber quem para ele tinha posado. Esta pintura foi mencionada em dois inventários de Margarida da Áustria (um em 1516 e outro em 1523) e diziam o seguinte: “Um grande painel de Hernoult le Fin com a sua esposa num quarto.” Temos de ver este nome “Hernoult le Fin” como a forma francesa de dizer o nome italiano “Arnolfini”. Embora o nome não conste no quadro e fosse real a possibilidade de Giovanni não ser o único Arnolfini na cidade, os registos mostram que em 1434 vivam em Bruges dois cidadãos com o sobrenome Arnolfini e um deles, de nome Giovanni di Arrigo Arnolfini, trabalhava para os duques da Borgonha, primeiro como conselheiro e depois como oficial das finanças na Normandia, e havia casado com a filha de um banqueiro italiano, que se presume ser Giovanna. Giovanni era também um banqueiro abastado de uma família de Lucca com negócios em Bruges desde cerca de 1421. Na época, Bruges era uma cidade de Bruxelas, na qual Filipe II implementou a sua corte. Era o centro das trocas comerciais do Norte da Europa e recebia peles e madeiras da Escandinávia, figos e laranjas de Espanha e Portugal e sedas e especiarias de Génova. Ora Van Eyck, que pintou em Bruges, fê-lo não segundo o que seria normal tendo em conta a origem italiana de Arnolfini, mas segundo o lugar e o tempo onde estava. Desta forma, enquanto numa das repúblicas italianas Arnolfini, com a sua posição social – ainda que mercador – teria possuído um palácio para nele habitar, não o teria conseguido em Bruges. Por isso o espaço é tão exíguo, a cama domina a divisão e Giovanni se apresenta como um homem prático.
Trata-se de um casamento visto serem mais as provas a favor do que contra esta tese. Os jovens, de classes sociais diferentes, contraem matrimónio segundo as tradições e costumes da época (em casa) e todo o ambiente faz prever a sua vida futura: o noivo, homem de negócios, sairia todos os dias para trabalhar, enquanto a esposa, a gozar dos privilégios de um contrato que lhe era favorável, permaneceria em casa, a receber os convidados e a cuidar da paz do lar para receber o marido e os convidados. Esperava-se dela que engravidasse e desse ao marido muitos descendentes e que ambos permanecessem sempre como casal segundo as leis da Igreja.
Segundo a Bíblia, livro do Êxodo, estaríamos perante solo sagrado: “Não te chegues para cá; tira os sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa.” (Êxodo 3:5). Os chinelos pousados, no entanto, também podem querer dizer que estamos em ambiente de alguma intimidade, onde tanto homem como mulher se sentem à vontade. Porém, e tendo em conta que na época as ruas eram lamaçais e que os homens verdadeiramente ricos não tinham de enfrentar as vias a pé, mas a cavalo, estes tamancos no primeiro plano, masculinos, podem querer dizer-nos que Giovanni não era um homem muito abastado, ou pelo menos, um nobre. A ideia de que se trata de um casamento também sai reforçada pois na época, aquando de um casamento, os jovens nubentes casavam descalços já que, segundo se dizia, andar descalço aumentava a fertilidade. Estes tamancos surgem, pelo menos, em dois outros quadros da mesma época: Natividade de Petrus Christus, A Adoração de Hugo van der Goes.


Como se pode observar a noiva encontra-se com uma das mãos estendidas e a outra pousada sobre o ventre. Esta posição da mão, em comparação com a de Giovanni que está ao alto, indica-nos submissão da esposa perante o esposo. Ela, não obstante não olhar para o chão e elevar os olhos, é inferior ao marido, não só pelas idiossincrasias da época, que assim o ditavam, mas também porque ele terá, mais poder económico. Seria portanto o chamado “casamento de mão esquerda” ou “casamento morganático”, já que o noivo pega com a sua mão esquerda na mão direita da noiva e não com a sua mão direita. Isto quer dizer que era a noiva que vinha de classe social inferior. No entanto alguns historiadores defendem que isto seria mais uma prova que não se tratava de um casamento, mas da celebração de uma festa de noivado. O noivo apresenta-se bastante sério e solene num traje púrpura em veludo que, não obstante ser rico, é amplo em baixo. Isto pressupõe que Giovanni era uma pessoa ativa, algo que não é compatível com a possibilidade de ser um membro da aristocracia. As cores escuras foram introduzidas nas ocasiões especiais por Filipe II duque da Borgonha, bem como os chapéus largos. A sua mão na vertical contrasta com a da noiva na horizontal e mostra o seu claro domínio da situação.

Junto à vassoura, na cama, é possível ver um detalhe decorativo. Trata-se de uma Santa Marta, padroeira das cozinheiras – talvez numa alusão à nova vida doméstica que esperava Giovanna, embora, como foi dito, era muito provável que a senhora Arnolfini tivesse uma ou mais criadas – cuja insígnia é um dragão (Santa Marta teria derrotado um dragão sob os seus pés). Há porém outros autores que avançam com a possibilidade de se tratar de Margarida de Antioquia, protetora dos partos difíceis.

Ao lado do espelho encontram-se dois fios com treze e dezasseis contas de cristal, um presente que era hábito oferecer ao casal aquando do casamento. O cristal é um material que simboliza pureza.

Este é um dos centros de toda a composição, o objecto mais revelador do quadro, pois dá-nos uma imagem impossível, uma imagem além da bidimensionalidade do quadro. A presença de um espelho convexo na divisão pode ser encarada como uma introdução aos hábitos das classes mais abastadas que tinham de facto dinheiro para comprar espelhos planos. Nessa época este tipo de espelho era muito difícil de produzir, o que o tornava uma peça onerosa. Os vidradores de Habsburgo conseguiram no entanto inventar uma técnica mais em conta, que não originava vidros planos, mas convexos como este. Em francês eram chamados de “sorcières” ou “bruxas” pois davam uma visão expandida dos locais que refletiam. Dele conseguimos ver a moldura com dez dos catorze medalhões que contam a Paixão de Cristo, mas também um mundo diferente que é o espaço que Van Eyck ocuparia na época para pintar e que revela muito mais acerca da pintura. Estes medalhões, representando cenas da Paixão de Cristo eram também símbolo da pureza mariana. Mostra-se assim que, para além dos noivos, estão no quarto mais duas personagens: uma seria a pessoa que estaria a realizar ou a orientar a cerimónia (de veste azul) e outra, de turbante vermelho que seria Van Eyck, já que em quadros como A Virgem e o Cardeal Rolin e Madonna e o Cónego Van der Paele, o pintor fez questão de se retratar sempre dissimulado nos outros elementos. Para além disso, a presença do pintor vem confirmar a tese do casamento entre os Arnolfini, já que no século XV era necessário, para realizar um matrimónio, a presença de pelo menos uma testemunha. Os casamentos cristãos não eram, ao contrário do que passou a acontecer após o Concílio de Trento, cerimónias que tinham de ser realizadas perante um altar e um sacerdote. Podiam ser realizados em casa, bastando para isso a vontade das duas partes. Até 1563; ou seja, até ao Concílio de Trento, esta prática era comum. A partir daí o casamento cristão passou a realizar-se junto a um sacerdote, mas mesmo hoje o sacerdote não é o agente do casamento; ele é apenas um testis qualificatus. Após a cerimónia, marido e mulher podiam – não era obrigatório – comungar na manhã seguinte juntos, na Igreja. Van Eyck coloca no lugar duas testemunhas: uma seria então o próprio Van Eyck e outra, como foi dito, a pessoa que iria orientar a cerimónia. Não tem de ser necessariamente um sacerdote, já que tal não era obrigatório e já que os casamentos deste tipo, entre pessoas de classes sociais diferentes, envolviam avultadas somas de dinheiro, podendo ser por isso apenas alguém ligado às finanças do casal. O espelho mostra igualmente que o quarto não termina no local onde o observador está. Para além das duas testemunhas há mais espaço, mais uma janela e podemos ver a outra perspetiva da janela aberta.

Símbolo das lides domésticas.

Segundo o nosso entendimento, uma noiva é desposada de branco, mas essa é uma tradição muito recente, que remonta apenas ao século XIX. Até aí, até ao casamento da Rainha Vitória de Inglaterra, as jovens nubentes casavam com os melhores trajes claro está, e estes eram de cores vibrantes, já que numa época tão lúgubre (século XV), o uso de cores fortes era sinónimo de prosperidade. Para além disso o vestido é muito elaborado, amplo (o facto de a zona da barriga, no vestido estar acentuada é meramente uma alusão ao ideal de beleza da época que privilegiava os seios pequenos em forma de maçã e os ventres femininos salientes). Em baixo, o seu grau de elaboração e amplitude num espaço exíguo, fazem-nos acreditar na necessidade de possuir já alguma experiência no uso de trajes que eram feitos para as mulheres de classes sociais mais elevadas, razão pela qual a jovem seria de famílias privilegiadas ou ascenderia, pelo casamento a uma dessas famílias. Para além disso, a jovem não podia baixar-se para ajeitar as vestes possuindo para isso, uma criada. Esta tese da origem social elevada é corroborada pela presença, no traje, de arminho, uma pele bastante cara. Alguns historiadores levantam aqui dúvidas quanto à possibilidade de estarmos perante uma boda, já que a jovem que iria ser desposada, para ainda não o ser, teria de ter o cabelo solto e não preso e coberto.

O cão é muitas vezes tido como símbolo de fidelidade pois permanece sempre com o dono. Aliás, é comum observar-se na época túmulos em que cães em pedra guardam o seu senhor. Pode por isso ser símbolo de fidelidade, mas também, e porque os cães copulam entre si e nem sempre para acasalar, podemos estar perante um sinal de luxúria. Por fim também podemos avançar outro motivo para a presença do cão que não é um cão qualquer. Este trata-se de um exemplar da raça Brussels griffon terrier, de pequeno porte e que, como muitos dos cães de pequeno porte e de raça, serviam de companhia de colo a senhoras abastadas. Desta forma, o cão poderia aludir à condição social próspera do casal.

Este é um elemento que reforça a posição social dos noivos, já que não sendo propriamente da aristocracia, possuíam bens que como este candelabro mostram o seu nível económico. Trata-se de um candelabro que estaria na moda já que possui todo o trabalhado do de metal da Flandres da época. No mesmo arde apenas uma vela, o que não se compreende visto ser dia, como mostra a janela aberta. Isto prende-se talvez com uma tradição medieval que conta que uma grande vela era levada à frente de uma procissão nupcial, ou entregue em mãos, pelo noivo à noiva. É a adaptação cristã da clássica taeda. A vela acesa representa, tal como dentro de um templo cristão, a presença de Deus Omnisciente e Omnipresente a testemunhar os votos do matrimónio. Talvez por isso não fossem necessárias testemunhas. Abaixo do candelabro podemos observar uma inscrição que diz o seguinte: “Johann de Eyck fuit hic”; ou seja, “Van Eyck esteve aqui”. Em vez de dizer “Van Eyck pintou este quadro”, o pintor preferiu fazer do quadro um documento que prova a sua presença na cerimónia quer tenha sido a trabalho, quer a lazer. Já antes, um outro quadro de Van Eyck mostra uma inscrição semelhante. Trata-se da Madonna na fonte cuja inscrição é a seguinte: “Jan van Eyck completou-me no ano 1439”.


A composição mostra-se simétrica, fechada e rectangular (ou mesmo em “H”), onde predominam as linhas retas verticais, se bem que existam alguns apontamentos com linhas curvas:


Visto o quadro ter sido pintado em 1434, anteriormente à redescoberta da perspetiva, não se pode notar uma perspetiva linear correta, mas apenas sugestões da mesma.


Podemos ver, em primeiro que em primeiro plano encontramos em destaque, duas cores: o verde (do vestido) e o castanho do casaco de Giovanni Arnolfini. O verde na mulher e visto esta estar a casar e por isso, segundo a moral vigente, ainda não poder/dever encontrar-se grávida, indica que a partir deste momento, a partir do seu casamento, pode ficar de esperanças, razão pela qual o verde também significa fertilidade, sendo igualmente uma cor atribuída à burguesia. Giovanni Arnolfini por seu lado escolheu, e como convinha a um mercador do seu estatuto, escolheu um traje negro, que era símbolo, segundo a heráldica da época, de lealdade e dignidade por parte dos mercadores. Por cima deste traje sombrio, veste uma capa púrpura. Esta capa foi identificada como sendo parte do traje italiano para o casamento. A capa seria o chlamys e o casaco de pele seria a crosina. Mas o púrpura também tem um significado próprio: era um símbolo abundância (A Síria negociava contigo por causa da multidão das tuas manufaturas; pelas tuas mercadorias davam esmeralda, púrpura, obra bordada, linho fino, corais e ágata. (Ez 27:16)), pureza e luz (segundo Isidoro de Sevilha) e era também uma das cores mais caras para tingir, razão pela qual Giovanni a usava. Nota-se também a presença do vermelho nos planos posteriores. O vermelho é justamente a cor do leito e do estofo de uma cadeira encostada à parede. Ora estas peças de mobiliário já se encontram atrás dos noivos, como que pertencendo à sua vida futura, à sua intimidade. Estão entre eles e a parede e não entre eles e o celebrante e testemunha. O vermelho é uma cor associada à paixão e aos sentimentos fortes. Obviamente esta cor tem igualmente uma razão de ser no contexto da época: ainda hoje vemos que as colchas mais coloridas são colocadas nas janelas das casas, da parte de fora, aquando da passagem de procissões e no século XV, num mundo lúgubre, a cor era sinónimo de riqueza. Era também uma cor usada nas camas pois dizia-se que afastava as doenças.


Luz uniforme que tanto entra no quarto através da janela visível, como da outra refletida ou mesmo da abertura que se encontra atrás das duas testemunhas.
- o carteiro -

pela dignificação da coisa
talvez sejam os finais que me deixem com vontade de avaliações, contagens e listas. mas ao ler esta reportagem, fiquei a pensar que seria necessário uma reviravolta, seria necessário pensar de novo esta coisa toda da arte. vocês sabem que não sou nenhuma especialista, escrevo apenas aquilo que acho e apesar de, no geral, aquilo que as pessoas acham ter pouco valor - porque a maior parte de nós não acha nada a maior parte do tempo e isso está muito certo. se estivéssemos sempre a achar coisas acerca de coisas teríamos uma consciência tão grande da realidade que mais nos valia fugir - retomando: apesar de aquilo que as pessoas acham ter pouco valor, eu acho que este é o espaço onde posso achar coisas e por isso acho aqui.

quer isto dizer que não obstante as redes sociais - de que não irei falar - a arte continua a achar quase nada acerca daquilo que representa. os paradigmas mudaram, é óbvio. e todas as tentativas para retomar os antigos saíram goradas. veja-se o caso dos "neos": o neo-gótico, o neoclássico, os Viollet-le-Duc... parecem-nos sempre sucedâneos de sangacho quando os originais foram atum fresquinho! não se pode voltar atrás e nem faria sentido fazer um "neo" qualquer porque hoje a arte já não se define por paradigmas, mas por pessoas: cada uma com a sua ideia. tenho uma empatia - que não é só minha, é de toda a gente - com a arte figurativa, com a tela no seu cavalete e com o mármore polido, mas isso são as ideias que estão enraizadas, que provavelmente nunca vão mudar, mas não ofuscam a aceitação de outras coisas.

durante muito tempo, o artista era um instrumento da arte: ele fazia-a, mas não a domava, na medida em que os temas não eram escolha sua, voluntária, eram impostas pelo mercado. depois, o artista começou a servir-se da arte para retratar os temas que preferia e que, de uma maneira ou de outra, acabaram por falar dele (numa antevisão daquilo que são estes tempos narcísicos). e o mercado, que adorava espíritos rebeldes (a burguesia sempre gostou do excêntrico por não ter, por formação, gosto), pagou para ver os outros nas suas paredes (isto mantendo a ideia, ainda, que um quadrinho estava numa paredinha). mas agora... não há burguesia, nem mercado. a ideia de mercado de arte está falida já que cada um de nós pode comprar uma obra de arte. e porquê? porque qualquer coisa, qualquer ato se tornou uma obra de arte. Aliás, na entrevista de Anselm Kiefer podemos ler: "Kiefer, 66, misses the days of the 70s and 80s when art collectors such as Donald Fisher – founder of the Gap clothing stores – took a year to decide whether they wanted to buy a work or not." a parede onde antes pendurávamos o quadro é agora a superfície que estabelece a analogia com este tempo. se antes tínhamos espelho e depois lâmpada (o artista enquanto lâmpada que refletia o que desejava), chegamos agora à bola: é estéril. não tem faces. é redonda. é oca. por onde vai, volta. rola sobre si própria.

quanto a outras afirmações de Kiefer, como aquelas que dão Hirst como o anti-artista, não me chegam. porque Kiefer parabeniza a atitude de Hirst face à sua destruição da lógica do mercado das leiloeiras. mas a partir de quando é que exagerar na anti-arte pode transformar-se no seu oposto; ou seja, em arte, tendo em conta que uma coisa não é só pela sua afirmação ou pela sua negação? Quem define o momento em que a anti-arte passa a ser arte? Cada um de nós? Em termos relativos, ou caseiros, sim. Mas se tudo pode ser arte, o que é que a arte vai retratar? A própria arte? (Aliás, nessa parte (6º parágrafo) Kiefer sai-se tão mal que mais lhe valia estar calado. dá a entender que mais do que arte, Hirst fez dinheiro!). e não, não acredito que uma pessoa má possa dar um bom artista. uma coisa não é independente da outra. não podemos gostar da arte de um homem que deixa um cão morrer de fome como afirmação artística. foi o exemplo que me surgiu, mas é ilustrativo. se um artista quer ter visibilidade também tem de ter responsabilidade.

houve um tempo, em que a arte era tão explícita, que era mesmo ginecológica ou literal. mas agora, é simplesmente lateral: está a passar ao lado do seu próprio tempo.

sexta-feira, dezembro 02, 2011

desculpem, mas ando com muito trabalho. posto e respondo aos comentários assim que puder