quinta-feira, dezembro 29, 2011

- o carteiro -


De "A morte em Veneza", às Destiny's Child passando pela "Morte em Veneza" e pelo "Fausto"

Vocês bem sabem que gosto muito de "A morte em Veneza" do Thomas Mann e da "Morte em Veneza do Visconti". Pois no seguimento de uma investigação por conta própria, dessas que às vezes empreendo, mas desta feita com um propósito académico - e contando com a ajuda de um anónimo que forneceu o tão desejado artigo do Pedro Mexia - cheguei a algumas conclusões que me permitiram dar esta grande volta. Não sei se concordam, mas lá vai.
Se estabelecêssemos uma análise intertextual (entre textos) entre o "Dr. Fausto" de Thomas Mann e "A morte em Veneza" do mesmo autor poderíamos ver um conjunto de pontos em que as duas personagens principais de cada um dos livros se toca. Adrian Leverkhün, o Fausto de "Dr. Fausto" e Gustav von Aschenbach, o escritor no livro de Thomas Mann, vendem-se. O primeiro vende a sua alma ao diabo a troco de tempo que lhe permita concretizar a grande obra (onde já se percebe a busca pelo dodecafonismo de Schöenberg), enquanto Gustav se vende pela beleza. O Fausto, em termos absolutos, vende-se pelo conhecimento total. No mesmo livro, Gustav von Aschenbach enceta um diálogo interior que tem eco no diálogo platónico entre Sócrates e Fedro, já que Aschenbach conhece e percebe a impossibilidade da materialização do perfeito: assim que tocasse no perfeito, no objecto da sua adoração que é Tadzio e que representa a beleza enquanto coisa material, vinda dos sentidos e não como uma fórmula matemática, o mesmo desapareceria. O desejo esgotar-se-ia na sua satisfação, razão pela qual, tanto no livro como no filme, Aschenbach surge atormentado. Se Aschenbach é, como o classificou João Barrento, um "Prometeu sem generosidade" ele é também como Apolo que sabe não poder tocar Dafne. Aliás, a mitologia está sempre presente na história humana. Até nas telenovelas brasileiras que não são de desdenhar porque se aprende muito acerca dos sotaques. Bem, foi um aparte.

Se, porém, estabelecêssemos uma análise transtextual, entre as várias obras (literárias ou cinematográficas), ficaríamos a saber mais. Serenus Zeitblom, o interlocutor de Adrian Leverkhün no "Dr. Fausto" de Thomas Mann, e Alfred (o colega compositor de Aschenbach na "Morte em Veneza" de Visconti - que transforma Aschenbach também em compositor - com quem ele troca ideias e com quem está quase sempre em desacordo) funcionam nas obras como Mefistófeles já que tentam constantemente os seus colegas. Zeitblom representa a paixão e o destino e tenta assim Adrian Leverkhün que é a imagem do progresso e racionalidade. Já Alfred incita Aschenbach a escrever e compor com o coração, com os sentidos e não com a matemática. São eles, cada um à sua maneira, quem tenta as personagens principais e as leva no caminho da desgraça. Bom, a verdade é que cada um deles, Leverkhün ou Aschenbach procuram essa desgraça como forma de compreender o mundo, de abarcar tudo o que é possível. Não se contentam, recusam o que têm, porque o que têm, porque é lógico, é facilmente desmontável. Preparados para tudo, exceto para os sentimentos. Convém aqui dizer que o modelo de construção do Aschebach do filme foi tanto Schoenberg como Mahler, cuja obra e está presente na banda sonora do filme e o marca quase por inteiro (há pouquíssimo diálogo). Além disso, a viagem de Aschebach a Veneza baseia-se na viagem que Thomas Mann levou a cabo com a mulher e outro familiar, também a Veneza, altura em que viu o jovem Tadzio (na realidade muito diferente do actor que dá corpo a Tadzio no filme, mas que segundo dizem, era um belo rapaz na época. Nessa viagem Mann soube que Mahler havia falecido, o que o perturbou bastante. Assim, Adrian Leverkhün, Gustav von Aschebach (o do filme) e Schoenberg partilham a mesma profissão: são os três compositores. A música que tem muita importância no filme de Visconti não o tem apenas pela mão de Mahler. Há um pequeno e delicioso apontamento de Beethoven. O barco que leva Aschebach a Veneza (tanto no livro como no filme), chama-se Esmeralda. É também o nome de uma espécie de borboleta que Zeitblom refere ter sido a fonte de contaminação de Adrian Leverkhün quando este fica doente. (No filme e no livro Aschenbach também fica contagiado: de amor e de cólera). No filme, o nome de uma prostituta a que Aschenbach recorda ter recorrido, após a morte da mulher (e cuja atriz é por acaso muito parecida com a Marisa Berenson que faz de esposa do compositor) também se chama Esmeralda. Quando ele entra no quarto dela ela toca Für Elise de Beethoven, o mesmo que um Tadzio entediado toca no Hotel des Baines. Sabem que isto fez-me lembrar aquela música dos The Cure,Letter to Elise.

Bem, mas voltando às comparações transtextuais... A ampulheta que o Aschenbach do filme fala e para que olha tem eco no tempo oferecido a Leverkhün no seu primeiro encontro com o diabo. O tempo é aquilo que marca a angústia de Aschebach, tanto no filme como no livro, embora no filme seja mais evidente. Primeiro, quer aceitar o seu tempo, quer viver o resto de tempo que tem, em paz, sem cair no ridículo, sem ser uma vergonha para homens como ele. Vê-se no filme, como no início ele se envergonha do homem que tenta parecer mais jovem, com os lábios pintados com rouge e o rosto com blush. Mas depois, numa busca pela juventude (afinal ele vai para uma colónia de Verão junto à praia do Lido, cheia de jovens que se passeiam como deuses gregos embrulhados nas suas toalhas), acede a rejuvenescer nas mãos de um barbeiro que o deixa como o velho criticado no barco. Aschenbach aquiesce: que fazer? Ele quer poder chegar a Tadzio, quer poder fazer parte do grupo que se junta na praia e ainda brinca a fazer castelos na areia. Quando o barbeiro o deixa pronto diz-lhe algo que me marcou: "agora o senhor está pronto para amar", como se amar fosse uma prerrogativa dos jovens... Mas há mais: assim como o Aschenbach do filme é inspirado em Mahler, o Adrian Leverkhün de "Dr. Fausto" é inspirado em Schoenberg e Nietzsche através de conversas de Mann teve com Teodoro Adorno (acho que Schoenberg no entanto não gostou nada desta comparação e fez questão de se afastar dela. Afinal Leverkhün persegue os doze tons enquanto Schoenberg criou o Serialismo).

Sobre o filme poderíamos ficar aqui a falar para quase sempre. Eu pelo menos podia. As referências são inúmeras: a forma como o velho no barco diz a Aschebach "cumprimentos ao ser amorzinho", indicando já com isto que: quem vai a Veneza se apaixona, que Aschenbach não consegue esconder a sua inquietação e busca pela beleza e fazendo com a mão um gesto que não é bem o de um beijo, mas de uma sucção dos dedos. Não se trata de colocar os dedos nos lábios, mas na boca bastante vermelha. Depois, o barqueiro, que como Caronte leva Aschenbach, não para onde ele quer, mas para onde ele, barqueiro quer. O homem diz algo que Aschenbach não percebe ser para seu bem: "para onde o senhor deseja ir, as malas não podem ir", quando Aschenbach mostrava interesse em sair da gôndola e parar antes de chegar ao hotel. Quando de facto a personagem principal se vê sem as suas coisas, sem a sua bagagem que ocupa planos importantes do filme com o monograma GVA à vista, vê-se também sem o seu microcosmos, sem a sua segurança. É a partir daí que ele dá asas à paixão que sente e deixa de ser reprimir. Quando o compositor, aborrecido por lhe ter calhado um barqueiro tão voluntarioso, se mostra disposto a pagar logo e sair em qualquer sítio, e pergunta "quanto é?",o gondoleiro responde-lhe "o senhor pagará". Aschenbach pagou com a vida pois a paixão não lhe permitiu ver que quanto mais protelava a hora de sair de Veneza, para poder estar na presença de Tadzio, mais se contaminava. No fim do filme, essa contaminação parece sair do corpo moribundo de Aschenbach quando a tinta negra do cabelo pintado (artifícios do barbeiro), lhe escorre do rosto enquanto dois jovens (ah... a tormenta mesmo na morte), levam da praia para fora. Mas há também os morangos que pontuam muitas cenas numa alusão à sensualidade e os planos ao ir para a estação e ao vir da estação, a visão de Santa Maria della Salute como prenúncio de uma praga (foi construída para aplacar uma peste que assolou a cidade), há Tadzio apolíneo até ao fim, mas cujo amor de Aschenbach transforma quase em dionisíaco. Esse é aliás o processo de transformação do compositor, que correspondia no fundo ao processo de transformação de uma Alemanha orgulhosa numa Alemanha dominadora e por fim, numa Alemanha destroçada, sem identidade que culminou com a Segunda Guerra Mundial. É um filme excelente, o mais bonito que já vi embora isto valha de pouco porque infelizmente não vi tantos filmes como gostaria.

Mas como disse, o tema hoje avançava pelo menos até ao Fausto e falar do mito sem falar da música, não está certo. Sabe-se que foi adaptado para a ópera de Gounod (a ópera coloca a meu ver o desejo romântico que está subjacente a estas personagens românticas marcadas já pela/o Gesamtkunstwerk de Wagner). Quando esta obra estreou em Portugal, os seus figurinos foram pedidos para uma outra subjacente ao mesmo tema e de seu nome "Gran-Doutor", da autoria de um português, cujo nome não recordo. Há também o Fausto de Berlioz que nos merece alguma atenção. É que no livro "Margarida e o Mestre" de Bulgakov, para além de existir uma epígrafe do Fausto de Goethe e da substituição do cão negro pelo gato negro (Fasuto andava acompanhado por um cão negro, tal como São Domingos. O cão é presença importante em Frei Luís de Sousa e na Odisseia de Homero sendo que em ambas as obras é o cão quem primeiro reconhece o dono respetivo), nota-se que existe uma personagem com o nome de Berlioz e que o fagote, o instrumento musical fagote fazia parte do séquito do diabo. Não sei se tem alguma coisa a ver, mas quero acreditar que sim. Sabe-se que o Fausto também esteve presente no cienma expressionista como "O consultório do Dr. Caligari" de Robert Weine, no "Dr. Mabuse" de Fritz Lang e no "Fausto" de Murnau. Mas quando chegamos às chamadas Belas-Artes, temos de ver pelo menos três exemplos: as litografias de Delacroix acerca de Fausto a partir da peça homónima, a tela de Johann Peter Krafft que mostra uma visão medieval (bem ao gosto dos românticos), e flamenga (uma mistura estranha) e, last but not least, o desenho de Rembrandt onde é aplicado o anagrama , tal como Schoenberg o aplicava quando compunha, anagrama esse que foi usado no Fausto original. Este anagrama que aparece, qual epifania, na janela, faz-me lembrar um outro quadro de Rembrandt. Trata-se de Belshazzar's Feast, que corresponde ao capítulo 5 do Livro de Daniel quando Belsazar, rei da Bailónia ofereceu um grande banquete no qual corria vinho a abundantemente dos jarros retirados do templo de Jerusalém. Enquanto ali se adoravam outros deuses, como deuses de ferro, madeira, ouro. Ora quando isto estava a acontecer, surgiram uns dedos de homem na parede, que escreveram algo que o rei pediu a todos no rei que ajudassem a decifrar. Era MENE, MENE, TEQUEL, UFARSIM que queria dizer que Deus ahvia contado e terminado o reino de Belsazar, o rei tinha sido julgado e perante Deus estava em falta, razão pela qual havi de morrer e o seu reino dividido. Nessa noite o rei morreu. Quando vejo este quadro, lembro-me sempre da expressão The wrinting's on the wall do disco das destiny's child e também desta música da Beckham. Ela diz: "cos sex is written in the scribble, writing's on the wall". Atenção que como designer ela é excelente.

















Rembrandt
Belshazzar's Feast
1635
National Gallery, Londres