- o carteiro -
o paper de Iconografia Profana sobre o tema do espelho na pintura - parte I
O que seria de Alice sem o espelho para entrar num mundo diferente, onde a imaginação regia a Lógica e a Física? E da mesma forma, o que seria da Rainha Má da Branca de Neve, sem o espelho para lhe revelar que a mais bela se encontrava num reino distante? Nas estórias, tal como na História, inclusive a da Arte, o espelho desempenha vários papéis. Podemos acreditar que revela, como uma matrioska, o infinito de Citizen Kane, ou que como São Paulo, o reflexo do espelho é apenas uma parte da imagem e que por isso não tem correspondência com o real. Ou podemos ainda recuar até Platão que formulou o conceito de Ideia como a imagem refletida. Sejamos mais ou menos propensos ao cinema, à religião ou à literatura infantil, a verdade é que o espelho se encontra na nossa vida e moldou, através das imagens que levou à mente do observador, a forma como nos vemos e acima de tudo, como vemos. Lembremo-nos da Vénus de Velázquez que se olha ao espelho, ou do Casamento dos Arnolfini ou até da jovem que atende o cliente ao balcão do bar no Folies-Bergères de Manet. O denominador comum entre eles é o espelho e, acima de tudo, aquilo que ele reflete.
O quadro de Petrus Christus, um artista flamengo contemporâneo de Van Eyck, foi executado em 1449 e sobre a sua autoria não restam dúvidas. (Fig. 1) Tal como o colega Van Eyck, também Petrus Christus deixa neste uma marca. Ao fundo do quadro, na mesa, podemos ler: “Petrus Christus fez-me no ano de 1449”. (Fig. 2) Van Eyck fez do Retrato dos Arnolfini um documento que testemunhou a sua passagem pela boda; este pintor por seu lado fez do quadro uma personagem. A cena parece ser bastante simples: um casal ricamente vestido e um homem a pesar ouro conversam num espaço interior exíguo. Este homem, a quem cabe a tarefa de pesar o ouro, é Santo Elói, protetor dos ourives e ferreiros e também ele ourives, enquanto o casal, tanto poderá ser Santa Godeberta e seu marido, como apenas um casal anónimo. Atentemos então neste par: estão ambos vestidos de acordo com o estilo da época e até, diga-se, de forma reservada apenas aos membros da corte. A senhora, com o seu brocado dourado típico de Itália e toucado bordado com pérolas, e o senhor com um colar pesado e um broche pendente do chapéu indicam-nos a presença de gente influente. Acerca da identidade deste par há que ter em conta duas opções. Santo Elói teve alguma fama chegando mesmo a trabalhar para o rei merovíngio Dagoberto e para Clotário II. O noivo tem ao peito não apenas um colar, mas aquilo que parece ser o colar com as armas de Gelders, uma família da época, de onde saiu Mary que casou com aquele que se tornou o rei James II da Escócia, justamente em 1449. (Fig. 3) Para corroborar a ideia de que se trata de um casal, podemos atender ao cinto nupcial, típico nos casamentos da altura, e que se encontra em cima do balcão. O cinto pousado na bancada, por seu lado, orienta o nosso olhar até Santo Elói, que o autor recupera e contextualiza na oficina de ourives cerca de 1000 anos depois.
Fig. 1
Petrus Christus
Santo Elói na sua oficina
1449
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
Fig. 2
Fig. 3
Elói trabalhava para uma guilda de ferreiros e ourives e eram estas organizações que determinavam, entre outras coisas, que os ourives deviam trabalhar com as janelas abertas para os dissuadir da adulteração dos metais, mas também, que evitassem ao mesmo tempo atrair atenções através de um espirro, por exemplo. Relativamente ao conteúdo das prateleiras podemos ver que não obstante o grande número de peças, a mais valiosa, a vários níveis, era o dente de tubarão fossilizado (encontramos dois pendurados na parede) já que se cria que detetava veneno em contacto com o mesmo. Mas havia outras peças com valor semelhante, como a taça em forma de coco que era tida por antídoto, mas apenas porque se acreditava que os frutos exóticos tinham o poder de reverter o efeito de um veneno. Os outros objetos, partilham com estes, o efeito curativo, embora possuíssem por si valor material. Entre eles notamos a presença de um coral que serviria para estancar hemorragias, rubis que preveniam a putrefação, safiras para curar úlceras, bem como uma bolsa para guardar o cinto nupcial, um rosário de coral e âmbar e por fim o relicário ou âmbula. (Fig. 4) Em cima da mesa encontra-se o espelho, convexo como era uso das classes menos abastadas (os espelhos eram uma novidade e apenas os mais ricos possuiam espelhos planos), dirigido para um espaço ao qual não temos acesso; ou seja, o espaço exterior. A superfície redonda do espelho reflete uma janela aberta (provavelmente a abertura necessária ao ofício) e o mundo exterior, onde vemos duas pessoas a passar, sendo que uma delas traz consigo aquilo que foi considerado um falcão (Fig. 5). Lembremo-nos que nesta época a caça era um desporto de corte bastante comum no qual homens e mulheres tinham possibilidade de conviverem (vejamos, a título de exemplo, o mês “Agosto” nas iluminuras do Livro de Horas do Duque de Berry). (Fig. 6) A cena ficou composta e no século XIX a pintura deu entrada numa coleção alemã, pela mão de alguém que se dizia ser o último representante da guilda dos ourives da Antuérpia.
Fig. 4
Fig. 5
Fig. 6
No que concerne ao espaço as figuras estão colocadas num canto do mesmo: numa das paredes podemos ver duas janelas altas e na outra, uma cortina verde, aberta, corrida para os clientes – e nós – podermos observar as preciosidades do ourives. O espaço é pintado como acanhado, não porque o fosse na realidade, mas porque Christus, à semelhança do que havia feito em outros quadros seus – e do que havia visto em Van Eyck – coloca o ponto fulcral da cena para o lado direito da pintura. A inscrição a emoldurar o quadro, as moedas do lado direito e a atração que constitui as prateleiras levam o observador a pensar que o espaço é exíguo, mas à esquerda há mais balcão e de certeza, espaço para a senhora arrastar o seu vestido. Da mesma forma, o espelho hemisférico em primeiro plano funciona como um repoussoir, um efeito que chama a atenção do observador, e que reflete o exterior da loja e estabelece também a ligação com o interior já que o vermelho forte das vestes do ourives ainda está refletido na superfície do espelho. Cada uma das personagens ocupa um espaço específico e tem com as outras personagens uma relação pensada e quase matemática. Senão vejamos: o ângulo da sombra das peças na prateleira é igual ao realizado entre a parede e as prateleiras. E apesar de tudo nos parecer um pouco apertado, a noção de espaço continua a sobressair através do eixo vertical e central que começa com as curvas do cinto, avança até à mão de santo Elói, sobe até à mão da jovem, ombro do ourives e desagua na mão, espada e figura do jovem homem. (Fig. 7) Este eixo associa as três figuras numa massa de relações. Um exemplo disso é que estas três figuras formam um triângulo e que a diagonal formada pela mão que abraça a jovem, o seu braço, a sua mão esquerda e a mão esquerda do ourives levam-nos até ao espelho onde estão refletidas as duas figuras que por sua vez nos devolvem ao nosso lugar. (Fig.8) Dadas as dimensões reduzidas do espaço, o vermelho da veste de St. Elói trá-lo para a frente da composição, isolando esta figura das outras e dirigindo o nosso olhar também para ele. É que esta figura, não só pela sua veste, mas também pela sua atitude, difere muito do jovem casal, já que o ourives se mostra muito calmo, em oposição ao nervosismo dos noivos. Num gesto um pouco retórico, segura a aliança com vista a dirigi-la à balança que medirá, de forma metafórica a fidelidade futura dos nubentes. Apesar de todas estas relações que podemos estabelecer entre as personagens e não obstante o referido eixo, temos de ter em atenção que a sugestão de perspetiva é facilmente desmontada: as prateleiras correm planas atrás de Elói, enquanto a cortina e as janelas fazem uma sugestão de linha de oblíqua. Em suma, enquanto Van Eyck pintou uma cena pública num espaço privado, Christus faz exatamente o contrário. Neste sentido, o espelho e o que nele está refletido pode não fazer, por contraste a alusão ao que se passa no interior da oficina.
Fig. 7
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