"O apreço exterior pela arte é a sobrecasaca da inteligência." - Eça de Queirós
sábado, agosto 29, 2009
quinta-feira, agosto 27, 2009
- original soundtrack -
I'm painting, I'm painting again.
I'm painting, I'm painting again.
I'm cleaning, I'm cleaning again.
I'm cleaning, I'm cleaning my brain.
Pretty soon now, I will be bitter.
Pretty soon now, will be a quitter.
Pretty soon now, I will be bitter.
You can't see it 'til it's finished
I don't have to prove...that I am creative!
I dont' have to prove...that I am creative!
All my pictures are confused
And now I'm going to take me to you.
(Artists Only, Talking Heads)
- não vai mais vinho para essa mesa -
expressões que não compreendo e que toda a gente diz:
- "Então? Isso vai ou não vai?"
[quem, quando e onde, pergunto eu]
- "Adeus! Beijinhos grandes!"
[ou são beijos, ou beijinhos pequeninos - o que é uma redundância -, ou são beijinhos]
- "Um dia destes combinamos um café!"
[Porque é que não combinamos agora?]
- ars longa, vita brevis -
hipócrates
hipócrates
"vá lá, não me crucifiquem" ou como "sei que parece que isto está a fugir ao original, comparar obras de arte com obras de arte, mas o cinema é uma arte. Como vi um dia destes escrito, o cinema é a "cétima" arte (eu nem digo nada...) ou como "sendo assim, posso comparar um uma imagem e situação de um filme com uma imagem de um video de música, sendo que para mim, alguns vídeos são obras de arte. Os da Madonna são sempre, talvez não por mérito total dela, mas dos realizadores. No fundo, é quase sempre mérito dos realizadores. Hoje trago a comparação entre uma cena do filme "Asas do Desejo" e uma cena do vídeo "Everybody Hurts" dos REM. No filme "Asas do Desejo" de Win Wenders, um anjo desce à terra em ambiente urbano e pós-guerra e ouve os pensamentos das pessoas, o que as preocupa, a razão para a sua tristeza. Depois, e como os marinheiros que se deixam encantar pelas sereias, o anjo vê-se na desconfortável situação de escolher entre o amor de uma mortal e subsequente mutação para se tornar um humano e a vida eterna. Numa das cenas a câmara percorre uma carruagem do metro e lê/ouve, o pensamento dos viajantes. O barulho de fundo prossegue e os pensamentos vão do mais simples, ao mais pessoal e confessional. Um homem diz aos 12s de vídeo "It's four years since I saw her..." e acrescenta "and two that she's been ill". Isto quer dizer que a pessoa em questão não vê ou não fala com alguém há quatro anos, mesmo sabendo que essa pessoa está doente.
Lembrei-me que no vídeo dos REM existe uma cena muito semelhante. Aliás, o vídeo tem outra cena, no início que é muito parecido com a abertura do filme "8 e 1/2" do Fellini. Mas a parte a que me refiro é aquela em que a câmara percorre os vários carros, não é o vocalista que os percorre, quando o carro em que ele segue chega perto do local onde o trânsito parou, acho que age como anjo, fazendo com que seja possível ler os pensamentos de cada uma das pessoas. A cena que aqui deixo refere-se ao momento 1m21s quando um homem dentro de uma viatura pensa "17 anos...". Provavelmente iria rever alguém após 17 anos, ou perdeu alguém com 17 anos há 17 anos.
Meus amigos, "e assim acontece", como dizia o outro. Prometo trazer para a próxima arte de cavalete, cinzel, inspiração e moldura, para toda a gente ficar de barriguinha cheia.
Win Wenders
Asas do Desejo
1987
Jake Scott para REM
Everybody Hurts
1993
- o carteiro -
Se uma cabeça incomoda muita gente, duas cabeças incomodam muitas mais. E três incomodam quem as tem:
A imagem de Ticiano relativa à “Alegoria do Tempo governado pela Prudência” não me era estranha. Já tinha visto a mesma disposição num quadro de Poussin, mas percebi, ao escrever este post, que “o buraco era mais em baixo”. O que Ticiano pintou era o resultado da incompreensão ocidental relativamente à iconografia e às histórias do Egipto e do Extremo Oriente.
Ticiano
Allegory of Time Governed by Prudence
1565
National Gallery, Londres
Havia uma divindade egípcia denominada Serapis por Ptolomeu Sóter I. Quando Ptolomeu subiu ao poder da dinastia Lágida, o touro sagrado de Osorápis, forma composta de Osíris + Ápis, era uma das principais divindades do Egipto. Osíris era o deus egípcio dos mortos enquanto Ápis era o touro. Desta forma, Serapis (nome por que ficou conhecido Osíris+Ápis) tinha uma dupla natureza pois representava simultaneamente a fecundidade agrícola e a vida além da morte o que ajudava o sincretismo com outros deuses como os deuses gregos. Os gregos identificavam Serapis com Hades, embora, e como vamos ver, existam diferenças substanciais e eu estabeleça neste post semelhanças com Hécate, uma divindade grega feminina. Cria-se assim no período Ptolomaico um deus antropomórfico que era a reunião de atributos egípcios e gregos. Segundo os escritos deixados por Plutarco Serapis era natural de Sinopo, no Mar Negro e tinha surgido em sonhos a Ptolomeu. O deus teria mandado trazer para o Egipto uma estátua sua cujo significado e alegorias foram elaboradas após isso, com objectivos ideológicos que reuniam elementos de ambas as civilizações. Era óbvio que como deus do Estado, Serapis seria o elo de agregação entre as culturas helenística e egípcia. O aspecto de Serapis é uma analogia com as histórias sobre Zeus, Hélio, Dionísio, Hades e Asclépio. A divindade era-lhe conferida pela ligação solar com deuses como Zeus e Hélio, a fertilidade vinha de Dionísio, Ápis e Osíris e de Hades e Asclépio recebia os elementos funerários relacionados com a ávida após a morte, a medicina e a magia.
Bartoli
Serapis
Vincenzo Cartari
Serapis
Serapis tinha a forma humana, um corno na testa, vestes ricas e ao estilo grego, mas estava acompanhado por uma criatura monstruosa com três cabeças: o Cerbéro da mitologia grega e várias serpentes aos pés. Serapis era uma divindade masculina relacionada com o mistério. Ora isto não era muito comum na Grécia pois como as mulheres não tinham voz activa nem válida na sociedade passaram a dominar a esfera religiosa e mística. Elas liam os oráculos, eram sibilas, eram vestais, dominavam o mundo dos mistérios subterrâneos, etc.
Serapis tinha a forma humana, um corno na testa, vestes ricas e ao estilo grego, mas estava acompanhado por uma criatura monstruosa com três cabeças: o Cerbéro da mitologia grega e várias serpentes aos pés. Serapis era uma divindade masculina relacionada com o mistério. Ora isto não era muito comum na Grécia pois como as mulheres não tinham voz activa nem válida na sociedade passaram a dominar a esfera religiosa e mística. Elas liam os oráculos, eram sibilas, eram vestais, dominavam o mundo dos mistérios subterrâneos, etc.
Vincenzo Cartari
Serapis
No entanto, segundo Hesíodo, uma das filhas do titã Perseu era Hécate. Hécate é uma figura complexa e arcaica proveniente de Caria, Sul da Ásia Menor. Nada na sua história, se é que ela existe, fala da participação da deusa num relato mítico ou heróico. Não pertence por isso ao panteão dos doze deuses olímpicos. O seu poder no entanto é enorme e estende-se tanto à terra, como ao mar, ao Céu e aos Infernos. Como deusa da terra que era, tinha o poder de conferir riqueza e outros benefícios de natureza material. Mais tarde, tornou-se deusa das artes mágicas e foi associada ao mundo dos fantasmas. De facto, se procurarmos no Google por Hécate, vemos que é o mote para muitos sites que falam de bruxaria e misticismo.
No entanto, segundo Hesíodo, uma das filhas do titã Perseu era Hécate. Hécate é uma figura complexa e arcaica proveniente de Caria, Sul da Ásia Menor. Nada na sua história, se é que ela existe, fala da participação da deusa num relato mítico ou heróico. Não pertence por isso ao panteão dos doze deuses olímpicos. O seu poder no entanto é enorme e estende-se tanto à terra, como ao mar, ao Céu e aos Infernos. Como deusa da terra que era, tinha o poder de conferir riqueza e outros benefícios de natureza material. Mais tarde, tornou-se deusa das artes mágicas e foi associada ao mundo dos fantasmas. De facto, se procurarmos no Google por Hécate, vemos que é o mote para muitos sites que falam de bruxaria e misticismo.
William Blake
Hecate or the Three Fates
1795
Tate Gallery, Londres
Pois Hecate é uma divindade com corpo de mulher, mas três cabeças mencionada num hino do mágico “Papiro de Paris”. Esta divindade de origem asiática foi assimilada, como vimos pela ascendência que lhe é atribuída, pela cultura grega como sendo muitas coisas para além dos atributos já mencionados. Dizia-se, nesse “Papiro de Paris” que Hecate surgia na Lua Nova representado três idades do Homem, o mesmo tema que Ticiano utiliza na referida Alegoria. No entanto Ticiano mistura este tema caro aos homens em geral (o tema da passagem do tempo e dos efeitos do tempo no presente e no futuro), com os sinais de Hecate e de Serapis; ou seja, o policéfalo, as três cabeças saídas do mesmo corpo, cada uma com um significado. No caso de Hecate, uma das cabeças é humana, a cabeça da esquerda é de um cão e a cabeça da direita de uma cabra ou até de uma pantera, consoante as representações. Como vemos, aproxima-se do monstro que acompanha Serapis.
Hecate
Século XVI
E porque Hecate é tri, é três em um, está muito presente nas encruzilhadas, nos cruzamentos, o que sabemos ser meio caminho andado para ser tomada como uma divindade mágica. É também a deusa tríplice pois o seu domínio é celestial, é infernal e marítimo. As representações também não são homogéneas pois tanto encontramos a versão mais próxima de Serapis, como vemos estas figuras com três corpos ou com três faces humanas a olhar em direcções diferentes, ou três cabeças todas iguais, mas apenas um pescoço, etc. O importante a reter aqui é que o policéfalo, a imagem do homem ou da mulher com três cabeças de animal é uma presença na arte, presença essa ligada ao passado, ao presente e ao futuro, como veremos no quadro de Ticiano.
Catedral de Siena
Hecate
O retrato de Ticiano, que não deixa de ser um auto-retrato, é tardio, como mostrará a explicação seguinte, se esta for de algum uso. Vemos três rostos: um de frente e dois de perfil. O rosto do lado esquerdo da pintura temos o retrato de Ticiano, por cima de uma cabeça de lobo, de frente para nós está o retrato do seu filho, Orazio, por cima de uma cabeça de leão e do lado direito da pintura encontra-se o perfil do seu sobrinho Marco Vecelli que segundo se sabe, seria seu herdeiro, pintado por cima de uma cabeça de cão. Lobo, leão e cão têm o seu significado: simbolizam o passado (Ticiano), o presente (Orazio) e o futuro (Marco). No topo da pintura temos a explicação da mesma numa inscrição que tem de ser traduzida e analisada tendo em conta o pensamento da época. Diz o seguinte: “Ex praeterito praesens prudenter agit, ni futurum actione deturpet.” A inscrição quer dizer, mais ou menos, isto: da experiência do passado, o presente age de forma prudente, a fim de não comprometer a acção futura. Esta expressão que justifica de certa forma a escolha de uma imagem oriental para a exibição de um tema ocidental como o da Prudência (que geralmente não era retratada assim, com o uso de três cabeças a representar o passado, o presente e o futuro), mostra bem a capacidade de agregação e assimilação de conhecimento por parte de Ticiano. A mesma expressão não seria totalmente nova uma vez que já tinha sido utilizada por Petrus Berchorius no seu “Reportorium Morale”. Nele o autor dizia: a Prudência consiste na memória do passado, organizada no presente para contemplação do futuro. Isto resumido em três palavras: memória, inteligência e visão.
O retrato de Ticiano, que não deixa de ser um auto-retrato, é tardio, como mostrará a explicação seguinte, se esta for de algum uso. Vemos três rostos: um de frente e dois de perfil. O rosto do lado esquerdo da pintura temos o retrato de Ticiano, por cima de uma cabeça de lobo, de frente para nós está o retrato do seu filho, Orazio, por cima de uma cabeça de leão e do lado direito da pintura encontra-se o perfil do seu sobrinho Marco Vecelli que segundo se sabe, seria seu herdeiro, pintado por cima de uma cabeça de cão. Lobo, leão e cão têm o seu significado: simbolizam o passado (Ticiano), o presente (Orazio) e o futuro (Marco). No topo da pintura temos a explicação da mesma numa inscrição que tem de ser traduzida e analisada tendo em conta o pensamento da época. Diz o seguinte: “Ex praeterito praesens prudenter agit, ni futurum actione deturpet.” A inscrição quer dizer, mais ou menos, isto: da experiência do passado, o presente age de forma prudente, a fim de não comprometer a acção futura. Esta expressão que justifica de certa forma a escolha de uma imagem oriental para a exibição de um tema ocidental como o da Prudência (que geralmente não era retratada assim, com o uso de três cabeças a representar o passado, o presente e o futuro), mostra bem a capacidade de agregação e assimilação de conhecimento por parte de Ticiano. A mesma expressão não seria totalmente nova uma vez que já tinha sido utilizada por Petrus Berchorius no seu “Reportorium Morale”. Nele o autor dizia: a Prudência consiste na memória do passado, organizada no presente para contemplação do futuro. Isto resumido em três palavras: memória, inteligência e visão.
- o carteiro -
humm... quantos pratinhos de sopa é que isto dava?
A polícia iraquiana - e não são as comandadas pela coligação - recuperou um quadro de Picasso "The Naked Woman" que foi roubado do Kuwaiti National Museum em 1990, durante a invasão militar pelas tropas de Sadam Hussein. Alguém tentava vender o quadro (no Iraque? Em guerra?) por cerca de 450 000 dólares a Norte do Iraque. Segundo o detido, um parente tinha estado presente na invasão do Kuwait e deu-lhe o quadro para o senhor guardar. O governo iraquiano pretende devolver o quadro ao Kwait, quadro esse que vale vários milhões de dólares. Quer dizer, o quadro tinha um carimbo de garantia do museu, razão pela qual era fácil de perceber que se estava perante algo importante. Mas a quem é que o homem ía vender o quadro? E será que o Iraque vai mesmo devolver? Humm... isso podia não dar muitos pratinhos de sopa de couve tronchuda, mas que dava para comprar muitas kalashnikov's, lá isso dava.
[link] Depois de Joe the plumber, Joe the publicarchitect
O príncipe Carlos ataca outra vez: num ano cheio de intervenções voluntárias nas obras de arquitectura um pouco por todo o reino, e decidido a acabar com os starchitects (e a criar um estilo ao seu gosto), o príncipe, muito preocupado com a democracia, fez um pedido ao público em geral para que participasse no desenho de novos edifícios. Embora esta não seja uma ideia original do príncipe (a Escócia também já faz isso), no caso dele é preocupante pois a democracia inglesa é como a grega: metecos, mulheres e escravos não votam. Carlos advoga que as populações residentes, mais do que os arquitectos devem ter a última palavra a dizer na construção de edifícios que aos mesmos dizem respeito. E implantou mesmo o “enquiry by design” (EBD), que pede às pessoas que digam se preferem um parque coberto ou descoberto, o estilo arquitectónico X ou Y, janelas de madeira ou de metal. Mas tendo em conta que Carlos advoga um estilo pessoal na arquitectura inglesa e que se tem eximido bastante em comissões de obras que não são da sua alçada (mesmo em obras de empresas privadas, Carlos tem exercido alguma pressão para que as mesmas optem por outros arquitectos, como aconteceu com Lord Rogers) esta opinião traz, no mínimo, "água no bico".
[link]
[link]
- ars longa, vita brevis -
hipócrates
hipócrates
recomedações: lavar as mãos, não frequentar espaços fechados, usar sempre protecção, andar pelo lado direito da estrada, não comer fritos e ler estes:
John Kennedy Toole
Uma Conspiração de Estúpidos
Antonin Artaud
Heliogabalo ou O Anarquista Coroado
Slavoj Žižek
Violência
Martin Page
A Primeira Aldeia Global
Fustel de Coulanges
"A Cidade Antiga"
quarta-feira, agosto 26, 2009
- o carteiro -
desesperadamente sem tempo para encontrar uma clutch verde-esmeralda, verde-água ou azul turquesa. Meu Deus, que raio de post!
sexta-feira, agosto 21, 2009
quarta-feira, agosto 19, 2009
- original soundtrack -
Well, I wonder
Do you hear me when you sleep?
I hoarsely cry
Well, I wonder
Do you see me when we pass?
I half-die
Please, keep me in mind
Please, keep me in mind
Gasping, but somehow still alive
This is the fierce last stand of all I am
Gasping, dying, but somehow still alive
This is the final stand of all I am
Please, keep me in mind
Well, I wonder
Please, keep me in mind
Oh, keep me in mind
Keep me in mind
(Well I wonder, The Smiths)
- não vai mais vinho para essa mesa -
o (meu cúmulo) do azar:
apanhar boleia de duas horas de um casal que ouve João Pedro Pais.
- ars longa, vita brevis -
hipócrates
antes e depois ou como “ok, eu sei que não é um antes e depois escarrapachado, mas isto vai lá com uma observação mais atenta. Há primeira vista parece que não diz o “c* com as calças”, mas diz e muito. A pintura de Hendrick Maertensz é uma típica pintura holandesa. O título (e tema), “The lute player”, é transversal: Gerrit van Honthorst, Gerard Terborch, Vermeer, Frans Hals. E embora nem todos o pintem de forma exactamente igual, há uma matriz que faz com que determinados elementos se repitam, ainda que sob outra ordem como o tocador, a jovem, a presença de animais, o lado para que está virado o alaúde… Neste “The Lute Player” vemos como o pintor se aproxima da moda da época nos seus últimos anos de trabalho. Ali podemos notar a presença de um jovem dandy com um alaúde de dois braços a entreter o objecto dos seus afectos (uma jovem que o olha impassível) junto a uma janela que se abre sobre um cenário urbano. A pintura, muito parecida com todas as que conhecemos dedicadas a este tema está, obviamente, repleta de alusões ao amor e ao enamoramento representado pelas duas personagens. Primeiro, a música era considerada uma “arte do demo” porque obscurecia a razão, enublava a postura e era um acessório protocolar do engate. Vemos depois na janela, a imagem típica do romantismo saloio com o rio e um homem num barco. Melhor mesmo só se a pintura fosse italiana e o barco fosse uma gôndola. O tocador de alaúde inclina a cabeça para a “pretendida”, a jovem anui, mas nisto dos amores, dizem, elas é que permitem a eles a conquista e fazem-nos acreditar que o mérito é deles. Há uma informalidade quase marital com as peças brancas (não estou a dizer que é roupa de baixo) espalhada pela sala e no fundo da mesa, o cão aos pés do homem (obediente, paciente, à espera de ordem para ir buscar a caça) e o gato aos pés da mulher (na modorra, tumescente e inebriado à espera que qualquer vontade própria ataque). Na mesa os frutos maduros (se calhar já tocados, if you know what i mean!), o vinho para libertar os espíritos e molhar a palavra e o pão cortado, juntamente com alguns restos de comida mostram-nos a encenação do tema, uma vez que representam, na minha opinião, a prova de que já tinha existido uma intimidade mais pronunciada do que a mostrada entre os dois intervenientes. É também um prenúncio do que dizem, acontece com as relações, o desgaste que sofrem e a forma como as carnes se consomem até ao fastio. Valha-nos Nosso Senhor que surge na parede e parece estar a dar a mão a alguém que sofre. “Virgem Santíssima, não permitais que eu viva, nem morra em pecado mortal. Em pecado mortal não hei-de morrer, que a Virgem Santíssima me há-de valer.” Amén, Amééééne.
A pintura de Miró inspirou-se na pintura de Hendrick Maertensz, disso não haja dúvida. Mas não é uma reprodução, é uma interpretação segundo a época com o uso de cores planas bem delimitadas, abandono quase total (pelo menos em comparação com a fonte) de figurativismo, naturalismo, perspectiva o que representa precisamente a separação entre a intenção da identificação e a identificação da percepção. Como o original se chama “The lute player”, Miró reduz a sua interpretação quase a isso, quase ao elemento masculino e para uma maior esquematização do quadro, agrega as cores. A grande mancha de cor é castanha e representa o alaúde. Segue-se o branco que representa a mesa, as tais peças brancas muito visíveis na intimidade pintada por Hendrick desta vez formam uma massa que é a própria mesa e o colarinho do tocador. Miró exagera o tamanho do colarinho, que na realidade o tocador estivesse a usar um rufo. Estas manchas de cor esmagam completamente os restantes elementos como a mulher, que praticamente deixa de existir, a mesa e só não erradica os animais porque eles são importantes na analogia.
Joan Miró
Dutch Interior I
1928
The Museum of Modern Arts, Nova Iorque
Hendrick Maertensz Sorgh
The Lute Player
1661
Rijksmuseum, Amsterdão
- o carteiro -
No Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa encontra-se uma obra de Bosch muito conhecida (“As tentações de Santo Antão”), mas pouco compreendida. Fala-se na “estética da época”, do exorcizar do próximo milénio, mas não se aprofunda uma obra repleta de significados e curiosidades que serviriam como íman natural visto procurar paralelo com a nossa vida. É que, sabem… o que acho que falta muitas vezes nos museus, galerias and so on é a descida de um nível (em alguns casos, de dois níveis) face ao visitante. Não se pode partir do princípio que as pessoas sabem tudo. Então como manter alguém interessado se a arte se distancia do espectador e o museu é o promotor desse distanciamento? Sou pela observação atenta, pelo pormenor. Não acredito, em Bosch, na aleatoriedade dos elementos, mas isto já não interessa nada para o post. O que interessa é que em vez de nos queixarmos por não termos uma Capela Sistina, podemos mostrar algum orgulho por termos "As tentações de Santo Antão" do Bosch.
O que se sabe sobre Bosch a nível biográfico, não interessa muito e é escasso, mas há um pormenor, comum a Bosch e a Bruegel que faz muita diferença. Desde que nasceu até que morreu, Bosch pintou e viveu sempre na mesma cidade; ou seja pode aplicar-se a frase “pinta a tua aldeia e pintarás o mundo” de Tolstoi. A vida que levou e a época em que viveu muito dizem sobre o artista e a sua obra. Não é alguém, como não o foram os seus coetâneos, que passou por uma época repleta de polémicas e transformações sem a devida reflexão. As suas obras antevêem o que aconteceu desde a incorporação do Platonismo com o Cristianismo, o Renascimento, a descoberta da ciência, o século das luzes, até aos nosso tempos. Por outro lado é o reflexo de uma sociedade que vivia no temor do Juízo Final, assolada por diversas pragas, uma sociedade corrupta que não conhecia outra forma que não o sacrifício físico para se purgar das atrocidades cometidas pela mais simples hierarquia, que oscilava entre a crença na teoria Heliocêntrica, a Teocêntrica e a Geocêntrica e que, acima de tudo, era composta por uma grande camada de pobres que viviam na miséria. E já se sabe que em casa onde não há pão… também não há educação.
O quadro “As tentações de Santo Antão”, por vezes mal traduzido para “As tentações de Santo António”, insere-se nesta preocupação de Bosch de pintar o seu quotidiano com alguma crítica social. Na minha opinião, nem tudo nos quadros de Bosch é crítica; ou seja, o pintor faz uma crítica social, mas não no sentido da libertação religiosa. Se notarmos bem, neste quadro de Bosch, o que é exposto é o pecado humano e a forma como ele pode ser punido. Não há uma crítica à maneira como a religião tenta impingir o pecado ao mais fraco, sendo ela portadora de muitos pecados, bem como do poder da sua absolvição. Vemos estas contradições em Bosch quando notamos que o seu herói, o herói dos seus quadros não é aquele que denuncia a hipocrisia religiosa, mas o próprio religioso, que se verga a uma vida ascética em nome da expiação dos pecados dos outros. Bosch preocupava-se com temas como o tormento das almas pecaminosas, que logo substituiram as belas imagens de Cristo e da Virgem por imagens em que o medo, a ansiedade, a culpa e a piedade dominam a temática. Outra das fontes a que Bosch foi buscar inspiração, para além do espírito do seu tempo, foi ao que se passava nos recantos mais escônditos das catedrais, ao obscurantismo da imaginação medieval, às ilustrações marginais dos manuscritos e às gárgulas e restantes elementos decorativos ou arquitectónicos, concebidos para provocar o temor nos crentes.
O que se sabe sobre Bosch a nível biográfico, não interessa muito e é escasso, mas há um pormenor, comum a Bosch e a Bruegel que faz muita diferença. Desde que nasceu até que morreu, Bosch pintou e viveu sempre na mesma cidade; ou seja pode aplicar-se a frase “pinta a tua aldeia e pintarás o mundo” de Tolstoi. A vida que levou e a época em que viveu muito dizem sobre o artista e a sua obra. Não é alguém, como não o foram os seus coetâneos, que passou por uma época repleta de polémicas e transformações sem a devida reflexão. As suas obras antevêem o que aconteceu desde a incorporação do Platonismo com o Cristianismo, o Renascimento, a descoberta da ciência, o século das luzes, até aos nosso tempos. Por outro lado é o reflexo de uma sociedade que vivia no temor do Juízo Final, assolada por diversas pragas, uma sociedade corrupta que não conhecia outra forma que não o sacrifício físico para se purgar das atrocidades cometidas pela mais simples hierarquia, que oscilava entre a crença na teoria Heliocêntrica, a Teocêntrica e a Geocêntrica e que, acima de tudo, era composta por uma grande camada de pobres que viviam na miséria. E já se sabe que em casa onde não há pão… também não há educação.
O quadro “As tentações de Santo Antão”, por vezes mal traduzido para “As tentações de Santo António”, insere-se nesta preocupação de Bosch de pintar o seu quotidiano com alguma crítica social. Na minha opinião, nem tudo nos quadros de Bosch é crítica; ou seja, o pintor faz uma crítica social, mas não no sentido da libertação religiosa. Se notarmos bem, neste quadro de Bosch, o que é exposto é o pecado humano e a forma como ele pode ser punido. Não há uma crítica à maneira como a religião tenta impingir o pecado ao mais fraco, sendo ela portadora de muitos pecados, bem como do poder da sua absolvição. Vemos estas contradições em Bosch quando notamos que o seu herói, o herói dos seus quadros não é aquele que denuncia a hipocrisia religiosa, mas o próprio religioso, que se verga a uma vida ascética em nome da expiação dos pecados dos outros. Bosch preocupava-se com temas como o tormento das almas pecaminosas, que logo substituiram as belas imagens de Cristo e da Virgem por imagens em que o medo, a ansiedade, a culpa e a piedade dominam a temática. Outra das fontes a que Bosch foi buscar inspiração, para além do espírito do seu tempo, foi ao que se passava nos recantos mais escônditos das catedrais, ao obscurantismo da imaginação medieval, às ilustrações marginais dos manuscritos e às gárgulas e restantes elementos decorativos ou arquitectónicos, concebidos para provocar o temor nos crentes.
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Entre os santos que Bosch mais gostava de pintar encontra-se Santo Antão. Há uma grande confusão entre Santo Antão e Santo António, mas este de quem vamos aqui falar é Antão, também conhecido por António, o Grande ou António do Egipto (exactamente por o seu nome em latim ser Antonius). Antão era um cristão com posses e que após a morte dos pais vendeu todos os seus bens e foi viver para o deserto no Egipto como um ermita, mantendo-se nesta solidão e ascetismo durante muitos anos. (fuga mundi, fuga do mundo como penitência em vez dos martírios que estavam demodé). Por isso é hoje considerado como o fundador do Monaquismo que privilegia a vida dentro da regra dos mosteiros (mesmo que em comunidade, o que não era o caso de Antão, mas sempre dedicada ao recolhimento) – Clero Regular, por oposição aos religiosos que fazem a sua vida fora dos mosteiros como os padres, estes designados por Clero Secular (de “século”, "mundo" em latim). Não existiu uma intervenção directa de Santo Antão na cura de doenças como se pode acreditar pela sua história. A devoção de que hoje é alvo veio de uma admiração involuntária e imitação dos passos dados pelos anacoretas. O que aconteceu foi que a devoção ao santo dedicada era tão forte, que se fundou uma Ordem hospitalar dos Antonitas que curava, acima de tudo, doenças contagiosas que grassavam a Europa da época, tais como a sífilis, a peste e uma que se chama erisipela gangrenosa (nome elucidativo!), também conhecida por fogo de Santo Antão pois quem dela padecia sentia um fogo a consumir-lhe, primeiro o cérebro e depois o corpo. Isto acontecia pois, como já foi dito aqui outras vezes, o pão era colhido antes do tempo por causa das doenças que atacavam as colheitas. Como o pão de centeio não tinha tempo de fermentar, desenvolvia um fungo especial que causava a tal doença. Os sintomas eram a propagação da gangrena até às extremidades do corpo como dedos, orelhas, nariz o que causava dores lancinantes, perda de sensação periférica e em último caso, morte. Também fazia com que os doentes padecessem de náuseas, vómitos, diarreias e sintomas do sistema nervoso central como alucinações muito semelhantes às que o LSD produz hoje. Nas alucinações os doentes acreditavam que estavam a ser atacados po demónios, tal como se fosse uma tentação. Seria esta a relação entre o ergotismo e Santo Antão
O Tríptico das “Tentações de Santo Antão” não é mais do que a visão de Bosch do que seriam as punições aplicadas aos que caiam em tentação. Estas punições assumiam duas formas: o assédio dos demónios e as visões eróticas. No painel central temos a Missa Negra; ou seja, a missa dedicada ao demónio. No painel da esquerda podemos ver os castigos físicos infligidos pelos demónios e no painel que se situa à direita notamos que as cenas se referem a pequenas passagens pictóricas acerca da comida e do sexo. Os detalhes necessários para pintar o quadro vieram do conhecimento do pintor das vidas dos Patriaracas nos Génesis e da Legenda Áurea. No geral, e mesmo não estando num grau de análise profundo, podemos notar nesta obra, bem como em outras como "O jardim das delícias" que o universo pictórico de Bosch se pauta pelas criações da sua própria imaginação que por seu lado não são mais do que um mundo assombrado por mosntros estranhos, plantas hediondas, frutos com poder vingativo, estruturas fantásticas, formas minerais, novas formas. Apesar de sabermos que esta temática faz um pouco parte da estética religiosa da época, ela também é - como referido - uma expressão muito própria dos provérbios da época, da iconografia, das crenças religiosas do povo, do folclore e da literatura medieval como a de Guillaume de Deguilleville .
O painel esquerdo representa a fuga e o insucesso de Santo Antão. Como já foi dito aqui o santo em questão esteve no Egipto onde foi tentado inúmeras vezes por demónios. Numa dessas tentativas de que o santo caísse em tentação, os demónios bateram-lhe tanto que o santo quase morreu. Depois de alguns amigos ermitas terem ido em auxílio de Santo Antão este recuperou, mas voltou para o sítio onde tinha sido espancado. Lá, e pela segunda vez, encontrou os demónios que agora, para além de o espancarem, brincaram com o corpo frágil do santo, atirando-o sucessivamente para o ar. O seu tormento só terminou graças a uma intervenção divina que fez incidir no interior do lugar ocupado por Santo Antão, uma luz que afastou os demónios. Satanás não desistiu e apareceu mais tarde sob a forma de uma lindíssima e muito digna rainha que Santo Antão viu banhar-se nua num rio. A rainha levou o nosso santo para a sua cidade onde supostamente teria feito inúmeras obras de caridade e tentou seduzi-lo. Só neste momento é que o santo se deu conta do engodo em que tinha caído e viu que era Satanás, que sob o pretexto do sexo procurava desencaminhá-lo. É esta a história que está parcialmente descrita através de dois episódios no painel esquerdo. Em primeiro plano vemos Santo Antão inconsciente a ser levado por um grupo de amigos para um lugar mais seguro. Um desses amigos (o de vermelho), segundo quem sabe, é o próprio Bosch, que juntamente com os outros leva o santo a atravessar a ponte. Diz-se que é o auto-retrato de Bosch porque os outros dois companheiros trazem o hábito dos Antonitas. Mas na mesma cena, no mesmo espaço físico do tríptico, Santo Antão é transportado pelos céus pelos referidos demónios, enquanto os outros seres monstruosos rodeiam e zunem como insectos furiosos. Bosch não fugiu à lenda do santo, mas incutiu na sua representação pormenores que a tornam mais dramática. Notemos então na presença de três criaturas de aspecto monstruoso debaixo da ponte por onde Antão é levado. Os três conferenciam enquanto se aproxima do grupo um ser mutante com bico de pássaro, corpo estranho, esquiador e portador de uma mensagem. Do lado esquerdo deste painel um pássaro abre o bico e engole de uma assentada um fruto de um ovo chocado. Na estrada pela qual segue Santo Antão amparado por amigos, encontramos mais à frente outro grupo de demónios e aquilo que parece ser o corpo (pernas) de um homem ajoelhado e inclinado para frente, como se o seu rabiosque fosse a entrada para edifício que o corpo forma e que é um bordel. Do lado esquerdo da pintura podemos ver uma representação do Leviatã; ou seja um monstro híbrido (há quem diga que é um crocodilo, uma baleia, ou a mistura de vários animais) que habita o mar e que, de vez em quando ataca os marinheiros e todos os que passam pela água ou ousam confrontá-lo. O melhor do Leviatã, é que é uma personagem com lugar na Bíblia.
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel esquerdo)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel esquerdo pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel esquerdo pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel esquerdo pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Observemos então o painel central. Este é certamente o auge da Tentação de Santo Antão. No geral podemos dizer que o que vemos é um santo, Santo Antão, que exausto pelos tormentos sofridos tenta reconfrontar a alma através da participação numa missa sagrada, à qual assiste juntamente com uma devota. Mas neste tríptico de Bosch, nada é o que parece: a mulher muito devota que acompanhava Santo Antão revela-se afinal uma servidora do Diabo e a Missa não é mais do que a Missa Negra, ou missa em que se faz a invocação e glorificação do diabo. Santo Antão olha-nos desiludido enquanto Cristo aponta para a imagem da sua própria crucificação que é o verdadeiro caminho da Salvação. Parece assim que para o santo só há duas formas de vida: perder-se e cair em tentação "como o diabo gosta", ou redimir-se, dedicar a sua vida aos outros através da oração e do exemplo do seu ascetismo, à imagem de Cristo.
Neste painel vemos também, e isto numa análise mais pormenorizada, a chegada ao local onde terá lugar a missa negra e onde Santo Antão será tentado (a história é contada como um encadeamento de imagens, mas sem uma leitura orientada. As figuras e diversas passagens acumulam-se no mesmo espaço. Para o painel central convergem todos os demónios, todas as espécies humanas ou não mais grotescas, vindas pelo mar, pelo ar e pela terra, em direcção a um túmulo em ruínas no centro do quadro. Numa plataforma frente ao túmulo, um casal bastante elegante colocou a mesa e nela distribui bebidas às suas companhias. Ao lado podemos ver uma mulher com um estranho penteado e um vestido extravagante a oferecer uma taça à figura masculina que se encontra à sua frente. Santo Antão está quase imperceptível, no meio das diatribes do quadro, mas podemos vê-lo ajoelhado junto à referida mulher. Santo Antão interage com o observador pois olha-nos directamente e levanta a sua mão direita para fazer o sinal da cruz como se estivesse a benzer-nos e a benzer-se, na minha humilde opinião. Este seu gesto tem um simétrico no gesto de Cristo, parcialmente escondido na profundidade do túmulo, convertido numa capela por Santo Antão. Parece não existir uma narrativa no quadro, mas várias e muitas vezes estas narrativas não têm, ou pelo menos não mostram ligação entre si. A parede do lado direito deste pequeno santuário construído por Santo Antão termina numa pequena torre coberta com cenas monocromáticas. Uma espécie de coluna de Trajano, mas sem relevo. Nessa mesma torre podemos identificar três imagens: a adoração do bezerro de ouro e um grupo, não identificado biblicamente, a fazer ofertas a um símio, naquilo que podem ser consideradas cenas de idolatria. Na terceira imagem da coluna vemos o regresso dos Israelitas de Canaã, com um cacho de uvas que representa Cristo. Nem por acaso, esta cena faz o contraponto com a imagem de Cristo a carregar a cruz, imagem esta que está presente na parte exterior do tríptico. Para além disto notamos que uma vila em chamas ilumina o fundo numa referência ao ergotismo cujas vítimas referiam o nome de Santo Antão na procura de alívio.
Os demónios que circundam o santo apresentam uma orientação que não é muito comum, nem para a época, nem para Bosch, segundo os entendidos. No grupo mais à direita podemos ver o tronco de uma árvore desfeita que se transforma no corpo, braços, cabeça de uma velha cujo corpo termina numa cauda de lagarto. Nos braços, a mulher, montada no dorso de um rato gigante, transporta um bebé. Ao lado do rato gigante, à esquerda deste notamos a presença de um animal no mínimo... nojento. É um jarro que se transforma em besta, com a boca do mesmo a fazer de ânus do animal. O homem que o monta mal consegue segurar na cabeça a coroa e desequilibra-se como um bêbado. E porque estes dois "animais" têm os pés na água, vale a pena falar dela. Ali, um homem foi sugado para o interior de uma pequena embarcação que tanto tem a forma e aspecto de peixe como de ave, uma vez que tem asas. Mais ou menos nesta direcção, mas do lado esquerdo do quadro um demónio toca alaúde em cima de um pato depenado com sapatos e cujo pescoço acaba, não num bico, mas na cabeça de uma ovelha com capuz. No lado direito da pintura, mesmo nas suas margens um pecado mortal está representado. É ele a Luxúria, através de um edifício em ruínas e outro que parece estar a ser evacuado, pois vemos um homem barbudo a sair do edifício nu, várias escadas entre as janelas, talvez numa alusão à passagem de um mosteiro para o bordel. Isto porque se repararmos com atenção no topo deste edifício um monge e uma prostituta bebem amistosamente. O pecado da Luxúria estava muito explícito na vida do clero; ou seja, não havia forma de um membro do clero alegar desconhecer ter cometido o pecado da Luxúria, uma vez que este pecado estava associado imediatamente ao sexo. Se dúvidas houvesse, qualquer clérigo com elas poderia ser esclarecido através do “Malleus Maleficarum”. Ufa... Todas estas formas, que Dali admirou e com toda a razão, mostram uma variedade de cores que conferem à pintura um visual simultaneamente brilhante e kitsch.
Esta ostentação demoníaca ajuda a ilustrar a segunda parte da tentação de Santo Antão muito bem exemplificada através do céu em chamas que cresce atrás da cidade. Os mesmos demónios serão destruídos através de um raio muito pequeno – é provável que não se veja assim e seja necessário aumentar a imagem, o que aconselho porque é um pormenor interessante e não porque fui eu quem escreveu este post – que fura a parede do templo/capela e ilumina dirigido para o grupo de demónios do lado direito deste painel central. Não há nunca uma destruição física, nem em relação ao grupo demoníaco nem em relação ao santo: eles nunca lhe tocam. Há uma destruição, quando muito, da forma humana que eles como demónios jamais poderiam ter, mas isso da parte de Bosch. O propósito desta “Tentação Fria” é assegurar que os tormentos, tanto os de um lado como de outro, são entendidos num sentido de redenção.
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel central)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel central pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel central pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel central pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel central pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel central pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel central pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
O painel do lado direito representa Santo Antão em meditação. Embora pareça, até pelo tema, que neste painel Bosch não tratou o episódio de Santo Antão da mesma forma surreal ou mesmo macabra que no painel esquerdo, a verdade é que o pintor introduz mesmo assim o episódio da mulher aparentemente virtuosa que se banha no rio e que vimos no painel central. Esta rainha diabólica apresenta-se no rio perante Santo Antão a tapar as “vergonhas” com um falso pudor e rodeada da sua corte demoníaca. De facto Santo Antão não olha para ela, olha para um grupo que está no canto esquerdo do painel. Este grupo de demónios tem a mesa posta, mesa essa que funciona um pouco como tenda, a árvore um pouco destruída e os demónios que atrás dela servem vinho é a ridicularização da cena tradicional do Jardim do Amor.
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel direito)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel direito pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel direito pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Hieronymus Bosch
Triptych of Temptation of St Anthony (painel direito pormenor)
1505-06
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
- o carteiro -
[1] "Rembrandt in Oman"
A exposição “Rembrandt in Oman” é já um sucesso antes mesmo da inauguração que ocorrerá esta quarta-feira no Grand Hyatt. O evento é muito importante pois é a primeira vez que um pintor ocidental já falecido e de renome é exposto no Médio Oriente. Juntamente com a exposição vai ser lançado um livro sobre a vida e obra de Rembrandt para ser vendido sem fins lucrativos: as receitas das vendas revertem para obras de caridade. São cerca de 100 trabalhos com mais de 400 anos originais nunca vistos no Médio Oriente. É provável que esta região já tenha visto reproduções ou cópias das obras em questão, mas é a primeira vez que estas se deslocam a um país do Médio Oriente, em vez de ser os habitantes que se deslocam até aos quadros.
[2] é a loucura total
O Vaticano vai permitir o alargamento das noites do museu que originalmente decorriam às quintas-feiras de Agosto e Julho, até Setembro e Outubro. Os museus do Vaticano que incluem a Capela Sistina estão, durante as férias, pejados de turistas durante o dia e por isso o Vaticano abriu as portas à noite. A iniciativa teve tanto sucesso que vai estender-se aos meses seguintes, das 19h às 23h (depois a festa segue para a Capela Paulina onde há uma rave regada com copinhos de leite e música de carrilhões).
[3] Inglaterra Absolutista?
O príncipe Carlos ameaçou deixar o patronato do National Trust, a menos que o desenho programado para ser a base de construção da nova sede de uma instituição de caridade que o príncipe “herdou” após a morte da rainha mãe, seja alterado para o gosto real. O príncipe recusa-se a aceitar a construção por 14,5 milhões de libras de um edifício em Swindon não cumpre os princípios de sustentabilidade que ele defende. Para além de mostrar estar envolvido com a caridade, o príncipe também deseja aprovar os projectos arquitectónicos para o edifício. A estrutura do edifício é triangular e muito minimal. Carlos fez saber que não estava satisfeito. O National Trust apresentou um argumento novo: o edifício seria construído com 1000 painéis fotovoltaicos no telhado, mas isto parece não ter convencido o príncipe. Além disso, Carlos já anda a “mexer os cordelinhos” para afastar o arquitecto francês Jean Nouvel de um projecto próximo da Catedral de São Paulo.
A exposição “Rembrandt in Oman” é já um sucesso antes mesmo da inauguração que ocorrerá esta quarta-feira no Grand Hyatt. O evento é muito importante pois é a primeira vez que um pintor ocidental já falecido e de renome é exposto no Médio Oriente. Juntamente com a exposição vai ser lançado um livro sobre a vida e obra de Rembrandt para ser vendido sem fins lucrativos: as receitas das vendas revertem para obras de caridade. São cerca de 100 trabalhos com mais de 400 anos originais nunca vistos no Médio Oriente. É provável que esta região já tenha visto reproduções ou cópias das obras em questão, mas é a primeira vez que estas se deslocam a um país do Médio Oriente, em vez de ser os habitantes que se deslocam até aos quadros.
[2] é a loucura total
O Vaticano vai permitir o alargamento das noites do museu que originalmente decorriam às quintas-feiras de Agosto e Julho, até Setembro e Outubro. Os museus do Vaticano que incluem a Capela Sistina estão, durante as férias, pejados de turistas durante o dia e por isso o Vaticano abriu as portas à noite. A iniciativa teve tanto sucesso que vai estender-se aos meses seguintes, das 19h às 23h (depois a festa segue para a Capela Paulina onde há uma rave regada com copinhos de leite e música de carrilhões).
[3] Inglaterra Absolutista?
O príncipe Carlos ameaçou deixar o patronato do National Trust, a menos que o desenho programado para ser a base de construção da nova sede de uma instituição de caridade que o príncipe “herdou” após a morte da rainha mãe, seja alterado para o gosto real. O príncipe recusa-se a aceitar a construção por 14,5 milhões de libras de um edifício em Swindon não cumpre os princípios de sustentabilidade que ele defende. Para além de mostrar estar envolvido com a caridade, o príncipe também deseja aprovar os projectos arquitectónicos para o edifício. A estrutura do edifício é triangular e muito minimal. Carlos fez saber que não estava satisfeito. O National Trust apresentou um argumento novo: o edifício seria construído com 1000 painéis fotovoltaicos no telhado, mas isto parece não ter convencido o príncipe. Além disso, Carlos já anda a “mexer os cordelinhos” para afastar o arquitecto francês Jean Nouvel de um projecto próximo da Catedral de São Paulo.
- não vai mais vinho para essa mesa -
rir, fazer de conta que está tudo bem, levantar, adormecer, dar passos, comer, fazer sala, escrever, relembrar, vestir, falar... tudo me parece um trabalho hercúleo nos dias que correm.
sábado, agosto 15, 2009
- back to black -
O parolismo e outras figuras de estrilho
Há parolismos nacionais que dão uma vergonha figadal; como o tunning e a extrema direita. Há depois parolismos nacionais que não bimbam carros, nem ostracizam ninguém, mas são "sinedocais", à posteriori. Causam um estrilho semelhante, isto porque o povo é pacífico, aos que vêem o vizinho construir uma garagem mais pequena que o carro. Na categoria dos primeiros está aquilo que não engana ninguém; ou seja, e para usar um estrangeirismo que também é uma figura, desta vez de estilo, “what you see is what you get”. No segundo caso e para usar outra figura de estilo, há um barbarismo, uma vez que “what you read has nothing to do with what they wrote”. Um exemplo deste segundo parolismo passou-se com a revista Arte e Leilões e com uma obra de Paulo Nozolino. A revista, na sua décima nona edição de Junho deste ano (bem sei que já passou há muito tempo, mas quem dá o que sabe a mais não é obrigado), publicou um capa uma fotografia de Paulo Nozolino. Para além de lhe ter alterado a orientação (de horizontal para vertical), associou-a ao texto do editorial – um texto que representa o intectualismo canónico de qualquer revista que deseje o arrulho enlevado dos leitores – ao (tcha-na!!!): Allgarve. O direito de resposta está aqui, neste site eu acho valer a pena ler, para perceber até que ponto quem molda a nossa opinião e fala por nós como um escolhido celestial, manipula a confiança depositada ingenuamente nas instituições. O respeitinho é uma coisa muito linda, mas não é nenhuma Ana Beatriz Barros.
- back to black -
"a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós" - José Saramago em "O ano da morte de Ricardo Reis"
quarta-feira, agosto 05, 2009
- original soundtrack -
acho que é por andar a ler o "On the Road"
When the rain is blowing in your face
And the whole world is on your case
I could offer you a warm embrace
To make you feel my love
When the evening shadows and the stars appear
And there is no one there to dry your tears
I could hold you for a million years
To make you feel my love
I know you haven't made your mind up yet
But I would never do you wrong
I've known it from the moment that we met
No doubt in my mind where you belong
I'd go hungry, I'd go black and blue
I'd go crawling down the avenue
There's nothing that I wouldn't do
To make you feel my love
The storms are raging on the rollin' sea
And on the highway of regret
The winds of change are blowing wild and free
You ain't seen nothing like me yet
I could make you happy, make your dreams come true
Nothing that I wouldn't do
Go to the ends of the earth for you
To make you feel my love
(Make you feel my love, Bob Dylan)
- "e o burro sô eu?" -
"Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem, que está no céu."
"E sucedeu que, indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho."
[Do livro Roteiro da Bíblia, Edições Crise Luxuosa]
- ars longa, vita brevis -
hipócrates
antes e depois ou como "eu bem sabia que deveria existir uma boa razão para não gostar no Tom Cruise. E não é por causa da Nicole Kidman - podia apanhar por tabela, mas não, tem o seu motivo - nem por causa da Cientologia. É porque o acho um actor fraquinho. Para além dos filmes de menino bonito dos anos oitenta como Top Gun e Cocktail, até aquele melting pot de pedofilia, pederastia, sangue, sexo, música clássica e vampirismo que foi o "Entrevista com o vampiro", não achei que ele estivesse bem nem no filme Vanilla Sky, nem no "Eyes Wide Shut", nem no Valquíria. Pode ter tido os seus bons momentos, mas falta-lhe versatilidade. É a minha opinião. E como dar a opinião não significa ficar sem ela, aqui está.
Não associei a cena do filme à capa do disco de Dylan de imediato, mas é evidente que é uma cópia cuspida e escarrada: mesmo cenário, mesmo guarda-roupa, mesma pose. Como diria o Armani: "Hoje copiam, amanhã aprenderão". No disco de Dylan de 1963, podemos ver o cantor aos 21 anos, com a sua namorada da altura, Suze Rotolo (artista e professora). Há quem diga que Dylan pretendia retratar-se como James Dean nesta foto. Já em relação ao filme, há qualquer coisa naquilo que me supera: aqueles volte-faces que nem o realizador compreendeu ou os Deus ex-machina para resolver um gag. No fim fica tudo embrulha na etiqueta do "alternativo" ou do "against the system". Imagino-os numa noite de copos a tentar decidir: "então agora que ele não tem rosto o que é que a gente faz?", "põe-no a apanhar uma piela", "Ah, ah, ah, ah. Essa está boa. Escreve, escreve!", "E agora?", "In vino veritas", "E pá, o que queres dizer com isso?", "Os papéis invertem-se: a Penélope tem de ir de férias, fica sem filmar, o Tom fica aqui e a gente manda vir a Cameron que é muito gira", "E qual é o significado disso para a história?", "Ora deixa cá ver... deixa cá ver... Isto quer dizer que numa noite, em períodos muito pequenos de tempo tudo muda. Temos de estar atentos e nunca fechar os olhos, ou fechá-los apenas para a acreditar naquilo que nos recusamos a acreditar por fugir do domínio da razão...", "Ainda estás nos copos ou já estás na erva?"
Não associei a cena do filme à capa do disco de Dylan de imediato, mas é evidente que é uma cópia cuspida e escarrada: mesmo cenário, mesmo guarda-roupa, mesma pose. Como diria o Armani: "Hoje copiam, amanhã aprenderão". No disco de Dylan de 1963, podemos ver o cantor aos 21 anos, com a sua namorada da altura, Suze Rotolo (artista e professora). Há quem diga que Dylan pretendia retratar-se como James Dean nesta foto. Já em relação ao filme, há qualquer coisa naquilo que me supera: aqueles volte-faces que nem o realizador compreendeu ou os Deus ex-machina para resolver um gag. No fim fica tudo embrulha na etiqueta do "alternativo" ou do "against the system". Imagino-os numa noite de copos a tentar decidir: "então agora que ele não tem rosto o que é que a gente faz?", "põe-no a apanhar uma piela", "Ah, ah, ah, ah. Essa está boa. Escreve, escreve!", "E agora?", "In vino veritas", "E pá, o que queres dizer com isso?", "Os papéis invertem-se: a Penélope tem de ir de férias, fica sem filmar, o Tom fica aqui e a gente manda vir a Cameron que é muito gira", "E qual é o significado disso para a história?", "Ora deixa cá ver... deixa cá ver... Isto quer dizer que numa noite, em períodos muito pequenos de tempo tudo muda. Temos de estar atentos e nunca fechar os olhos, ou fechá-los apenas para a acreditar naquilo que nos recusamos a acreditar por fugir do domínio da razão...", "Ainda estás nos copos ou já estás na erva?"
Cameron Crowe
Vanilla Sky
2001
- ars longa, vita brevis -
hipócrates
Vira o disco e toca o mesmo:
Sei que não é a primeira vez que falo disto, e que não cheguei a conclusão nenhuma, mas quanto mais leio sobre o assunto mais clara se torna a ideia de que a arte é um conceito universal como a morte cabendo a cada um de nós a tarefa de destrinçar o que é para si a parte do conceito aceite. Entretanto, na morte, na vida e na arte, haverá sempre os constrangimentos, os preconceitos, as ditaduras, as opiniões dominantes, os machos alfa e os "ismos".
Estava a ler isto aqui e isto aqui , quando tive necessidade de recorrer à definição de arte: "Considera-se mais geralmente a arte como uma operação do espírito, tendendo à criação de obras que exprimem a realidade objectiva, incluindo o próprio homem e a sua maneira de ver o mundo.". Esta foi a única definição-definição de arte que consegui encontrar. Todas as outras são texto, justificações, avanços e recuos constantes. Há a de Everard Upjohn, a de Wollheim, de Kant, de Aristóteles, de Wittgenstein, de Platão... Todas elas com falhas, desmentidas pelo tempo e parciais pois ou são apenas objectivas e realistas, ou utilitárias, ou emocionais, ou contextuais, ou formais ou relativistas ou o rai que as parta! Seja qual for a nossa definição de arte, ou pelo menos os argumentos usados para questionarmos a arte, as obras que representam a definição e a definição em si, ela passa sempre por um ou mais destes elementos: o artefacto (a obra de arte), a relação com a nossa identificação e posteriores identificações fora do nosso contexto (uma vez que a arte é uma linguagem universal, devemos sempre pensar se o mesmo artefacto seria compreendido ou teria até algum impacto em outras civilizações); se pode ser considerado arte o que é funcional (um friso, por exemplo, quando retirado do todo ou um friso quando separado da sua decoração - aqui avançávamos já para o material como veículo da legitimação da obra); se pode ser considerado arte o que é fruto de uma encomenda, uma vez que ainda predomina a ideia que a arte é fruto da imaginação do artista, e ainda hoje se notam as oscilações no peso de mercado que artistas com muitos séculos vão tendo; se a arte deve ter um valor monetário associado; se a existência de uma explicação lógica para determinada obra de arte a torna mais "arte" do que "obra"; se a arte é feudal e confinada a espaços e suportes evidentes e por fim, quem dota a arte do seu valor para além de uma minoria que são os críticos de arte. Parece muito e é, mas vou tentar explicar estes pontos.
Primeiro tenho de dizer que esta questão foi sempre intrincada. Talvez agora ela aparente ter uma importância e divulgação que quase ultrapassa o aceitável, mas isso deve-se, na minha humilde opinião, aos jornais, aos blogs, à informação que circula muito mais depressa e em maior fluxo - sendo por vezes difícil distinguir o que é verdadeiramente importante daquilo que é apenas uma forma de preencher o horário nobre. A arte hoje é um gadget, até porque a fronteira que separava a arte erudita da arte para as massas está muito esbatida. Continua-se a ir ao São Carlos de vestido de noite preto, mas o que se ouve no São Carlos é itinerante. A necessidade é económica, mas também é verdadeiramente pedagógica, do ponto de vista do pedagogo! Isso faz com que a arte seja uma obrigação social: temos de ler os jornais ou sentimo-nos (e somos) excluídos dos meios que frequentamos, temos de passear em X sítio para podermos opinar com legitimidade; temos de ir ao cinema ver o filme que venceu em Cannes porque não basta ser-se bom ou gentil, temos de ser o mais culto e inteligente. Frequentamos em peregrinação uma exposição porque sentimos que isso faz parte de uma obrigação incutida pelo exterior que, quando não cumprida, não nos deixa em paz. Há sobre nós um sentimento de culpa por aquela falha curricular que depois já não poderá competir com os currículos de outras vidas. Sabem o que é que faz isto? As pessoas estarem hoje sempre dispostas a aparecer, a falar. Endeusamos as opiniões mais contraditórias porque elas nunca nos passariam pela cabeça. Mas enfim, voltando ao que interessa. A nossa passagem por um quadro não dura mais de um minuto. É impossível que alguém consiga observar ou reter com alguma fidelidade um elemento de uma obra em tão curto espaço de tempo. Visitamos os locais com beatitude como vamos à Igreja: porque algo nos obriga embora não compreendamos do que se trata. "É necessário", diria a titi.
Segundo, dizer que esta questão tem então chegado ao grande público, ao público que habitualmente não se preocupa com a mesma, devido ao valor astronómico que certas obras de arte têm alcançado e à forma como nos é dado a conhecer esse valor ou a obra em si. Os meios de comunicação social veiculam uma informação imaculada que, por desconhecimento e total crença no trabalho imparcial dos jornalistas, não questionamos. Passamos então a aceitar aquilo como obra de arte sem saber porquê.
A obra de arte (prefiro chamar-lhe obra de arte em vez de artefacto) é muitas vezes categorizada como tal devido a questões materiais (um problema formal e enclausuramento da arte dentro de uma definição que quer uma tradução física). É de facto verdade que se virmos a Mona Lisa, chamaremos obra de arte ao quadro: ele tem uma forma, é físico. Uma coluna grega, embora com uma funcionalidade, também tem uma forma. Mas por essa ordem de ideias tudo tem uma forma: a cadeira onde me sento tem uma forma e nem por isso ninguém a considera obra de arte. O problema coloca-se mais na arte de hoje, naquilo que nos é dado como arte, mas cuja legitimidade para tal epíteto ignoramos. É óbvio que aqui temos não só a acção dos média, mas os nossos próprios confrangimentos, os aspectos psicossomáticos de quem vê a obra. Estamos a falar igualmente e de importância extrema, da nossa concepção de arte enquanto abrigo apenas para as chamadas "Belas Artes" tal como a Pintura, a Escultura e a Arquitectura. É por isso que quando comparamos a Mona Lisa com a obra de um artista vivo como Hirst ou Richter, achamos que uma é arte, mas a outra não.
Limitamos a nossa observação ao funcional: a Mona Lisa não é funcional, não tem qualquer utilidade, mas pode ser colocada na parede. No chão continuaria a ser uma obra de arte; fora do museu, na rua, continuaria a ser uma obra de arte, quando reproduzida numa tapeçaria, continuaria a ser uma obra de arte. Tudo isto independentemente do conhecimento que temos dela. Identificamo-la como obra de arte não só devido à forma, mas à função. Já se estivermos perante a obra Porcos Decorados de Wim Delvoye questionaremos sempre se é arte ou não, pois não tem nem uma função no museu, nem na galeria, nem na nossa casa, nem no lixo. Será encarado como um artefacto carnavalesco. Esta nossa visão beócia da arte é muitas limitada pelo material com que a obra é feita e com isto já assumo a postura claramente materialista que me impede de chamar de obra de arte algo que não tenha uma tradução palpável. No entanto, tal como na descoberta espacial admito a possibilidade de vida fora da Terra, apenas não a mesma forma de vida.
E uma tribo africana ou aborígene? Será que diriam que a Mona Lisa é arte e que o tubarão de Hirst não é? Perante um novo contexto sem limites ocidentais, estas obras ocidentais seriam consideradas obras. Não posso ajuizar, mas talvez causassem apenas espanto: uma pela quase fidelidade ao real, outra pela estranheza do real. Teremos que nos colocar no mesmo posto e verificar se uma máscara africana tem para nós o valor de obra de arte, ou se vemos nela apenas a invocação de forças superiores místicas ou até um valor de uso.
Poderíamos dizer que é "obra de arte" ou que é "arte" se provoca uma emoção. Ora embora eu não seja dada à "lágrima no canto do olho", posso dizer que o que é válido para a Mona Lisa é válido para o Delvoye. A Mona Lisa não me leva às lágrimas e duvido que leve verdadeiramente alguém às lágrimas. Bem sei que a emoção não é só isto. A Mona Lisa pode muito bem provocar-me uma sensação física ou emocional desagradável, mas não é apenas isto que faz dela uma obra de arte. Se assim fosse a imagem de uma criança a morrer de fome também poderia ser considerada arte. Poderemos considerar arte o que não foi feito com essa intenção? Poderemos considerar arte o que é reproduzível? Poderemos considerar arte o que é intencionalmente sensacionalista?
O material é por vezes preponderante para dizermos que se trata de arte. A forma quadrada de uma tela, a forma humana do mármore, as formas mais ou menos orgânicas da pedra, levam-nos a projectar para fora do objecto em si o seu significado, considerando este ou aquele material mais nobre em detrimento de outro. O mármore esculpido é muito bonito, mas quando lhe tiramos a figuração, é só mármore que pode ser transformado numa banca de cozinha. Mais uma vez se nota o aspecto utilitário que valorizamos na arte bem como o respeito pelo nosso contexto. Achamos irrefutável a ideia da Mona Lisa como obra de arte, mas apesar do suporte ser o mesmo e do material ser o mesmo, achamos que qualquer Malevitch está, sob o ponto de vista formal, longe da qualidade da obra de Leonardo. Quem fala não somos nós, mas a incapacidade da maioria dos humanos, sem um treino intensivo, de reproduzir a realidade como os grandes mestres. Apreciamos também o facto de já o saberem fazer "naquela altura", colocando-os assim numa posição de inferioridade face à nossa altura. Por fim, causa-nos confusão aquilo que não faz parte da nossa biblioteca visual, que não se enquadra com o nosso sistema de símbolos e signos. Por isso temos tendência a repelir um quadrado branco dentro de um quadrado branco ou um Pollock e muito mais essa tendência se acentua quando estamos a falar de objectos ou de formas que por não escaparem à nossa compreensão ou por escaparem demasiado são colocados no limbo. Na obra de arte actual tudo o que é muito figurativo ou o que nada tem de figurativo é passível de sujeição à pergunta: "isto é arte?"
O figurativo pressupõe um esforço. É então comummente considerado que o esforço, o trabalho colocado na pintura da Capela Sistina (que o houve, não tenhamos dúvidas) foi maior que aquele colocado no acto de virar um urinol de pernas para o ar. Mas nem isso pode servir para considerarmos determinadas obras de arte como arte. Veja-se o trabalho de John Currin: as obras dele devem levar dias a estar concluídas. Têm um final; ou seja, estão concluídas quando não há mais sombra ou luz a apontar. Digo que devem demorar muito tempo a terminar pois penso que o artista em questão não utiliza nenhum artefacto como um projector para as pintar. Aliás, como há uma certa desproporção no corpo humano que Currin pinta, ele não precisa da realidade. Precisa do Photoshop, e utiliza-o! O que é que "custa" mais, o que é que envolve mais esforço: pintar um quadro como Currin que hoje em dia é visto como pornográfico embora utilize a linguagem pictórica do Renascimento, ou pintar como Verrochio cujas obras eram realizadas por aprendizes?
A Mona Lisa é provavelmente o quadro mais conhecido de Leonardo. A obra não é apreciada apenas pelo respeito pelas regras de simetria, proporção e equilíbrio (que ainda hoje vigoram), mas pelo seu carácter simbólico e quase mágico. Achamos que a soma destes factores faz da Mona Lisa a obra de arte em que a expressão do artista, a sua capacidade criativa e crítica (a arte pode ter essa função, essa utilidade de ser crítica perante uma determinada realidade), esteve no seu auge, mas mesmo tratando-se de um retrato, negligenciamos completamente o facto de a Mona Lisa ser somente fruto de uma encomenda. Já no caso da tubarão de Hirst, ou das cama os balões fosforescentes de Koons, desmerecemos o fruto de um trabalho criativo por não reconhecermos nele o cânone, não obstante serem obras que não foram sujeitas ao grande constrangimento que é o gosto do mecenas.
Acho que jamais poderei dizer o que é arte. Eu ou seja quem for. Não é possível chegar a um consenso e quando isso acontecesse, deixaria de ter toda a piada. Continuo a postar o que gosto e o que não gosto. Não posso dizer taxativamente o que é arte ou o que não é arte. Não posso avaliar assim. Posso estar atenta e não deixar que uma ditadura de críticos limite a minha opinião. Mas o tempo que tudo (ou quase tudo) pode tratará de dar a cada um o merecido reconhecimento.
Sei que não é a primeira vez que falo disto, e que não cheguei a conclusão nenhuma, mas quanto mais leio sobre o assunto mais clara se torna a ideia de que a arte é um conceito universal como a morte cabendo a cada um de nós a tarefa de destrinçar o que é para si a parte do conceito aceite. Entretanto, na morte, na vida e na arte, haverá sempre os constrangimentos, os preconceitos, as ditaduras, as opiniões dominantes, os machos alfa e os "ismos".
Estava a ler isto aqui e isto aqui , quando tive necessidade de recorrer à definição de arte: "Considera-se mais geralmente a arte como uma operação do espírito, tendendo à criação de obras que exprimem a realidade objectiva, incluindo o próprio homem e a sua maneira de ver o mundo.". Esta foi a única definição-definição de arte que consegui encontrar. Todas as outras são texto, justificações, avanços e recuos constantes. Há a de Everard Upjohn, a de Wollheim, de Kant, de Aristóteles, de Wittgenstein, de Platão... Todas elas com falhas, desmentidas pelo tempo e parciais pois ou são apenas objectivas e realistas, ou utilitárias, ou emocionais, ou contextuais, ou formais ou relativistas ou o rai que as parta! Seja qual for a nossa definição de arte, ou pelo menos os argumentos usados para questionarmos a arte, as obras que representam a definição e a definição em si, ela passa sempre por um ou mais destes elementos: o artefacto (a obra de arte), a relação com a nossa identificação e posteriores identificações fora do nosso contexto (uma vez que a arte é uma linguagem universal, devemos sempre pensar se o mesmo artefacto seria compreendido ou teria até algum impacto em outras civilizações); se pode ser considerado arte o que é funcional (um friso, por exemplo, quando retirado do todo ou um friso quando separado da sua decoração - aqui avançávamos já para o material como veículo da legitimação da obra); se pode ser considerado arte o que é fruto de uma encomenda, uma vez que ainda predomina a ideia que a arte é fruto da imaginação do artista, e ainda hoje se notam as oscilações no peso de mercado que artistas com muitos séculos vão tendo; se a arte deve ter um valor monetário associado; se a existência de uma explicação lógica para determinada obra de arte a torna mais "arte" do que "obra"; se a arte é feudal e confinada a espaços e suportes evidentes e por fim, quem dota a arte do seu valor para além de uma minoria que são os críticos de arte. Parece muito e é, mas vou tentar explicar estes pontos.
Primeiro tenho de dizer que esta questão foi sempre intrincada. Talvez agora ela aparente ter uma importância e divulgação que quase ultrapassa o aceitável, mas isso deve-se, na minha humilde opinião, aos jornais, aos blogs, à informação que circula muito mais depressa e em maior fluxo - sendo por vezes difícil distinguir o que é verdadeiramente importante daquilo que é apenas uma forma de preencher o horário nobre. A arte hoje é um gadget, até porque a fronteira que separava a arte erudita da arte para as massas está muito esbatida. Continua-se a ir ao São Carlos de vestido de noite preto, mas o que se ouve no São Carlos é itinerante. A necessidade é económica, mas também é verdadeiramente pedagógica, do ponto de vista do pedagogo! Isso faz com que a arte seja uma obrigação social: temos de ler os jornais ou sentimo-nos (e somos) excluídos dos meios que frequentamos, temos de passear em X sítio para podermos opinar com legitimidade; temos de ir ao cinema ver o filme que venceu em Cannes porque não basta ser-se bom ou gentil, temos de ser o mais culto e inteligente. Frequentamos em peregrinação uma exposição porque sentimos que isso faz parte de uma obrigação incutida pelo exterior que, quando não cumprida, não nos deixa em paz. Há sobre nós um sentimento de culpa por aquela falha curricular que depois já não poderá competir com os currículos de outras vidas. Sabem o que é que faz isto? As pessoas estarem hoje sempre dispostas a aparecer, a falar. Endeusamos as opiniões mais contraditórias porque elas nunca nos passariam pela cabeça. Mas enfim, voltando ao que interessa. A nossa passagem por um quadro não dura mais de um minuto. É impossível que alguém consiga observar ou reter com alguma fidelidade um elemento de uma obra em tão curto espaço de tempo. Visitamos os locais com beatitude como vamos à Igreja: porque algo nos obriga embora não compreendamos do que se trata. "É necessário", diria a titi.
Segundo, dizer que esta questão tem então chegado ao grande público, ao público que habitualmente não se preocupa com a mesma, devido ao valor astronómico que certas obras de arte têm alcançado e à forma como nos é dado a conhecer esse valor ou a obra em si. Os meios de comunicação social veiculam uma informação imaculada que, por desconhecimento e total crença no trabalho imparcial dos jornalistas, não questionamos. Passamos então a aceitar aquilo como obra de arte sem saber porquê.
A obra de arte (prefiro chamar-lhe obra de arte em vez de artefacto) é muitas vezes categorizada como tal devido a questões materiais (um problema formal e enclausuramento da arte dentro de uma definição que quer uma tradução física). É de facto verdade que se virmos a Mona Lisa, chamaremos obra de arte ao quadro: ele tem uma forma, é físico. Uma coluna grega, embora com uma funcionalidade, também tem uma forma. Mas por essa ordem de ideias tudo tem uma forma: a cadeira onde me sento tem uma forma e nem por isso ninguém a considera obra de arte. O problema coloca-se mais na arte de hoje, naquilo que nos é dado como arte, mas cuja legitimidade para tal epíteto ignoramos. É óbvio que aqui temos não só a acção dos média, mas os nossos próprios confrangimentos, os aspectos psicossomáticos de quem vê a obra. Estamos a falar igualmente e de importância extrema, da nossa concepção de arte enquanto abrigo apenas para as chamadas "Belas Artes" tal como a Pintura, a Escultura e a Arquitectura. É por isso que quando comparamos a Mona Lisa com a obra de um artista vivo como Hirst ou Richter, achamos que uma é arte, mas a outra não.
Limitamos a nossa observação ao funcional: a Mona Lisa não é funcional, não tem qualquer utilidade, mas pode ser colocada na parede. No chão continuaria a ser uma obra de arte; fora do museu, na rua, continuaria a ser uma obra de arte, quando reproduzida numa tapeçaria, continuaria a ser uma obra de arte. Tudo isto independentemente do conhecimento que temos dela. Identificamo-la como obra de arte não só devido à forma, mas à função. Já se estivermos perante a obra Porcos Decorados de Wim Delvoye questionaremos sempre se é arte ou não, pois não tem nem uma função no museu, nem na galeria, nem na nossa casa, nem no lixo. Será encarado como um artefacto carnavalesco. Esta nossa visão beócia da arte é muitas limitada pelo material com que a obra é feita e com isto já assumo a postura claramente materialista que me impede de chamar de obra de arte algo que não tenha uma tradução palpável. No entanto, tal como na descoberta espacial admito a possibilidade de vida fora da Terra, apenas não a mesma forma de vida.
E uma tribo africana ou aborígene? Será que diriam que a Mona Lisa é arte e que o tubarão de Hirst não é? Perante um novo contexto sem limites ocidentais, estas obras ocidentais seriam consideradas obras. Não posso ajuizar, mas talvez causassem apenas espanto: uma pela quase fidelidade ao real, outra pela estranheza do real. Teremos que nos colocar no mesmo posto e verificar se uma máscara africana tem para nós o valor de obra de arte, ou se vemos nela apenas a invocação de forças superiores místicas ou até um valor de uso.
Poderíamos dizer que é "obra de arte" ou que é "arte" se provoca uma emoção. Ora embora eu não seja dada à "lágrima no canto do olho", posso dizer que o que é válido para a Mona Lisa é válido para o Delvoye. A Mona Lisa não me leva às lágrimas e duvido que leve verdadeiramente alguém às lágrimas. Bem sei que a emoção não é só isto. A Mona Lisa pode muito bem provocar-me uma sensação física ou emocional desagradável, mas não é apenas isto que faz dela uma obra de arte. Se assim fosse a imagem de uma criança a morrer de fome também poderia ser considerada arte. Poderemos considerar arte o que não foi feito com essa intenção? Poderemos considerar arte o que é reproduzível? Poderemos considerar arte o que é intencionalmente sensacionalista?
O material é por vezes preponderante para dizermos que se trata de arte. A forma quadrada de uma tela, a forma humana do mármore, as formas mais ou menos orgânicas da pedra, levam-nos a projectar para fora do objecto em si o seu significado, considerando este ou aquele material mais nobre em detrimento de outro. O mármore esculpido é muito bonito, mas quando lhe tiramos a figuração, é só mármore que pode ser transformado numa banca de cozinha. Mais uma vez se nota o aspecto utilitário que valorizamos na arte bem como o respeito pelo nosso contexto. Achamos irrefutável a ideia da Mona Lisa como obra de arte, mas apesar do suporte ser o mesmo e do material ser o mesmo, achamos que qualquer Malevitch está, sob o ponto de vista formal, longe da qualidade da obra de Leonardo. Quem fala não somos nós, mas a incapacidade da maioria dos humanos, sem um treino intensivo, de reproduzir a realidade como os grandes mestres. Apreciamos também o facto de já o saberem fazer "naquela altura", colocando-os assim numa posição de inferioridade face à nossa altura. Por fim, causa-nos confusão aquilo que não faz parte da nossa biblioteca visual, que não se enquadra com o nosso sistema de símbolos e signos. Por isso temos tendência a repelir um quadrado branco dentro de um quadrado branco ou um Pollock e muito mais essa tendência se acentua quando estamos a falar de objectos ou de formas que por não escaparem à nossa compreensão ou por escaparem demasiado são colocados no limbo. Na obra de arte actual tudo o que é muito figurativo ou o que nada tem de figurativo é passível de sujeição à pergunta: "isto é arte?"
O figurativo pressupõe um esforço. É então comummente considerado que o esforço, o trabalho colocado na pintura da Capela Sistina (que o houve, não tenhamos dúvidas) foi maior que aquele colocado no acto de virar um urinol de pernas para o ar. Mas nem isso pode servir para considerarmos determinadas obras de arte como arte. Veja-se o trabalho de John Currin: as obras dele devem levar dias a estar concluídas. Têm um final; ou seja, estão concluídas quando não há mais sombra ou luz a apontar. Digo que devem demorar muito tempo a terminar pois penso que o artista em questão não utiliza nenhum artefacto como um projector para as pintar. Aliás, como há uma certa desproporção no corpo humano que Currin pinta, ele não precisa da realidade. Precisa do Photoshop, e utiliza-o! O que é que "custa" mais, o que é que envolve mais esforço: pintar um quadro como Currin que hoje em dia é visto como pornográfico embora utilize a linguagem pictórica do Renascimento, ou pintar como Verrochio cujas obras eram realizadas por aprendizes?
A Mona Lisa é provavelmente o quadro mais conhecido de Leonardo. A obra não é apreciada apenas pelo respeito pelas regras de simetria, proporção e equilíbrio (que ainda hoje vigoram), mas pelo seu carácter simbólico e quase mágico. Achamos que a soma destes factores faz da Mona Lisa a obra de arte em que a expressão do artista, a sua capacidade criativa e crítica (a arte pode ter essa função, essa utilidade de ser crítica perante uma determinada realidade), esteve no seu auge, mas mesmo tratando-se de um retrato, negligenciamos completamente o facto de a Mona Lisa ser somente fruto de uma encomenda. Já no caso da tubarão de Hirst, ou das cama os balões fosforescentes de Koons, desmerecemos o fruto de um trabalho criativo por não reconhecermos nele o cânone, não obstante serem obras que não foram sujeitas ao grande constrangimento que é o gosto do mecenas.
Acho que jamais poderei dizer o que é arte. Eu ou seja quem for. Não é possível chegar a um consenso e quando isso acontecesse, deixaria de ter toda a piada. Continuo a postar o que gosto e o que não gosto. Não posso dizer taxativamente o que é arte ou o que não é arte. Não posso avaliar assim. Posso estar atenta e não deixar que uma ditadura de críticos limite a minha opinião. Mas o tempo que tudo (ou quase tudo) pode tratará de dar a cada um o merecido reconhecimento.
- o carteiro -
If The Devil Wears Prada, Bento wears IGMR:
Existe uma razão para a paleta escolhida, que já era diferente no ritual romano relativamente ao ritual bizantino e continua a ser em comparação com as cores escolhidas para o ritual da Igreja Ortodoxa Russa. O ritual eucarístico do Anglicanismo, semelhante no esquema de cores romano, influenciou o Luteranismo e os metodistas. Já a Igreja Copta tem um esquema de cores mais simples. São cinco as cores usadas nos Ofícios romanos: branco, vermelho, violeta, verde e rosa. No post incluí o dourado, mas excluí o preto por não recordar ver o preto a ser usado na eucaristia. Estas cores são aplicadas no vestuário eucarístico para enfatizar as características particulares do mistério que está a ser celebrado. O mistério, para quem não "fez a escolinha toda" é uma das áreas em que se divide a acção da Igreja (Mistério da Educação, Ecuménico, da Esperança, da Fortaleza e da Eucaristia).
O dourado é usado durante todo o ano litúrgico. Digamos que é um básico, substituído nas ocasiões especiais pela cor indicada pelo IGMR. Neste quadro de Eustache Le Sueur, o celebrante usa uma casula, sobre a estola (aquela espécie de lenço) e sobre a alva (a veste branca de baixo) dourada. Se olharmos para a direita do sacerdote vemos o baldaquino coberto por um pano verde. Não há qualquer cor autorizada ou determinada para o baldaquino; ou seja, não há nada previsto neste sentido, no entanto há algo que não está correcto nesta interpretação do episódio, uma vez que o verde não é a cor do Advento. A bola de fogo por cima da cabeça do padre indica-nos que estamos no tempo do Advento, pois este episódio é situado aí na Legenda Dourada. O que está escrito é que enquanto São Martinho de Tours rezava missa uma bola de fogo surgiu sobre a sua cabeça como manifestação do divino. Esta era também uma representação do episódio pelo qual o santo ficou conhecido, a Lenda de São Martinho, pois após ter cedido a capa ao pobre que lhe pediu agasalho, o Sol começou a brilhar. Um pouco mais atrás de São Martinho de Tours está um subdiácono de veste violeta, essa sim, a cor litúrgica para o Advento pois significa expectativa. O gesto que o subdiácono faz serve para esconder ou tapar dos olhares do fiéis a patena onde está a hóstia sagrada, segundo o determinado para a missa Tridentina.
Eustache Le Sueur
The Mass of Saint Martin of Tours
1654
Museu do Louvre, Paris
Eustache Le Sueur
The Mass of Saint Martin of Tours
1654
Museu do Louvre, Paris
O rosa (coisa "mai" linda!) é usado apenas no ritual romano e só no terceiro Domingo do Advento e no Domingo Gaudete ("Gaudete" vem da leitura que se faz nesse Domingo: "Alegrai-vos pois o Senhor está próximo"); também conhecido por Domingo Mediano por marcar a metade da Quaresma. Tanto numa ocasião como na outra é vista como uma cor de celebração e de espera pois antecede grandes momentos. No primeiro caso antecede o Nascimento de Cristo e no segundo caso antecede o fim de um período de luto e reflexão. É caso para dizer que a Igreja tem o armário cheio e não usa nada. Acho que você, Bento está a precisar de um Tim Gunn.
Apesar do verde ser a cor da esperança e do início de uma nova vida a verdade é que é usada na maior parte das vezes no tempo comum litúrgico.
Romanino
The Mass of Saint Apollonius
1520-1525
Santa Maria Calchera, Brescia
O violeta, que no ritual ambrosiano é quase preto indica penitência, espera e luto. É portanto um básico com várias finalidades dependendo do acessório. É o que se chama um LBT (little Black Dress).
O vermelho (sei que as pessoas de bem dizem "encarnado", mas eu digo "vermelho") é a cor que representa o sangue da vida de Cristo e também da presença do Espírito Santo que torna possível o testemunho da Fé. É a cor usada no Domingo de Ramos, no dia de Pentecostes (dia da descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos. Acho que foi a segunda vez que os Apóstolos se reuniram após a morte de Jesus.) e na Sexta-feira Santa. Também é a cor usada para celebrar os dias dedicados aos santos apóstolos, aos santos mártires e aos evangelistas. Nesta pintura de Guido Reni vemos São Filipe de Néri ajoelhado e usando uma casula vermelha num sinal visível da presença do Espírito Santo. No braço que se encontra mais perto de nós vemos um pedaço de tecido pendurado do braço do santo, algo que era costume usar na época. A origem deste pano é muito curiosa, pois remonta à Roma Antiga e os princípios de etiqueta praticados nesse tempo. Talvez por serem serventes de Deus os padres usavam, desde a antiguidade, este pano que para os romanos era um guardanapo com o qual andavam sempre. Para os cristãos o pano transformou-se numa espécie de braçadeira identificativa ou símbolo do trabalho executado.
Guido Reni
St Filippo Neri in Ecstasy
1614
Chiesa di Santa Maria in Vallicella, Roma
O branco era a cor da luz e da vida e por isso convinha bem a épocas como a Páscoa e o Natal, embora em minha opinião seja um erro a Igreja Católica ver com muito mais alegria a morte e ressurreição de Cristo do que o seu nascimento. Para os cristãos a Páscoa deve ser a festividade religiosa mais importante do ano litúrgico, mas honestamente, parece-me a mais mórbida. É igualmente a cor usada nas comemorações ligadas a episódios da vida de Cristo, Virgem, anjos e santos (ou seja, toda a gente, excepto Antigo Testamento).
Pierre Subleyras
Mass of St Basil
1743
The Hermitage, S. Petersburgo