quarta-feira, agosto 05, 2009

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

Vira o disco e toca o mesmo:

Sei que não é a primeira vez que falo disto, e que não cheguei a conclusão nenhuma, mas quanto mais leio sobre o assunto mais clara se torna a ideia de que a arte é um conceito universal como a morte cabendo a cada um de nós a tarefa de destrinçar o que é para si a parte do conceito aceite. Entretanto, na morte, na vida e na arte, haverá sempre os constrangimentos, os preconceitos, as ditaduras, as opiniões dominantes, os machos alfa e os "ismos".

Estava a ler isto aqui e isto aqui , quando tive necessidade de recorrer à definição de arte: "Considera-se mais geralmente a arte como uma operação do espírito, tendendo à criação de obras que exprimem a realidade objectiva, incluindo o próprio homem e a sua maneira de ver o mundo.". Esta foi a única definição-definição de arte que consegui encontrar. Todas as outras são texto, justificações, avanços e recuos constantes. Há a de Everard Upjohn, a de Wollheim, de Kant, de Aristóteles, de Wittgenstein, de Platão... Todas elas com falhas, desmentidas pelo tempo e parciais pois ou são apenas objectivas e realistas, ou utilitárias, ou emocionais, ou contextuais, ou formais ou relativistas ou o rai que as parta! Seja qual for a nossa definição de arte, ou pelo menos os argumentos usados para questionarmos a arte, as obras que representam a definição e a definição em si, ela passa sempre por um ou mais destes elementos: o artefacto (a obra de arte), a relação com a nossa identificação e posteriores identificações fora do nosso contexto (uma vez que a arte é uma linguagem universal, devemos sempre pensar se o mesmo artefacto seria compreendido ou teria até algum impacto em outras civilizações); se pode ser considerado arte o que é funcional (um friso, por exemplo, quando retirado do todo ou um friso quando separado da sua decoração - aqui avançávamos já para o material como veículo da legitimação da obra); se pode ser considerado arte o que é fruto de uma encomenda, uma vez que ainda predomina a ideia que a arte é fruto da imaginação do artista, e ainda hoje se notam as oscilações no peso de mercado que artistas com muitos séculos vão tendo; se a arte deve ter um valor monetário associado; se a existência de uma explicação lógica para determinada obra de arte a torna mais "arte" do que "obra"; se a arte é feudal e confinada a espaços e suportes evidentes e por fim, quem dota a arte do seu valor para além de uma minoria que são os críticos de arte. Parece muito e é, mas vou tentar explicar estes pontos.


Primeiro tenho de dizer que esta questão foi sempre intrincada. Talvez agora ela aparente ter uma importância e divulgação que quase ultrapassa o aceitável, mas isso deve-se, na minha humilde opinião, aos jornais, aos blogs, à informação que circula muito mais depressa e em maior fluxo - sendo por vezes difícil distinguir o que é verdadeiramente importante daquilo que é apenas uma forma de preencher o horário nobre. A arte hoje é um gadget, até porque a fronteira que separava a arte erudita da arte para as massas está muito esbatida. Continua-se a ir ao São Carlos de vestido de noite preto, mas o que se ouve no São Carlos é itinerante. A necessidade é económica, mas também é verdadeiramente pedagógica, do ponto de vista do pedagogo! Isso faz com que a arte seja uma obrigação social: temos de ler os jornais ou sentimo-nos (e somos) excluídos dos meios que frequentamos, temos de passear em X sítio para podermos opinar com legitimidade; temos de ir ao cinema ver o filme que venceu em Cannes porque não basta ser-se bom ou gentil, temos de ser o mais culto e inteligente. Frequentamos em peregrinação uma exposição porque sentimos que isso faz parte de uma obrigação incutida pelo exterior que, quando não cumprida, não nos deixa em paz. Há sobre nós um sentimento de culpa por aquela falha curricular que depois já não poderá competir com os currículos de outras vidas. Sabem o que é que faz isto? As pessoas estarem hoje sempre dispostas a aparecer, a falar. Endeusamos as opiniões mais contraditórias porque elas nunca nos passariam pela cabeça. Mas enfim, voltando ao que interessa. A nossa passagem por um quadro não dura mais de um minuto. É impossível que alguém consiga observar ou reter com alguma fidelidade um elemento de uma obra em tão curto espaço de tempo. Visitamos os locais com beatitude como vamos à Igreja: porque algo nos obriga embora não compreendamos do que se trata. "É necessário", diria a titi.


Segundo, dizer que esta questão tem então chegado ao grande público, ao público que habitualmente não se preocupa com a mesma, devido ao valor astronómico que certas obras de arte têm alcançado e à forma como nos é dado a conhecer esse valor ou a obra em si. Os meios de comunicação social veiculam uma informação imaculada que, por desconhecimento e total crença no trabalho imparcial dos jornalistas, não questionamos. Passamos então a aceitar aquilo como obra de arte sem saber porquê.


A obra de arte (prefiro chamar-lhe obra de arte em vez de artefacto) é muitas vezes categorizada como tal devido a questões materiais (um problema formal e enclausuramento da arte dentro de uma definição que quer uma tradução física). É de facto verdade que se virmos a Mona Lisa, chamaremos obra de arte ao quadro: ele tem uma forma, é físico. Uma coluna grega, embora com uma funcionalidade, também tem uma forma. Mas por essa ordem de ideias tudo tem uma forma: a cadeira onde me sento tem uma forma e nem por isso ninguém a considera obra de arte. O problema coloca-se mais na arte de hoje, naquilo que nos é dado como arte, mas cuja legitimidade para tal epíteto ignoramos. É óbvio que aqui temos não só a acção dos média, mas os nossos próprios confrangimentos, os aspectos psicossomáticos de quem vê a obra. Estamos a falar igualmente e de importância extrema, da nossa concepção de arte enquanto abrigo apenas para as chamadas "Belas Artes" tal como a Pintura, a Escultura e a Arquitectura. É por isso que quando comparamos a Mona Lisa com a obra de um artista vivo como Hirst ou Richter, achamos que uma é arte, mas a outra não.

Limitamos a nossa observação ao funcional: a Mona Lisa não é funcional, não tem qualquer utilidade, mas pode ser colocada na parede. No chão continuaria a ser uma obra de arte; fora do museu, na rua, continuaria a ser uma obra de arte, quando reproduzida numa tapeçaria, continuaria a ser uma obra de arte. Tudo isto independentemente do conhecimento que temos dela. Identificamo-la como obra de arte não só devido à forma, mas à função. Já se estivermos perante a obra Porcos Decorados de Wim Delvoye questionaremos sempre se é arte ou não, pois não tem nem uma função no museu, nem na galeria, nem na nossa casa, nem no lixo. Será encarado como um artefacto carnavalesco. Esta nossa visão beócia da arte é muitas limitada pelo material com que a obra é feita e com isto já assumo a postura claramente materialista que me impede de chamar de obra de arte algo que não tenha uma tradução palpável. No entanto, tal como na descoberta espacial admito a possibilidade de vida fora da Terra, apenas não a mesma forma de vida.

E uma tribo africana ou aborígene? Será que diriam que a Mona Lisa é arte e que o tubarão de Hirst não é? Perante um novo contexto sem limites ocidentais, estas obras ocidentais seriam consideradas obras. Não posso ajuizar, mas talvez causassem apenas espanto: uma pela quase fidelidade ao real, outra pela estranheza do real. Teremos que nos colocar no mesmo posto e verificar se uma máscara africana tem para nós o valor de obra de arte, ou se vemos nela apenas a invocação de forças superiores místicas ou até um valor de uso.

Poderíamos dizer que é "obra de arte" ou que é "arte" se provoca uma emoção. Ora embora eu não seja dada à "lágrima no canto do olho", posso dizer que o que é válido para a Mona Lisa é válido para o Delvoye. A Mona Lisa não me leva às lágrimas e duvido que leve verdadeiramente alguém às lágrimas. Bem sei que a emoção não é só isto. A Mona Lisa pode muito bem provocar-me uma sensação física ou emocional desagradável, mas não é apenas isto que faz dela uma obra de arte. Se assim fosse a imagem de uma criança a morrer de fome também poderia ser considerada arte. Poderemos considerar arte o que não foi feito com essa intenção? Poderemos considerar arte o que é reproduzível? Poderemos considerar arte o que é intencionalmente sensacionalista?

O material é por vezes preponderante para dizermos que se trata de arte. A forma quadrada de uma tela, a forma humana do mármore, as formas mais ou menos orgânicas da pedra, levam-nos a projectar para fora do objecto em si o seu significado, considerando este ou aquele material mais nobre em detrimento de outro. O mármore esculpido é muito bonito, mas quando lhe tiramos a figuração, é só mármore que pode ser transformado numa banca de cozinha. Mais uma vez se nota o aspecto utilitário que valorizamos na arte bem como o respeito pelo nosso contexto. Achamos irrefutável a ideia da Mona Lisa como obra de arte, mas apesar do suporte ser o mesmo e do material ser o mesmo, achamos que qualquer Malevitch está, sob o ponto de vista formal, longe da qualidade da obra de Leonardo. Quem fala não somos nós, mas a incapacidade da maioria dos humanos, sem um treino intensivo, de reproduzir a realidade como os grandes mestres. Apreciamos também o facto de já o saberem fazer "naquela altura", colocando-os assim numa posição de inferioridade face à nossa altura. Por fim, causa-nos confusão aquilo que não faz parte da nossa biblioteca visual, que não se enquadra com o nosso sistema de símbolos e signos. Por isso temos tendência a repelir um quadrado branco dentro de um quadrado branco ou um Pollock e muito mais essa tendência se acentua quando estamos a falar de objectos ou de formas que por não escaparem à nossa compreensão ou por escaparem demasiado são colocados no limbo. Na obra de arte actual tudo o que é muito figurativo ou o que nada tem de figurativo é passível de sujeição à pergunta: "isto é arte?"

O figurativo pressupõe um esforço. É então comummente considerado que o esforço, o trabalho colocado na pintura da Capela Sistina (que o houve, não tenhamos dúvidas) foi maior que aquele colocado no acto de virar um urinol de pernas para o ar. Mas nem isso pode servir para considerarmos determinadas obras de arte como arte. Veja-se o trabalho de John Currin: as obras dele devem levar dias a estar concluídas. Têm um final; ou seja, estão concluídas quando não há mais sombra ou luz a apontar. Digo que devem demorar muito tempo a terminar pois penso que o artista em questão não utiliza nenhum artefacto como um projector para as pintar. Aliás, como há uma certa desproporção no corpo humano que Currin pinta, ele não precisa da realidade. Precisa do Photoshop, e utiliza-o! O que é que "custa" mais, o que é que envolve mais esforço: pintar um quadro como Currin que hoje em dia é visto como pornográfico embora utilize a linguagem pictórica do Renascimento, ou pintar como Verrochio cujas obras eram realizadas por aprendizes?

A Mona Lisa é provavelmente o quadro mais conhecido de Leonardo. A obra não é apreciada apenas pelo respeito pelas regras de simetria, proporção e equilíbrio (que ainda hoje vigoram), mas pelo seu carácter simbólico e quase mágico. Achamos que a soma destes factores faz da Mona Lisa a obra de arte em que a expressão do artista, a sua capacidade criativa e crítica (a arte pode ter essa função, essa utilidade de ser crítica perante uma determinada realidade), esteve no seu auge, mas mesmo tratando-se de um retrato, negligenciamos completamente o facto de a Mona Lisa ser somente fruto de uma encomenda. Já no caso da tubarão de Hirst, ou das cama os balões fosforescentes de Koons, desmerecemos o fruto de um trabalho criativo por não reconhecermos nele o cânone, não obstante serem obras que não foram sujeitas ao grande constrangimento que é o gosto do mecenas.

Acho que jamais poderei dizer o que é arte. Eu ou seja quem for. Não é possível chegar a um consenso e quando isso acontecesse, deixaria de ter toda a piada. Continuo a postar o que gosto e o que não gosto. Não posso dizer taxativamente o que é arte ou o que não é arte. Não posso avaliar assim. Posso estar atenta e não deixar que uma ditadura de críticos limite a minha opinião. Mas o tempo que tudo (ou quase tudo) pode tratará de dar a cada um o merecido reconhecimento.

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Só em parte a propósito: http://www.nytimes.com/2009/08/03/arts/design/03abroad.html

8/8/09 1:09 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro (a) usw:
Não sei se conhece esta expressão da Herman Enciclopédia: "Este homem é um 'sinhor'!". Sinhor ou sinhora, a verdade é que desobriu o link que eu tinha andado à procura durante mais de duas horas no "The Guardian" porque a minha memória visual me dizia que tinha sido nesse site que tinha visto o artigo. Também o li. Obrigada por ter colocado o link que tantas voltas me fez dar à cabeça.

9/8/09 2:06 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Conheço, pois. De senhora tenho pouco, mas podemos fazer de conta que sim (e eu gostaria de poupá-la a mais um «caro(a)»). Não tem o que agradecer; na verdade, eu é que agradeço pelo que se dá ao trabalho de ir partilhando. É um prazer ler este Belogue.

9/8/09 10:09 da manhã  
Blogger Unknown said...

É realmente um excelente blogue.
Parabéns.

10/8/09 12:40 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro António Regedor:
Não sei como veio aqui ter, mas seja bem-vindo. Sabe que o nome não me é desconhecido, mas não consigo lembrar-me de onde nem associá-lo ao rosto.

11/8/09 12:38 da manhã  
Blogger Unknown said...

Cara beluga, alguém me falou do seu blogue e não quis deixar de o ver.
Fiquei agradavelmente surpreendido pela qualidade da reflexão sobre a perspectica social da arte.
Há muito que não debatia estética, função da arte, e sociologia da arte.
Há vários anos, desviei-me da estética para a técnica das bibliotecas.
Agora, do pouco que li, o artigo em comentário fez-me reparar na importância da função inclusiva da arte. A arte como instrumento de pertença a um grupo social. Ou o grupo formatado pela identificação do indivíduo ao objecto central do interesse do grupo. A arte como objecto de interesse colectivo e ao mesmo tempo como limite de inclusão. Quem não se identifica, não se interessa, não conhece. não é capaz de verbalizar, opinar, não pertence ao grupo, não se inclui.
E desse grupo lato, poder haver subgrupos. Dos´artistas, dos crticos, dos possuidores/colecionadores, e outros.
Ou então a perspectica da arte como o futebol, ou a música. Cada um pertence ao seu grupo. Socialmente todos necessitam de ter um subgrupo social com que se identificam, que os abriga, que os promove.
Também so blogues são socialmente instrumentos com a mesma função da arte e este tem qualidade artística.

12/8/09 4:05 da manhã  
Blogger Belogue said...

caro antónio regedor:
tinha aqui um comentário enorme e perdi-o. maldita inteligência artificial! cai-lhe mal a leitura de pdf's e fiquei com o cometário a meio enquanto via outra coisa.

15/8/09 3:27 da manhã  

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