- o carteiro -
ao que parece, esta história começa com a escultura egípcia, que, por sua vez (e a meu ver) vai beber aos relevos egípcios e assírios. senão vejamos: os egípcios retratavam a figura humana, nos relevos, com um pé em frente do outro, como que a simular movimento. Os assírios também já faziam isso.
Lion Hunt of Ashurbanipal
645–635 a.C.
British Museum, Londres
Mas enquanto os assírios preferiam, na escultura da figura humana, um certo estaticismo, os egípcios optaram, já no período anterior à Primeira Dinastia por fazer avançar o pé esquerdo. Ou seja, a figura humana encontrava-se não só em movimento, como - e mais importante - fiel à realidade. Talvez os egípcios pensassem "se estes tipos vão estar aqui milénios, mais vale que estejam confortáveis" (não. isto sou só eu a brincar)
o que quero dizer é que o avanço de um pé face ao outro na escultura da figura humana, é mais próximo do real e confere naturalidade ao que é esculpido. Todos nós, quando em pé, temos a tendência para nos apoiarmos num pé ou no outro. nunca, ou quase nunca, deixamos que o peso do corpo recaia sobre os dois pés. nem juntos, nem afastados.
depois veio a escultura grega que foi progressivamente, tornando-se mais natural e os romanos que aproveitaram o período helenístico da escultura grega para tornar a sua própria escultura ainda mais teatral. Parece antagónico, mas o teatral dos gregos (período helenístico) foi o ponto de partida para muita da escultura romana. Assim, o que era já decandente por se afastar da idealização da figura humana, tornou-se o novo "natural" dos romanos. O avanço do pé transformou-se na serpentinatta; ou seja, num espasmo do corpo que começa pelo pé esquerdo avançado face ao direito e termina na cabeça a olhar para o lado oposto àquele a que se dirige o corpo e que é uma expressão estética sem correspondente com a realidade pois ninguém se mantém naquela posição produzida muito tempo. pois então o que temos: nem a posição estática, nem o requebro dos membros são poses reais.
o que é curioso é que o pé que avança é sempre, na escultura egípcia, o esquerdo. senão vejamos:
King Menkaura and queen
2490–2472 a.C.
Museum of Fine Arts, Boston
mas eis que chegamos à escultura da Antiguidade Clássica (isto para não falar de "escultura grega" nem "escultura romana" e seus diferentes períodos cujos nomes podem confundir o pessoal). enquanto que com a escultura egípcia, o pé esquerdo avançava, os gregos e principalmente os romanos criaram figuras espelhadas, sendo que assim numa delas era o pé esquerdo que se encontrava à frente e na outra, o pé direito. e enquanto os egípcios se mantiveram fiéis ao modelo utilizado para a figura humana (reconhecido como egípcio em qualquer contexto), os romanos utilizaram as referências dos seus antecessores, mas também as suas próprias referências. Assim temos uma espécie de cariátides egípcias na porta da Villa de Adriano (agora na Sala a Croce Greca do Museu do Vaticano), também chamadas/chamados de Telamons, sendo que estas nem seguram de facto nenhum entablamento, nem são figuras de uma escultura romana típica, nem mesmo apresentam a regra egípcia do pé esquerdo frente ao pé direito (isso acontece numa figura, mas não na outra). A graça repete-se na entrada do Palazzo Davia Bargellini:
Telamons
Sala a Croce Greca, Vaticano
Palazzo Davia Bargellini
Século XVII
Bolonha
São portanto figuras espelhadas que resultam de uma reinterpretação, de uma reutilização do motivo egípcio e grego dos Kouroi e que também Rafael usa numa pintura na Stanza dell'incendio no Vaticano. Não usa as duas figuras, mas aquela que é a figura secundária, a figura derivada da original (a figura com o pé direito avançado, já que no original egípcio é o esquerdo que avança): Basta reparar na figura do canto da sala:
Rafael
Stanza dell'incendio
1514
Vaticano
Beijos e lavem sempre as mãos depois do xixi.