- ars longa, vita brevis -
hipócrates
já me perguntei muitas vezes se uma má pessoa poderia ser um bom artista. a resposta é - pelo menos para mim - sim. Picasso e Caravaggio são os exemplos que mais depressa me vêm à mente, mas há outros. acredito até que um bom artista pode redimir-se, aos olhos dos outros, através da sua arte. e há aqueles que, pelas circunstâncias, se tornam más pessoas, mas que pela vida, acabam por encontrar um caminho menos torto para a sua existência. é o caso do Bernini cujas obras adoro e que, cada vez que vejo, me deixam a admirá-lo mais. Pois o Bernini não era lá grande ser humano, pelo menos em parte da vida.
quando o pai viu as qualidades de Bernini-criança, não hesitou e foi, com o filho pela mão, para o Vaticano oferecer os serviços do rapaz à Igreja. Cedo Bernini começou a trabalhar para o Papado. Uma das suas obras mais antigas é esta, em que duas crianças dão cabo da paciência a um fauno. O pormenor a língua de fora deixa qualquer pessoa enternecida.
Bernini
Bacchanal: A Faun Teased by Children
1616-17
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
Aos poucos, graças ao seu trabalho, a um espírito afável e presença agradável, Bernini tornou-se não só "o" escultor do Barroco italiano, mas também próximo de alguns Papas. Nas encomendas, feitas pelo papado ou pelas famílias nobres de Roma, Bernini tornou-se cada vez mais desinibido, como o prova este pormenor do busto de do Cardeal Scipione Borghese, com o botão não totalmente apertado.
Bernini
Bust of Scipione Borghese
1632
Galleria Borghese, Roma
É talvez neste momento que surgem as suas melhores obras de escultura como o Rapto de Proserpina. (Sou suspeita para falar desta obra, para referi-la, já que aquela mão dele na perna dela, o rosto aflito dela, a rotação e ascensão dos corpos me levam às lágrimas.);
Bernini
The Rape of Proserpina
1621-22
Galleria Borghese, Roma
ou o David, muito diferente do inumano David de Miguel Ângelo (este, o de Bernini, é retratado na acção, como um mortal que morde o lábio antes de desferir o golpe fatal, enquanto o de Miguel Ângelo se encontra em repouso, a olhar o infinito, sereno, todo ele razão e idealização. Bom, é verdade que os separa mais de um século)
Michaelangelo
David
1501-1504
Galleria dell'Accademia, Florença
Bernini
David
1623-24
Galleria Borghese, Roma
ou então um outro par, desta vez Apolo e Dafne. Ele a tentar tocar-lhe, ela a fugir-lhe. tal como no rapto de Proserpina, as figuras estão contorcidas e em ascensão, sendo que é sempre a figura masculina a tentar alcançar a feminina. Neste caso, Bernini esculpiu o momento da metamorfose de Dafne em loureiro, após a perseguição que Apolo lhe fez e que ainda é captada, embora indirectamente, com o jovem de cabelos ao vento.
Bernini
Apollo and Daphne
1622-25
Galleria Borghese, Roma
Consta que, não obstante o sucesso que tinha enquanto escultor, Bernini alimentava uma rivalidade com Borromini, arquitecto. Não obstante isto, não podemos retirar a Bernini o mérito nos seus projectos de arquitectura, que lhe trouxeram reconhecimento público, mas também muitas recriminações por parte dos seus pares. Ao que parece, Bernini não tinha grande ética laboral chegando mesmo a ficar com a esposa de um colaborador, de seu nome Constaza Bonarelli. Bernini ficou completamente apaixonado por ela, retratando-a num busto que quebrou a tradição deste tipo de retratos. Ela surge não em toda a pompa, mas certamente com toda a sensualidade: cabelos levemente desalinhados, lábios semi-abertos e blusa a sugerir o decote. Esta não é uma mulher que posa para o escultor, é uma mulher que dorme com o escultor...
Bernini
Bust of Costanza Bonarelli
c. 1635
Museo Nazionale del Bargello, Florença
Só que Constaza era "fresca para assar", "danada para a brincadeira" e Bernini percebeu que a mulher por quem estava apaixonado era bastante atenciosa para com o irmão do escultor, também ele arquitecto e matemático. Um dia, dizendo que teria de passar uns dias fora de casa, Bernini saiu e esperou. De um local seguro viu o irmão sair da casa que ele, Bernini, partilhava com Constanza, e viu os beijos que trocava com a boca que ele esculpiu. Enraivecido começou a correr atrás do irmão pelas ruas de Roma e apanhou-o já dentro de uma igreja onde, sem pejo, o espancou. Com Constanza não quis sujar as mãos e mandou um criado cortar-lhe a face. Quando soube disto o Papa deu-lhe um doce castigo: casava-se o escultor com uma moça de boas famílias e não se falava mais no assunto. Os outros intervenientes também tiveram um rumo: o irmão deveria sair de Roma, o criado deveria ser preso bem como Constanza, acusada de prostituição. Começou o período de decadência de Bernini; a sua caminhada no deserto. O casamento arranjado pelo Papa, não corria pelo melhor e em breve também no trabalho os tempos seriam negros. Isto aconteceu quando o Vaticano decidiu juntar dois corpos a ladear a cúpula de São Pedro, bem como as já existentes duas torres da autoria de Miguel Ângelo. Bernini, que tinha um problema com a modéstia, construiui duas torres monumentais, mais altas ainda que as de Miguel Ângelo. A sua soberba foi tão grande que não percebeu que estas duas estruturas eram demasiado pesadas para o suporte. Pouco tempo após a construção do primeiro corpo, as fissuras começaram a abrir-se e a estender-se ao corpo principal da Basílica. Borromini é chamado para colmatar este mal e tanto ele quanto o papado decidem pela destruição do corpo construído por Bernini. Este cai na cama preocupado e talvez também envergonhado. Com a mudança de Papa, a sua presença na corte papal passa a ser dispensável. Mas eis senão quando surge aquela que seria a mais importante encomenda da sua vida: o Êxtase de Santa Teresa d'Ávila. Ninguém lhe fica indiferente. Diz-se que um nobre, ao fazer o Grand Tour típico da formação das classes mais ricas no século XVII e XVIII, e ao passar por Roma, exclamou, ao ver o Êxtase de Santa Teresa d'Ávila: "se isso é amor divino, eu conheço-o bem". Teresa foi uma freira espanhola que ficou conhecida pelas suas levitações e pela descrição que fez do seu êxtase (só consegui em espanhol):
«Vía un ángel cabe mí hacia el lado izquierdo en forma corporal, lo que no suelo ver sino por maravilla. [...] No era grande, sino pequeño, hermoso mucho, el rostro tan ecendido que parecía de los ángeles muy subidos, que parecen todos se abrasan. Deben ser los que llaman Querubines [...]. Viale en las manos un dardo de oro largo, y al fin de el hierro me parecía tener un poco de fuego. Este me parecía meter por el corazón algunas veces, y que me llegaba a las entrañas. Al sacarle, me parecía las llevaba consigo y me dejaba toda abrasada en amor grande de Dios. No es dolor corporal sino espiritual, aunque no deja de participar el cuerpo algo, y aun harto.»
Bernini certamente não ficou indiferente a isto e retratou, mais do que um êxtase físico (a satisfação da carne), um êxtase emocional, espiritual, unindo assim corpo e espírito como supostamente acontece no amor entre duas pessoas. Como esposa de Cristo, Teresa une-se a ele através de sinais muito físicos: o belo rosto de olhos semi-cerrados e boca entreaberta, o seio a ser descoberto pela mão de um anjo sorridente que tem consigo uma seta aponte não ao coração, mas um pouco mais abaixo... Ao contrário dos pares ascendentes e contorcidos de há pouco, Teresa agora levita, e é suspensa não obstante o exagero das suas vestes que parecem querer pesar-lhe e negar-lhe o prazer.
Bernini
The Ecstasy of Saint Therese
1647-52
Cappella Cornaro, Santa Maria della Vittoria, Roma
Bernini acabou por se tornar um "homem respeitável": pai de onze filhos, devoto e crente. Não realizou as duas colunas da fachada de São Pedro, mas desenhou a colunata da Praça de São Pedro que quase cria uma cortina para quem a visita, aumentando desta forma o efeito surpresa, importante numa altura em que os meios de transporte não eram como os de hoje e por isso chegar à capital à morada do representante de Deus na Terra era um alívio.
Constanza foi libertada da prisão graças à insistência e diligências de Bernini. O seu irmão regressou a Roma e foi preso por sodomia e Borromini suicidou-se.