- o carteiro -
«A primeira evidência deste egoísmo é o desenvolvimento ruidoso da filantropia. Desde que a caridade se organiza e se consolida em instituição, com regulamentos, relatórios, comités, sessões, um presidente e uma campainha, e de sentimento natural passa a função oficial é porque o homem, não contando já com os impulsos do seu coração, necessita obrigar-se publicamente ao bem pelas prescrições de um estatuto. Com os corações assim duros e os Invernos tão longos, que vai ser dos pobres?...» (A correspondência de Fradique Mendes, pág. 82)
É difícil escrever este post sem entrar em juízos de valor fáceis e injustos, razão pela qual me ficarei pelos factos. Há pouco tempo recebi pelo correio a ficha de inscrição na acção de recolha de alimentos do Banco Alimentar contra a Fome. Já havia ingressado a bolsa de voluntários há mais de 10 anos e como nunca mais me chamaram, voltei a preencher a ficha, especificando local e horário. Devo ressalvar que escolhi o super-mercado mais perto de casa por não possuir transporte para outros pontos da cidade. Este fim de semana lá me dirigi para o Pingo Doce do centro, conforme combinado e quando cheguei proferi meia dúzia de palavras mágicas que me revelaram um mundo que até hoje prefiro não conhecer por acreditar que o Homem é naturalmente gentil e bom. Apresentei-me e disse que ia render alguma das senhoras ali presentes. Os dois arautos olharam-me por trás da graduação Pierre Cardin, crisparam o batom nos lábios finos e fendidos, e perguntaram-me como tinha chegado até ali.
- Preenchi a ficha de inscrição do Banco Alimentar.
- Conhece a Zezinha?
- ... Não.
- Costuma fazer estas campanhas? É que a gente não a conhece.
- É natural, não faço há muito tempo.
- Ah... Mas é daqui?
- Moro cá.
- E o que é que lhe disseram? Disseram-lhe que era aqui?
- Sim. No Pingo Doce. Foi o que me disseram.
- É que nós somos da Cruz Vermelha e vimos sempre para aqui. Nunca a vimos.
O ambiente começava a ficar estranho, até porque se juntaram outras pessoas que aparentemente se conheciam. Uma das senhoras, na eminência de tirar o colete - hábito dos responsáveis pelos coutos da caridade - lembrou-se que havia um outro Pingo Doce, mais afastado dali e com o colete entre o penteado imaculado (as duas tinham o penteado como se tivessem saído do cabeleireiro, algo que por aquelas paragens é frequente em procissões, festinhas dos meninos, dia de finados e outros tantos) e o ombro disse:
- Há outro Pingo Doce. Na Estrada Nacional. Deve ser esse. Sabe, é que nós somos da Cruz Vermelha e ficamos sempre aqui.
Percebi que o que as movia era mostrar aos seus pares a beatice encapotada sob forma de caridade. A caridade organizada que ainda serve para muita gente se promover nos seus pequenos meios - e nas suas pequenas mentes - consegue ser uma consequência de acções que não deveriam ter como consequência nada para além da dirimição da fome em si.