domingo, dezembro 02, 2012

- o carteiro -

«A primeira evidência deste egoísmo é o desenvolvimento ruidoso da filantropia. Desde que a caridade se organiza e se consolida em instituição, com regulamentos, relatórios, comités, sessões, um presidente e uma campainha, e de sentimento natural passa a função oficial é porque o homem, não contando já com os impulsos do seu coração, necessita obrigar-se publicamente ao bem pelas prescrições de um estatuto. Com os corações assim duros e os Invernos tão longos, que vai ser dos pobres?...» (A correspondência de Fradique Mendes, pág. 82)


É difícil escrever este post sem entrar em juízos de valor fáceis e injustos, razão pela qual me ficarei pelos factos. Há pouco tempo recebi pelo correio a ficha de inscrição na acção de recolha de alimentos do Banco Alimentar contra a Fome. Já havia ingressado a bolsa de voluntários há mais de 10 anos e como nunca mais me chamaram, voltei a preencher a ficha, especificando local e horário. Devo ressalvar que escolhi o super-mercado mais perto de casa por não possuir transporte para outros pontos da cidade. Este fim de semana lá me dirigi para o Pingo Doce do centro, conforme combinado e quando cheguei proferi meia dúzia de palavras mágicas que me revelaram um mundo que até hoje prefiro não conhecer por acreditar que o Homem é naturalmente gentil e bom. Apresentei-me e disse que ia render alguma das senhoras ali presentes. Os dois arautos olharam-me por trás da graduação Pierre Cardin, crisparam o batom nos lábios finos e fendidos, e perguntaram-me como tinha chegado até ali.
- Preenchi a ficha de inscrição do Banco Alimentar.
- Conhece a Zezinha?
- ... Não.
- Costuma fazer estas campanhas? É que a gente não a conhece.
- É natural, não faço há muito tempo.
- Ah... Mas é daqui?
- Moro cá.
- E o que é que lhe disseram? Disseram-lhe que era aqui?
- Sim. No Pingo Doce. Foi o que me disseram.
- É que nós somos da Cruz Vermelha e vimos sempre para aqui. Nunca a vimos.
O ambiente começava a ficar estranho, até porque se juntaram outras pessoas que aparentemente se conheciam. Uma das senhoras, na eminência de tirar o colete - hábito dos responsáveis pelos coutos da caridade - lembrou-se que havia um outro Pingo Doce, mais afastado dali e com o colete entre o penteado imaculado (as duas tinham o penteado como se tivessem saído do cabeleireiro, algo que por aquelas paragens é frequente em procissões, festinhas dos meninos, dia de finados e outros tantos) e o ombro disse:
- Há outro Pingo Doce. Na Estrada Nacional. Deve ser esse. Sabe, é que nós somos da Cruz Vermelha e ficamos sempre aqui. 
Percebi que o que as movia era mostrar aos seus pares a beatice encapotada sob forma de caridade. A caridade organizada que ainda serve para muita gente se promover nos seus pequenos meios - e nas suas pequenas mentes - consegue ser uma consequência de acções que não deveriam ter como consequência nada para além da dirimição da fome em si. 

3 Comments:

Blogger Unknown said...

facto: a banqueira do banco alimentar a afirmar que ainda vamos todos (todos!!!???) penar muito...
penar!!!??? penar!!!???
temos pena, mas assim não

3/12/12 9:09 da tarde  
Blogger alma said...

Beluga,
Infelizmente há muito folclore filantrópico, e da minha experiência sei que a fronteira entre quem recebe e quem entrega ficava-me a dúvida de quem é o carenciado.
deixei esse tipo de voluntariado e tento fazer mais perto de mim, ou então pelos que passam por mim na rua.


4/12/12 5:45 da tarde  
Blogger Belogue said...

António e Alma:
como disse, é difícil falar disto sem fazer generalizações injustas ou "cuspir para o ar", porque ninguém sabe se um dia não vai precisar da "bondade" destas senhoras. Todos já ouvimos falar - e vemos - dos casos de RSI que não são bem o que parecem e subsídios de desemprego que às vezes servem para outras coisas. Mas de uma coisa estou certa: não me voltam a apanhar nisso. Claro que é uma consequência da cidade ser pequena, como a mentalidade das pessoas que "fazem o bem", mas não volto a fazer. Porquê é que fiz? Porque acho que não nos devemos negar a isso quando nos chamam, porque qualquer "caridade" é boa positiva. Mas não quero ser instrumento das senhoras da Cruz Vermelha e sucedâneos. Não preciso de vestir um uniforme para ajudar ninguém e sei que o faço, tal como a Alma, no dia a dia.
Tenho a certeza que alguma alminha caridosa e desinteressada entrará para vestir o colete azul e branco.

4/12/12 11:07 da tarde  

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