segunda-feira, março 30, 2009

- o carteiro -

De volta à vaca fria*
Ouvi dizer “mas apesar de tudo aquele trabalho da Joana Vasconcelos com a colcha a cobrir o Castelo de Santa Maria da Feira teve a vantagem de mobilizar a comunidade”. O psiquiatra diz que não percebe se é auto estima a mais ou a menos. A verdade é que não consegui articular palavra (também não falo muito mais do que aquilo). Mas sem ofender ninguém, devo dizer que não concordo com a afirmação/opinião. Por duas razões que apresento por ordem:

A primeira é que se o objectivo da Joana Vasconcelos era mobilizar a comunidade, escolheu-a mal. Santa Maria da Feira é hoje uma das freguesias do concelho da Feira mais desenvolvidas. Alberga, graças à capacidade de negociação de adaptação dos seus dirigentes, o Europarque (que as cidades ali à volta cobiçavam), o Festival Imaginarius (que já levou até ás célebres conferências de Outubro/Novembro que ali se realizam, nomes como Francesco Alberoni, Salman Rushdie, Fernando Savater, José Saramago, Umberto Eco, Oliviero Toscani, Henrique Cymerman), enche complemente durante os dias da Feira Medieval, vive com intensidade e tradição das fogaceiras (celebração que muitos turistas atrai no início do ano), acolhe o Festival para Gente Sentada…

A segunda é que, não retirando o direito à publicidade de Santa Maria da Feira, penso que teria sido muito mais pertinente pedir às centenas de trabalhadoras despedidas das indústrias têxteis do Norte do país, como Fafe, Santo Tirso ou Famalicão para executarem o mesmo trabalho. Em vez de se cobrir o castelo (que é uma ideia um pouco Christo; ou seja, uma ideia “peregrina”), podia cobrir-se o centro comercial Fórum Vizela, ou o monumento ao trabalhador têxtil em Riba d’Ave. Bom, mas era só isto. Perante tanta gente desconhecida fico intimidada.
*salvo seja
- não vai mais vinho para essa mesa -

Há nas pessoas uma alegria codificada que não compreendo, que me ultrapassa. Não que advogue a tristeza como método taumatúrgico, aliás, invejo os demais. Mas não compreendo.

quarta-feira, março 25, 2009

tenho muita pena não ter sido mais. de não poder dizer mais. às vezes abro um post só por abrir: só para dizer que ainda tenho pena de não ter sido mais.

segunda-feira, março 23, 2009

- original soundtrack -

Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade
Querendo
Um sorriso sincero, um abraço,
Para aliviar meu cansaço
E toda essa minha vontade
Que bom,
Poder tá contigo de novo,
Roçando o teu corpo e beijando você,
Prá mim tu és a estrela mais linda
Seus olhos me prendem, fascinam,
A paz que eu gosto de ter.
É duro, ficar sem você
Vez em quando
Parece que falta um pedaço de mim
Me alegro na hora de regressar
Parece que eu vou mergulhar
Na felicidade sem fim

(De volta para o meu aconchego, Dominguinhos)
- não vai mais vinho para essa mesa -

Levanto-me do banco da sala de espera da estação de comboios. Ao mesmo tempo, no banco de trás levanta-se um senhor invisual com uma grande mala preta. Esbarra comigo e pergunta-me:
- Podia dizer-me onde é o elevador para a gare, por favor? É que o segurança ficou de me vir ajudar, mas de certeza esqueceu-se. Já está na hora do comboio.
- Venha comigo que eu levo-o lá
Palavra puxa palavra e acabo por esperar pelo comboio juntamente com ele para ajudá-lo a entrar.
- Este tempo… Este tempo é que é muito mau. Eu pelo menos não gosto.
- Está desagradável. E há pouco começou a chover.
- Eu ouvi.
- Pois.
- Mas é muito mau para a minha actividade.
- Ai é?
- Sim. Se ainda estivesse Sol, mas assim a chover… É muito mau para a minha actividade.
- Mas ainda a semana passada esteve Sol.
- Mas foi para os foliões… Sabe que quando o pessoal se diverte assim durante muitos dias, depois não há nada para a gente. Fica mau para a minha actividade.
[a este ponto, tinha de saber qual era a “actividade” do homem]
- Desculpe lá. Não sei se posso perguntar…
- Diga, diga.
- Qual é a sua actividade?
- Então, qual é que havia de ser?! Toco acordeão pois então o que queria?! Qual é a minha actividade!?
- ars longa, vita brevis -
hipócrates
antes e depois ou "como este não era o post que deveria estar aqui", ou "como sabem quando vêem alguma coisa em algum lado, mas depois aquilo apagasse-vos da memória e perdem o rasto à fonte. Ficam com a imagem na cabeça, têm a certeza que não inventaram, que viram mesmo e que aquilo existe, só não sabem onde está. Pois essa é a história deste post (e da minha vida) que não estava para ser este, mas outro. No entanto como não podia ficar ad eternum a procurar a tal imagem, resolvi postar esta comparaçãozinha que não deve nada à outra. Acho eu!

Na primeira imagem trata-se do São Jerónimo de Caravaggio que o AM gosta muito. Pelo menos disse uma vez que gostava muito do quadro. E na segunda, de Pierre Restany. Estava a ver um livro da Taschen e deparo-me com a fotografia de Restany numa das páginas e pensei cá comigo: “eh pá! Mas isto é o São Jerónimo do Caravaggio cuspido e escarrado, salvo seja”.

Depois de os protestantes terem feito uma versão sua da Bíblia, coube aos católicos reeditarem a versão standard feita por São Jerónimo no século IV. É considerado um dos doutores da Igreja juntamente com Santo Agostinho, Santo Ambrósio e São Gregório Magno. Para o bem da Igreja e para contrabalançar todas as dúvidas controversas de Santo Agostinho sobre a Santíssima Trindade, São Jerónimo opunha-se aos heréticos modernos que se manifestavam contra o culto dos santos, a restrição do ensino do Latim apenas aos letrados e que viam o Papado como a prostituta da Babilónia. Nos tempos da Pré-Reforma (não é essa! ) protestante, São Jerónimo era retratado com um leão a seu lado e com o chapéu de cardeal. Após a Reforma os católicos quiseram que os seus santos fossem apenas retratados com o mínimo essencial para serem identificados. Apenas com o mínimo denominador comum. Por isso este São Jerónimo de Caravaggio é tão sombrio e austero. O modelo para o santo foi o mesmo que para Abraão no quadro “O sacrifício de Isaac” e para Mateus no quadro “São Mateus e o Anjo”. Enquanto outros autores retrataram São Jerónimo como um homem cheio de saúde, Caravaggio preferiu retratá-lo como um velho entre os códices da Bíblia, pobre (apenas com um manto vermelho que coloca em evidência a brancura da sua carne), magro (a luz ajuda a enfatizar os seus músculos e ossos) e junto de uma caveira como que a lembrar as vanitas e tudo o que é efémero. Só Deus e a sua palavra são eternos.

Pierre Restany foi um crítico de arte e também ele artista muito próximo dos dadaístas e foi ele quem criou o termo “Novo Realismo” que como corrente artística era um bocado assustadora. Pode dizer-se que o “Novo Realismo” era uma versão europeia em tom retorquido da Pop Arte e do que se fazia no grupo Fluxus, movimentos estes, americanos. Não sei quando foi tirada a fotografia a Restany. Não sei se estava próximo da sua morte, se era um homem crente ou torturado, mas achei-lhe semelhanças óbvias com o São Jerónimo de Caravaggio. Caravaggio era conhecido também pelo seu “tenebrismo”, por ser um pintor das trevas – o que acho que é meia verdade, pois para referenciarmos as trevas temos de ter luz. Se a pintura de Caravaggio fosse só trevas, não podia ser classificada de tenebrismo, mas de uma sucessão de quadros castanhos, negros, azuis escuros… Essas trevas que envolvem São Jerónimo no fim da sua vida são, na minha opinião as mesmas que envolvem Restany no momento em que a fotografia foi captada. Talvez não estivesse próximo da morte, mas acho que se debatia com uma questão incorpórea qualquer, daquelas que faz o cérebro latejar.

Caravaggio
St Jerome
c. 1606
Galleria Borghese, Roma


Pierre Restany
- o carteiro -

Preve-se que em breve o primeiro portátil português, 0 Magalhães seja exportado para Macau. Mas por cá o "pacote" já pode ser comprado no Houhua, um bazar chinês numa cidade perto de si.


"As crianças do escalão A não pagarão nada, sendo que as do B pagarão apenas 20 euros. Já as famílias sem acção escolar pagarão 50 euros". As que ainda não tiverem encontrado o escalão, podem comprar o "pacote" por cinco euros num mercado/feira perto de si.

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

Mais uma voltinha, mais uma viagem…

Para não variar, ou para mudar o tom tenebroso da coisa, deixo aqui mais um post sobre obras de arte dentro de obras de arte. Bem sei que os visitantes do Belogue pensam que aqui só falamos de arte até ao momento em que esta deixou de ser figurativa. Ou que só falamos de pintura. O que até é verdade. Mas isto prende-se com aquilo que está visível ao olho e ao cérebro. O problema da arte não figurativa é que é sempre passível de tantas interpretações que por vezes damo-nos conta de tentar estar a decifrar as manchas de Rorschach. E quanto mais criativos formos, maior será a nossa bagagem cultural. Numa altura em que toda a gente tem de ter opinião sobre alguma coisa e quanto mais diferente da opinião dos outros, melhor, as interpretações vomitadas nas revistas e jornais da especialidade causam arrepios. São uma sucessão de citações ou nomes sonantes que provavelmente foram lidos, ao acaso no dia anterior, de associações impossíveis de acompanhar que parecem ser tão transversais quanto o metro de Londres, que no fim da leitura só sobra a sensação de que foi tempo quase perdido (nunca dou o tempo por absolutamente perdido. A menos que não exista um livro). Começamos então com Samuel van Hoogstraten. Neste quadro, que se desenvolve em profundidade e mostra o interior de uma habitação, podemos ver, na parede do fundo um quadro pendurado. Esse quadro é uma reprodução deste de Gerard Terborch, pintado cerca de 15 anos antes. Terborch pintou este quadro inspirado num escrito de Goethe de seu nome "Die Wahlverwandtschaften"; ou seja “As Afinidades Electivas”. Goethe fala da delicadeza das personagens, da forma como o pai repreende de forma muito serena e moderada a sua filha que está de costas para nós. Este não é um tema comum em Terborch que não era um pintor educador na moral e nos bons costumes. Se há algo neste quadro que podemos relacionar com o pintor referido é o trato irrepreensível e até libidinoso do pescoço (a única parte de pele à mostra) e o vestido vermelho com os seus brilhos sugestivos. Num quadro tão moralista, qualquer nota um pouco diferente marca logo o entendimento que podemos ter do total.

Samuel van Hoogstraten
View of a Corridor
c. 1670
Musée du Louvre, Paris


Gerard Terborch
Paternal Admonition

1654-55
Staatliche Museen, Berlim

O exemplo seguinte não me deixa especialmente entusiasmada, até porque é de Velazquez. Não conheço muita pintura mitológica deste autor, mas ao que parece e tendo em conta o exemplo apresentado, Velazquez gostava de um cheirinho de paganismo. Mesmo que em fundo semi-oculto. Trata-se de uma cena mitológica dentro de uma cena mitológica. Em primeiro plano temos Las Hilanderas (as fiadeiras) que representam a Fábula de Aracne. Esta dizia que existiu um concurso entre Atenas e a mortal Aracne, que aparentemente foi mais apreciada pelo poeta romano Ovídio que a sua rival. De acordo com Ovídio, no livro “Metamorfoses”, Aracne vivia em Lídia, uma cidade que tinha uma longa e bem fundamentada tradição na confecção de têxteis. Aracne era bastante conhecida pela sua capacidade para tecer, mas um dia disse que era melhor até que a deusa Atena. Aqui del’ Rei que ela ousou enfrentar os deuses! Ora Atena que era a patrona das fiadeiras, não gostou daquilo que ouviu, mesmo que por interposta pessoa, tomou-se de razões e fez uma pequena visita a Aracne em Lídia. Disfarçou-se de uma velha pobre e aconselhou Aracne a não tentar competir com uma deusa. Aracne não ouviu os conselhos de Atena (nesta altura ainda não sabia que estava a falar com a deusa) e esta levou a sério este desafio para competir. O objectivo era que cada uma delas criasse a melhor peça de tapeçaria. Atena teceu uma peça onde mostrava as consequências para os mortais que ousassem desafiar os deuses e Aracne teceu uma peça onde mostrava o seu amor pelos deuses (por deuses entenda-se os deuses masculinos e as divindades femininas). Tanto na destreza como no tema, as criações estavam ao mesmo nível a Atena acabou por reconhecer a derrota, não sem antes tem atingido a jovem na cabeça e rasgado o tapete, tal era a raiva. Apavorada, Aracne enforcou-se, mas Atena arrependida transformou a força numa teia e sobre ela lançou fluidos que a transformaram numa aranha. Eis uma das explicações para se dizer que as aranhas são boas tecedeiras.

Neste quadro Velazquez foi muito influenciado pelo ambiente espanhol dos bodegones e de facto podemos ver duas áreas muito diferentes uma da outra na pintura, mas que se equilibram. Dizem que o cenário do que está em primeiro plano é um modelo da Fábrica Real de Têxteis de Santa Elizabeth em Madrid. Como podemos ver em primeiro plano temos um conjunto de mulheres que tece. Uma estão na roda e no fuso e outras trazem mais lã. Há no entanto um segundo compartimento no quadro e que se pode ver em segundo plano e ao qual se acede subindo uns degraus. Aí o espaço está muito mais iluminado do que a cena que decorre em primeiro plano e difere deste da forma como as mulheres estão vestidas. Não são trabalhadoras e parecem mais, avaliando pela mulher que tem na cabeça um elmo imitando Atena, jovens posando para uma pintura ou para a elaboração de uma tapeçaria, dado o local. No fundo está uma tapeçaria cujo desenho não nos é estranho: trata-se da pintura de Ticiano, o Rapto de Europa que Aracne (que se encontra à direita de Atena), terá tecido para a competição com a deusa. No entanto, este quadro de Ticiano sofreu uma pequena transformação na versão de Rubens, pois o pintor italiano mostrou na sua versão o castigo de Aracne que Velazquez ignorou.

Diego Rodriguez de Silva y Velazquez

The Fable of Arachne
c. 1657
Museo del Prado, Madrid


Vecellio Ticiano
Rape of Europa
1559-62
Isabella Stewart Gardner Museum, Boston

Last but not least, embora tenha de concordar que a segunda pintura é daquelas que dá a volta à moela por ser tão académica (basta ver as outras pinturas do autor para perceber a sua estética: “homem culto entediado e parente dos Prousts fleumáticos do boulevard tenta encontrar o sentido da vida ou a fuga ao seu ennui através das longas horas nos museus a copiar os Grandes Mestres”). No primeiro quadro podemos ver a chegada de Maria de Médicis a Marselha, da autoria de Rubens. Ora apesar de Maria de Médics ser conhecida, entre outras coisas, por ser uma mulher pouco bela (naquela família isto devia ser um crime!), Rubens que foi o seu pintor oficial e criou para ela uma série onde a comparava com algumas personagens mitológicas (da mais alta estirpe, claro) e contava ao mesmo tempo episódios da sua vida e da vida do seu falecido marido. As obras encomendadas deviam estar à altura da mãe de um rei e da viúva de outro rei, mas Rubens não as executou do princípio ao fim. Deixou que os seus pupilos tratassem dos detalhes mais aborrecidos e dedicou-se apenas aos pormenores e na concepção ideológica da obra. A composição é de facto aparatosa, mas graças aos grandes conhecimentos mitológicos de Rubens foi possível juntar o mitológico e o majestático. A solução passou por integrar na obra o nu das figuras pagãs, a estranheza dos tritões e as linhas curvas das ondas e colocá-la em confronto com o tratamento impecável dado aos trajes, ao aparato real e à pose. Louis Beroud, o tal fleumático (um pouco flâneur) acredita de tal forma no quadro de Rubens que retrata o artista a retratar um quadro vivo, tal a força do mesmo.

Pieter Pauwel Rubens
The Landing of Marie de Médicis at Marseilles
1623-25
Musée du Louvre, Paris


Louis Beroud
L'inondation Peintre
1910
- o carteiro -

O género dos anjos e outras coisas que não interessam nem ao Menino Jesus:
Não vamos chegar a lado nenhum, claro. Tantos séculos de estudo desta questão bizantina e não era aqui no Belogue que se ia esclarecer o sexo dos anjos. Até porque depois a expressão deixaria de ter piada. O que é que as pessoas iam dizer em vez de “estamos para aqui a discutir o sexo dos anjos e não chegamos a lado nenhum”. Mas eu acho que poderemos dizer, no fim do post que há sem dúvida anjos dos dois sexos.

Primeiro há que dizer que os anjos não são entidades de criação católica nem são sequer usadas pelo Catolicismo com o propósito com que foram criados. São muito anteriores ao Antigo Testamento, tempo em que todos pensam que os anjos foram “concebidos”. Os anjos surgiram antes em representações em selos sumérios, peças de cerâmica da Babilónia e em murais assírios. Nestas representações os anjos não eram hermafroditas como o Catolicismo pretende fazer crer: alguns anjos eram do sexo masculino e outros eram entidades femininas como o confirma tanto a tradição persa como a suméria e a babilónica. Apesar de não existir nada nos escritos bíblicos que indiquem sequer o levantamento desta questão, a verdade é que os vários artistas retrataram os anjos como seres assexuados. Um exemplo é este quadro de Beccafumi. Na primeira versão, que parece um pouco inacabada, o anjo não traços masculinos; pelo menos no que ao peito diz respeito. Na segunda versão Beccafumi pintou um São Miguel efeminado e, ao contrário da pintura anterior onde o anjo apresentava uma armadura muito justa, aqui aparece com uma túnica e alguma protuberância na zona do peito.
Domenico Beccafumi
Fall of the Rebel Angels
c. 1524
Pinacoteca Nazionale, Siena


Domenico Beccafumi
Fall of the Rebel Angels
c. 1528
San Niccolo al Carmine, Siena
Para o Catolicismo os anjos são geralmente entidades boas, simpáticas, justas e mediadoras. O arcanjo Gabriel anunciou a Maria que iria ser a Mãe do Salvador. No Antigo Testamento os anjos são geralmente vingadores e lutadores, viris e com vozes potentes. Já no Novo Testamento vão-se transformando, ficando ternos e assexuados. Talvez tenha sido esta mudança que criou a confusão e a dúvida.

Um dos episódios bíblicos de que menos se fala por contrapor de forma errada o Bem contra o Mal é o da Queda dos Anjos Rebeldes. É neste momento que a Igreja Católica muda o sentido da palavra “anjo” e da palavra “demónio”. Os Anjos Rebeldes, segundo o Apocalipse (Apocalipse 12, 7-11) eram os anjos que copulavam com as filhas dos homens. E também segundo a Bíblia a distinção entre anjos e demónios dá-se neste campo, embora ela não exista nas mitologias das culturas referidas de onde os anjos são originários. Assim, Lúcifer por exemplo era um anjo; o mais belo anjo dos céus. O seu nome queria dizer “aquele que é portador da Luz” ou “Estrela da Manhã”. Ora um dia Deus incumbiu-o de uma tarefa que Lúcifer não desejava e revoltou-se contra Deus. Lúcifer achava que sendo o portador da luz teria os mesmos poderes e direitos que Deus. O que não deixa de ser justo. Além disso Lúcifer faria parte dessa legião de anjos que procurava sempre uma mortal para acasalar e assim produzir seres hediondos. Para enfrentar Lúcifer Deus chamou outro anjo: São Miguel. O nome deste anjo queria dizer “aquele que é como Deus”. E eu acrescentaria: “e não quer nada em troca”. De facto São Miguel, o anjo que na pintura de Beccafumi aparece com um ar muito feminino, terá derrotado o belo Lúcifer que, com o tempo e a imaginação artística se foi transformando num tritão, num animal, a cuspir fogo, com chifres e cauda, face deformada, dentes pontiagudos (todos os dentes são caninos e talvez por isso a relação com o cão como animal endemoninhado. No Islão é até considerado um animal pouco digno). O aspecto de Lúcifer tem muitas coisas em comum com Pã e com os faunos e os sátiros da tradição grega. Já são Miguel foi buscar ao paganismo grego a sua semelhança com Mercúrio, o deus romano que levava as mensagens a Júpiter. Muitas das igrejas italianas devotas a São Miguel foram construídas em locais altos onde antes ficavam os antigos templos dedicados a Mercúrio. O castelo de Sant’ Ângelo em Roma dedicado a São Miguel recebeu este nome pois identifica-se Miguel como sendo um anjo piedoso. Assim como Mercúrio era o deus que levava as mensagens, Miguel é o santo ligado à comunicação (e nem fui ver à Internet nada sobre Miguel porque sei que aparecem sempre aqueles sites que uma vez abertos, são quase como a caixa de Pandora: ou rezas ao santo e envias o mail a 30 pessoas num minuto, ou a desgraça cairá sobre ti.)


Lucifer
Cathédrale Saint-Paul, Liège

Lúcifer criou o demónio e é aqui que a pescadinha dá a volta: para os gregos “daemon” era o termo dado a todas as entidades que, boas ou más, não eram seres normais. Eram seres sobrenaturais que estavam entre os deuses e os mortais. Eram aquilo que hoje chamamos de deuses secundários os menores como fantasmas e almas de heróis. O Catolicismo é que pegou nos demónios e dividiu-os entre os maus e os bons. Os bons daemons passaram assim a ser anjos, enquanto os maus ficaram “demónios”. “daimonion”, por exemplo, era o termo dado a dom, ou a sinal, a alguma apetência especial que todos os serres possuem. Esse dom no entanto não podia ser benéfico para o Cristianismo primitivo pois abria o precedente do livre-arbítrio e retirava à Igreja, ainda em formação a possibilidade de nivelar. Toda a literatura grega que fazia a apologia dos “daemon” era de certa forma considerada não canónica e por isso teve de ser revertida aquando da cristianização das populações romanas. Essa literatura tornou-se apócrifa ou herética e um novo sentido (ou melhor, dois novos sentidos) foi dado à palavra “daemon”: demónio. O que a Igreja não sabia é que se podia tirar as pessoas dos demónios, mas não os demónios das pessoas.
- o carteiro -

e desculpem lá se a postagem não está grande coisa, mas até já lhe perdi o jeito.