segunda-feira, março 23, 2009

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

Mais uma voltinha, mais uma viagem…

Para não variar, ou para mudar o tom tenebroso da coisa, deixo aqui mais um post sobre obras de arte dentro de obras de arte. Bem sei que os visitantes do Belogue pensam que aqui só falamos de arte até ao momento em que esta deixou de ser figurativa. Ou que só falamos de pintura. O que até é verdade. Mas isto prende-se com aquilo que está visível ao olho e ao cérebro. O problema da arte não figurativa é que é sempre passível de tantas interpretações que por vezes damo-nos conta de tentar estar a decifrar as manchas de Rorschach. E quanto mais criativos formos, maior será a nossa bagagem cultural. Numa altura em que toda a gente tem de ter opinião sobre alguma coisa e quanto mais diferente da opinião dos outros, melhor, as interpretações vomitadas nas revistas e jornais da especialidade causam arrepios. São uma sucessão de citações ou nomes sonantes que provavelmente foram lidos, ao acaso no dia anterior, de associações impossíveis de acompanhar que parecem ser tão transversais quanto o metro de Londres, que no fim da leitura só sobra a sensação de que foi tempo quase perdido (nunca dou o tempo por absolutamente perdido. A menos que não exista um livro). Começamos então com Samuel van Hoogstraten. Neste quadro, que se desenvolve em profundidade e mostra o interior de uma habitação, podemos ver, na parede do fundo um quadro pendurado. Esse quadro é uma reprodução deste de Gerard Terborch, pintado cerca de 15 anos antes. Terborch pintou este quadro inspirado num escrito de Goethe de seu nome "Die Wahlverwandtschaften"; ou seja “As Afinidades Electivas”. Goethe fala da delicadeza das personagens, da forma como o pai repreende de forma muito serena e moderada a sua filha que está de costas para nós. Este não é um tema comum em Terborch que não era um pintor educador na moral e nos bons costumes. Se há algo neste quadro que podemos relacionar com o pintor referido é o trato irrepreensível e até libidinoso do pescoço (a única parte de pele à mostra) e o vestido vermelho com os seus brilhos sugestivos. Num quadro tão moralista, qualquer nota um pouco diferente marca logo o entendimento que podemos ter do total.

Samuel van Hoogstraten
View of a Corridor
c. 1670
Musée du Louvre, Paris


Gerard Terborch
Paternal Admonition

1654-55
Staatliche Museen, Berlim

O exemplo seguinte não me deixa especialmente entusiasmada, até porque é de Velazquez. Não conheço muita pintura mitológica deste autor, mas ao que parece e tendo em conta o exemplo apresentado, Velazquez gostava de um cheirinho de paganismo. Mesmo que em fundo semi-oculto. Trata-se de uma cena mitológica dentro de uma cena mitológica. Em primeiro plano temos Las Hilanderas (as fiadeiras) que representam a Fábula de Aracne. Esta dizia que existiu um concurso entre Atenas e a mortal Aracne, que aparentemente foi mais apreciada pelo poeta romano Ovídio que a sua rival. De acordo com Ovídio, no livro “Metamorfoses”, Aracne vivia em Lídia, uma cidade que tinha uma longa e bem fundamentada tradição na confecção de têxteis. Aracne era bastante conhecida pela sua capacidade para tecer, mas um dia disse que era melhor até que a deusa Atena. Aqui del’ Rei que ela ousou enfrentar os deuses! Ora Atena que era a patrona das fiadeiras, não gostou daquilo que ouviu, mesmo que por interposta pessoa, tomou-se de razões e fez uma pequena visita a Aracne em Lídia. Disfarçou-se de uma velha pobre e aconselhou Aracne a não tentar competir com uma deusa. Aracne não ouviu os conselhos de Atena (nesta altura ainda não sabia que estava a falar com a deusa) e esta levou a sério este desafio para competir. O objectivo era que cada uma delas criasse a melhor peça de tapeçaria. Atena teceu uma peça onde mostrava as consequências para os mortais que ousassem desafiar os deuses e Aracne teceu uma peça onde mostrava o seu amor pelos deuses (por deuses entenda-se os deuses masculinos e as divindades femininas). Tanto na destreza como no tema, as criações estavam ao mesmo nível a Atena acabou por reconhecer a derrota, não sem antes tem atingido a jovem na cabeça e rasgado o tapete, tal era a raiva. Apavorada, Aracne enforcou-se, mas Atena arrependida transformou a força numa teia e sobre ela lançou fluidos que a transformaram numa aranha. Eis uma das explicações para se dizer que as aranhas são boas tecedeiras.

Neste quadro Velazquez foi muito influenciado pelo ambiente espanhol dos bodegones e de facto podemos ver duas áreas muito diferentes uma da outra na pintura, mas que se equilibram. Dizem que o cenário do que está em primeiro plano é um modelo da Fábrica Real de Têxteis de Santa Elizabeth em Madrid. Como podemos ver em primeiro plano temos um conjunto de mulheres que tece. Uma estão na roda e no fuso e outras trazem mais lã. Há no entanto um segundo compartimento no quadro e que se pode ver em segundo plano e ao qual se acede subindo uns degraus. Aí o espaço está muito mais iluminado do que a cena que decorre em primeiro plano e difere deste da forma como as mulheres estão vestidas. Não são trabalhadoras e parecem mais, avaliando pela mulher que tem na cabeça um elmo imitando Atena, jovens posando para uma pintura ou para a elaboração de uma tapeçaria, dado o local. No fundo está uma tapeçaria cujo desenho não nos é estranho: trata-se da pintura de Ticiano, o Rapto de Europa que Aracne (que se encontra à direita de Atena), terá tecido para a competição com a deusa. No entanto, este quadro de Ticiano sofreu uma pequena transformação na versão de Rubens, pois o pintor italiano mostrou na sua versão o castigo de Aracne que Velazquez ignorou.

Diego Rodriguez de Silva y Velazquez

The Fable of Arachne
c. 1657
Museo del Prado, Madrid


Vecellio Ticiano
Rape of Europa
1559-62
Isabella Stewart Gardner Museum, Boston

Last but not least, embora tenha de concordar que a segunda pintura é daquelas que dá a volta à moela por ser tão académica (basta ver as outras pinturas do autor para perceber a sua estética: “homem culto entediado e parente dos Prousts fleumáticos do boulevard tenta encontrar o sentido da vida ou a fuga ao seu ennui através das longas horas nos museus a copiar os Grandes Mestres”). No primeiro quadro podemos ver a chegada de Maria de Médicis a Marselha, da autoria de Rubens. Ora apesar de Maria de Médics ser conhecida, entre outras coisas, por ser uma mulher pouco bela (naquela família isto devia ser um crime!), Rubens que foi o seu pintor oficial e criou para ela uma série onde a comparava com algumas personagens mitológicas (da mais alta estirpe, claro) e contava ao mesmo tempo episódios da sua vida e da vida do seu falecido marido. As obras encomendadas deviam estar à altura da mãe de um rei e da viúva de outro rei, mas Rubens não as executou do princípio ao fim. Deixou que os seus pupilos tratassem dos detalhes mais aborrecidos e dedicou-se apenas aos pormenores e na concepção ideológica da obra. A composição é de facto aparatosa, mas graças aos grandes conhecimentos mitológicos de Rubens foi possível juntar o mitológico e o majestático. A solução passou por integrar na obra o nu das figuras pagãs, a estranheza dos tritões e as linhas curvas das ondas e colocá-la em confronto com o tratamento impecável dado aos trajes, ao aparato real e à pose. Louis Beroud, o tal fleumático (um pouco flâneur) acredita de tal forma no quadro de Rubens que retrata o artista a retratar um quadro vivo, tal a força do mesmo.

Pieter Pauwel Rubens
The Landing of Marie de Médicis at Marseilles
1623-25
Musée du Louvre, Paris


Louis Beroud
L'inondation Peintre
1910

1 Comments:

Blogger João Barbosa said...

aquela boca do princípio do texto assentou-me muito bem... ihihihih
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só um reparo.. Santa Isabel, não Elizabeth... ai ai ai

23/3/09 12:24 da tarde  

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