- o carteiro -
O género dos anjos e outras coisas que não interessam nem ao Menino Jesus:
Não vamos chegar a lado nenhum, claro. Tantos séculos de estudo desta questão bizantina e não era aqui no Belogue que se ia esclarecer o sexo dos anjos. Até porque depois a expressão deixaria de ter piada. O que é que as pessoas iam dizer em vez de “estamos para aqui a discutir o sexo dos anjos e não chegamos a lado nenhum”. Mas eu acho que poderemos dizer, no fim do post que há sem dúvida anjos dos dois sexos.
Primeiro há que dizer que os anjos não são entidades de criação católica nem são sequer usadas pelo Catolicismo com o propósito com que foram criados. São muito anteriores ao Antigo Testamento, tempo em que todos pensam que os anjos foram “concebidos”. Os anjos surgiram antes em representações em selos sumérios, peças de cerâmica da Babilónia e em murais assírios. Nestas representações os anjos não eram hermafroditas como o Catolicismo pretende fazer crer: alguns anjos eram do sexo masculino e outros eram entidades femininas como o confirma tanto a tradição persa como a suméria e a babilónica. Apesar de não existir nada nos escritos bíblicos que indiquem sequer o levantamento desta questão, a verdade é que os vários artistas retrataram os anjos como seres assexuados. Um exemplo é este quadro de Beccafumi. Na primeira versão, que parece um pouco inacabada, o anjo não traços masculinos; pelo menos no que ao peito diz respeito. Na segunda versão Beccafumi pintou um São Miguel efeminado e, ao contrário da pintura anterior onde o anjo apresentava uma armadura muito justa, aqui aparece com uma túnica e alguma protuberância na zona do peito.
Domenico Beccafumi
Fall of the Rebel Angels
c. 1524
Pinacoteca Nazionale, Siena
Domenico Beccafumi
Fall of the Rebel Angels
c. 1528
San Niccolo al Carmine, Siena
Para o Catolicismo os anjos são geralmente entidades boas, simpáticas, justas e mediadoras. O arcanjo Gabriel anunciou a Maria que iria ser a Mãe do Salvador. No Antigo Testamento os anjos são geralmente vingadores e lutadores, viris e com vozes potentes. Já no Novo Testamento vão-se transformando, ficando ternos e assexuados. Talvez tenha sido esta mudança que criou a confusão e a dúvida.
Um dos episódios bíblicos de que menos se fala por contrapor de forma errada o Bem contra o Mal é o da Queda dos Anjos Rebeldes. É neste momento que a Igreja Católica muda o sentido da palavra “anjo” e da palavra “demónio”. Os Anjos Rebeldes, segundo o Apocalipse (Apocalipse 12, 7-11) eram os anjos que copulavam com as filhas dos homens. E também segundo a Bíblia a distinção entre anjos e demónios dá-se neste campo, embora ela não exista nas mitologias das culturas referidas de onde os anjos são originários. Assim, Lúcifer por exemplo era um anjo; o mais belo anjo dos céus. O seu nome queria dizer “aquele que é portador da Luz” ou “Estrela da Manhã”. Ora um dia Deus incumbiu-o de uma tarefa que Lúcifer não desejava e revoltou-se contra Deus. Lúcifer achava que sendo o portador da luz teria os mesmos poderes e direitos que Deus. O que não deixa de ser justo. Além disso Lúcifer faria parte dessa legião de anjos que procurava sempre uma mortal para acasalar e assim produzir seres hediondos. Para enfrentar Lúcifer Deus chamou outro anjo: São Miguel. O nome deste anjo queria dizer “aquele que é como Deus”. E eu acrescentaria: “e não quer nada em troca”. De facto São Miguel, o anjo que na pintura de Beccafumi aparece com um ar muito feminino, terá derrotado o belo Lúcifer que, com o tempo e a imaginação artística se foi transformando num tritão, num animal, a cuspir fogo, com chifres e cauda, face deformada, dentes pontiagudos (todos os dentes são caninos e talvez por isso a relação com o cão como animal endemoninhado. No Islão é até considerado um animal pouco digno). O aspecto de Lúcifer tem muitas coisas em comum com Pã e com os faunos e os sátiros da tradição grega. Já são Miguel foi buscar ao paganismo grego a sua semelhança com Mercúrio, o deus romano que levava as mensagens a Júpiter. Muitas das igrejas italianas devotas a São Miguel foram construídas em locais altos onde antes ficavam os antigos templos dedicados a Mercúrio. O castelo de Sant’ Ângelo em Roma dedicado a São Miguel recebeu este nome pois identifica-se Miguel como sendo um anjo piedoso. Assim como Mercúrio era o deus que levava as mensagens, Miguel é o santo ligado à comunicação (e nem fui ver à Internet nada sobre Miguel porque sei que aparecem sempre aqueles sites que uma vez abertos, são quase como a caixa de Pandora: ou rezas ao santo e envias o mail a 30 pessoas num minuto, ou a desgraça cairá sobre ti.)
Lucifer
Cathédrale Saint-Paul, Liège
Lúcifer criou o demónio e é aqui que a pescadinha dá a volta: para os gregos “daemon” era o termo dado a todas as entidades que, boas ou más, não eram seres normais. Eram seres sobrenaturais que estavam entre os deuses e os mortais. Eram aquilo que hoje chamamos de deuses secundários os menores como fantasmas e almas de heróis. O Catolicismo é que pegou nos demónios e dividiu-os entre os maus e os bons. Os bons daemons passaram assim a ser anjos, enquanto os maus ficaram “demónios”. “daimonion”, por exemplo, era o termo dado a dom, ou a sinal, a alguma apetência especial que todos os serres possuem. Esse dom no entanto não podia ser benéfico para o Cristianismo primitivo pois abria o precedente do livre-arbítrio e retirava à Igreja, ainda em formação a possibilidade de nivelar. Toda a literatura grega que fazia a apologia dos “daemon” era de certa forma considerada não canónica e por isso teve de ser revertida aquando da cristianização das populações romanas. Essa literatura tornou-se apócrifa ou herética e um novo sentido (ou melhor, dois novos sentidos) foi dado à palavra “daemon”: demónio. O que a Igreja não sabia é que se podia tirar as pessoas dos demónios, mas não os demónios das pessoas.
2 Comments:
Bela postagem!
Caro Guthem
Olá boa noite. Muitíssimo obrigada! Isto era no tempo em que o belogue tinha bons posts. Agora é só "duques e cartas baixas". Enfim, tudo muda.
Volte sempre,
beluga
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