- o carteiro -
olá gente, tudo bem com vocês? comigo está. está tudo a andar, obrigada por perguntarem. vocês são sempre tão simpáticos que às vezes até fico sem jeito...
vamos ao que interessa. não sei se já ouviram dizer "saias às pintas para mulheres distintas". eu já. e quem me disse isto, também me disse outra frase sobre saias às riscas, mais ou menos dentro da mesma ideia: quem usa roupa às riscas ou às pintas, é ousado porém elegante. mas nem sempre assim foi. houve um tempo em que quem usava roupa às riscas era um bobo, excluído socialmente, prostituta, cavaleiro traidor, bruxa, judeu, herético, etc... a bília, ou a interpretação que dela era feita, ajudava a proliferar essa ideia. vejamos o Levítico no capítulo 19, versículo 19: "
e não vestirás roupa de diversos estofos misturados" ("Veste, quae ex duobus texta est, non indueris" que traduzido quer dizer "Não usarás vestuário que seja feito de dois"). Ou então o Deuteronómio no capítulo 22, versículo 11: "
Não te vestirás de diversos estofos de lã e linho juntamente." Isto não indica, à primeira vista, que seja mau as pessoas vestirem tecidos de diferentes cores. As citações nem falam de cores, não é? Mas e se as traduções da Bíblia, continuamente deturpadas - e sabemos que hoje a Bíblia é muito diferente da sua origem - tiverem retirado a palavra que indica de que é que o vestuário não deverá ser feito? Quando lemos: "não usarás vestuário que seja feito de dois", pensamos "de dois quê?". Os exegetas garantem que falta ali o substantivo "coloribus". De facto a Idade Média era muito avessa à visão dos planos sobrepostos. E duas cores juntas poderiam indicar que uma era o primeiro plano e a outra o plano de fundo. O vestuário às riscas correria portanto o risco de ser mal entendido.
Se é na Bíblia que encontramos a primeira interdição ao uso de peças listradas, é também nela, ou pelo menos no cristianismo, que encontramos os primeiros desvios à regra. Falo-vos dos traidores que a Bíblia apresenta. Se encararmos as diferentes histórias da Bíblia, vemos que frequentemente há um bom e um mau. Os maus são Judas, Salomé, Dalila, Caim.... Embora não sejam sempre representados com vestuário às riscas, são-no de forma mais frequente que as personagens "boas". Vejamos como elas se apresentam:
Maestro de Miraflores
The beheading of Saint John the baptist
1490-1500
Museo del Prado, Madrid
Caim e Abel - Speculum Humanae Salvationis
Século XV
British Library, Londres
Houve também uma comunidade religiosa da Idade Média que passou por este processo de maledicência. Falo-vos dos carmelitas na Idade Média e do seu manto. Em 1254 São Luís volta da Terra Santa traz consigo um grupo de religiosos entre eles monges carmelos que possuem um manto às riscas. Pode haver duas razões para esta extravagância. Uns dizem que o hábito lhes foi imposto pelos muçulmanos na Síria, como forma de distingui-los dos religiosos "verdadeiros", esses sim com autorização para usar vestes brancas. Outros dizem que a sua veste listrada se deve a um episódio da vida de Elias - fundador ideológico do Carmelo. Quando Elias ascendeu ao céu num carro de fogo, atirou o manto para o seu discípulo Eliseu. O manto seria por isso listrado pois atravessou o fogo e ficou com marcas. A verdade é que ninguém suportava os monges carmelitas mais o seu manto listrado. Eram acusados de seguidores do diabo, de ambição desmedida, de avareza, de estupidez e também eram chamados de barrados (em francês antigo o termo "barrado" era usado para designar os bastardos). A celeuma foi tanta que só com intervenção papal e após muitas reuniões os carmelitas aceitaram substituir a veste listrada pela veste inteiramente branca. Também os outros clérigos ficaram proibidos de usar vestes listradas, axadrezadas ou bipartidas, por decreto papal. O problema das cores é o da diversidade numa altura em que se queria a unidade, a homogeneidade. O que era diferente e fugia à ordem natural era seguramente perigoso, e o que era vário, variado, era certamente passível de provocar doença (o substantivo varietas servia para designar simultaneamente fraude e lepra). Há um personagem bíblica, uma única personagem bíblica, que não sendo dos "maus" acima descritos, foi encarada durante muito tempo - penso que só no século XIX é que teve o lugar que merecia - como persona non grata. Era tolerada, mas nas suas costas faziam-se piadas: era o corno, aquele que adormecia enquanto a mulher dava à luz o salvador do mundo, o que ficava em segundo plano... Nem mais nem menos que São José. Não consegui encontrar uma imagem, mas fica aqui o apontamento. Mas se São José é representado com calças às riscas, principalmente no vitral alemão do século XV, tal deve-se ao seu carácter e história indefinida e pouco explorada. Não é com o sentido de crítica e separação social que a sua representação é feita mediante as riscas. Aliás, no reino animal passa-se o mesmo: os animais listrados ou pintalgados são perigosos (o tigre, o leopardo, a hiena, a cobra...). E quanto mais coloridos, pior. Também isso acontece com as personagens medievais. Judas por exemplo é representado muitas vezes de amarelo e ruivo. Os ruivos são traidores e o amarelo é uma cor doentia e associada à loucura.
Pietro Lorenzetti
Predella panel: Hermits at the Fountain of Elijah
1328-29
Pinacoteca Nazionale, Siena
Mas como vimos, os principais alvos de desconfiança e ira eram sem dúvida aqueles que a sociedade já desprezava como os judeus, as prostitutas, os heréticos, os jograis ou os carrascos. A estes, e segundo as leis sumptuárias, estava destinado o uso integral de riscas (vestidos às riscas, por exemplo) ou de uma peça de roupa às riscas, como os gibões ou gorros para os bobos (jogral de um miniaturista flamengo e bobo com vestuário ao xadrez de Brueghel) e capuz ou calções para os carrascos (Martírio de Santa Catarina de Cranach).
Pieter Brueghel, the Elder
The Triumph of Death (pormenor)
c. 1562
Museo del Prado, Madrid
Miniaturista Flamengo
Chroniques, Vol. IV, Part 2, por Jean Froissart
1470-72
Manuscrito (Harley MS 4380)
British Library, Londres
Lucas Cranach, the Elder
The Martyrdom of St Catherine (pormenor)
1504-05
Collection of the Reformed Church, Budapeste
Autores como Brueghel e Cranach, cujas obras têm sempre algo de diverso, de crítico, de ácido até, gostam de colocar nas suas pinturas figuras com vestes listradas para confundirem o observador. Assim, na pintura Procissão para o Calvário de Brueghel, vemos como quase no centro geométrico da pintura se encontra, entre tantas personagens, um homem de vestes listradas e cabeça coberta por um gorro igualmente listrado. Esta personagem não é importante, mas o nosso olhar é capaz de encontra-la entre tantas outras exactamente pela estranheza que causa. Foi também Brughel quem pintou a Cocanha, um país mitológico onde os excessos eram permitidos, e onde provalmente todas as bestas também, fossem elas reais (como a
besta de Gévaudan, listrada, segundo alguns) ou imaginadas.
Brueghel, the Elder
The Procession to Calvary
1564
Kunsthistorisches Museum, Viena
Brueghel, the Elder
The Procession to Calvary (pormenor)
1564
Kunsthistorisches Museum, Viena
Brueghel, the Elder
Le Pays de Cocagne
1567
À medida que passamos do século XII para o século XIII e por consequência, entramos no Renascimento, a risca é domesticada, aceite. Torna-se tão normal associar as riscas no traje do bobo com a loucura, a fanfarronice, como associar as dos calções reais com a exuberância, o exotismo e o bom gosto. Todas as classes o usam, dos criados de interior, aos funcionários que auxiliam na caça e muitos deles usam as cores que identificam o seu senhor (os criados de libré são os que usam as cores do brasão do amo). Desta associação entre as riscas das diferentes actividades profissionais e o amo, nasce não só o uniforme dos funcionários do senhor, mas também o uniforme militar que adquire aqui a risca. Quando falamos deste uniforme e dos homens e que os usavam, não estamos a falar dos carrascos que vimos ali em cima a propósito do martírio de santa catarina. Estes homens, ainda que mercenários, estavam ao serviço da pátria. Claro que Cranach posiciona a acção no seu século, mas santa catarina viveu no século III, IV da nossa era, por isso, e obviamente, não foi torturada por um carrasco do tipo que Cranach pinta. O quadro de Cranach é ilustrativo, apenas. Bom, mas voltando ao que interessa: o uniforme militar que se destaca neste século XV, XVI (mais coisa menos coisa) é o dos lansquenets, ou landsknechte, os mercenários alemães. Dou-vos como exemplo o quadro de Holbein.
Book of Frederik II
Two falconers (pormenor)
1240
Hans Holbein
Martyrdom of St. Sebastian
1516
Alte Pinakotek, Munique
Hans Holbein
Martyrdom of St. Sebastian (pormenor)
1516
Alte Pinakotek, Munique
Com as Descobertas (adoro esta expressão; até parece que alguém estava escondido, perdido...) e o contacto - e consequente - escravização do homem negro, os criados negros ao serviço de amos europeus vestiam, por excelência às riscas. Era chique e um sinal de um certo exotismo reservado às elites ter um criado negro vestido às riscas. Como se fosse um bibelot... Vejamos um dos negros mais conhecidos da pintura embora não um servo: o Rei Mago Baltasar.
Hans Baldung Grien
Three Kings Altarpiece
1507
Staatliche Museen, Berlim
Hans Baldung Grien
Three Kings Altarpiece (pormenor)
1507
Staatliche Museen, Berlim
Ticiano
Portrait of Laura dei Dianti
1520-1525
Collezione H. Kisters, Kreuzlingen
(Fim da primeira parte)