- o carteiro -
Eu devia ter 16 anos, talvez 15, não sei bem. Fui de férias para o Algarve e levei uma amiga, a Vera. A Vera era o sonho de qualquer adolescente: alta, gira, divertida, corpo perfeito... nós até queríamos convencê-la a entrar no concurso Miss Praia Nova Gente. Felizmente, ela nunca quis. A Vera foi o meu primeiro beijo (sim, o meu primeiro "selinho" foi a uma mulher). Ao entramos no quarto de banho, e perante o espelho, a Vera baixou as calças, contraiu o rabiosque e disse: "estás a ver, isto é que é celulite". Fiz o mesmo e percebi que também tinha celulite, o que muito me entristeceu. As coisas passaram: eu voltei a comer o que sempre comi, nas horas e quantidades que me aprazia. Lembro-me de ter enfardado um pastel de nata, sem culpa, no dia em que descobri que tinha celulite. O pastel deve ter pensado "ah-ah, vou directamente para as tuas nádegas, cabra ocidental!". E eu com isso! Mas chegada a casa, vinda do Algarve, eis que me deparo, nas bancas, com o último número da Ragazza (uma revista para adolescentes, com muita imagem e pouco texto, comme il faut). E nesse último e especail número de Verão, a Ragazza presenteava os seus leitores com um plano alimentar para ficar... comme il faut. E foi assim que aconteceu. Não aconteceu logo. Primeiro começou por ser uma preocupação com a alimentação, mas aos 18 anos, transformou-se em algo mais. Não houve um momento específico. Nesta preocupação obsessiva com comida saudável, caía, por vezes no oposto, principalmente aos fins-de-semana. Se durante a semana ingeria alimento em quantidade suficiente para não sentir fome, ao fim-de-semana, porque tinha tempo para me punir e me odiar bastante, comia tudo o que aparecia: começava com pão, e geralmente ao jantar. depois era mais uma colher de arroz, arroz às escondidas na cozinha, sobremesa, bolachas, bolachas, pão... às vezes, uma hora após o final do jantar, ainda estava a comer. Não tinha fome; tinha receio do sentimento de culpa que viria quando parasse. Então dizia a mim própria "só comes até serem 21:35h". Quando chegavam as 21:35h, adiava para as 21:40h. Enquanto fazia isto ia dizendo a toda gente: "sou horrível, não sou? mas não consigo parar". Os outros riam-se. Uma vez saí de um jantar de aniversário a correr: tinha acabado o jantar e eu queria chegar a casa para continuar a comer. Depois... era dormir com as nádegas contraídas, apertar as ancas até ficar com elas marcadas e no outro dia voltar à ginástica, à água (bebia tanta que ficava com dores de cabeça, desorientada, sem conseguir pensar. Chamava-se hiponatremia e foi minha companheira em vários dias pós orgia), à comida racionada. Eram noites infernais, com pesadelos, em que transpirava e acordava frequentemente. Tentei vomitar várias vezes, mas nunca consegui. pensava "merda, até nisto sou uma azelha!". Bem, felizmente era boa em deixar de comer, o que é muito melhor do que vomitar, porque vomitar implica depois limpar, ficar com ácidos na boca que dão cabo dos dentes... uma maçada.
Chegou a faculdade e mais dois quilos. Quando percebi que não conseguia caber nas calças, decidi que a partir daí tudo ia ser diferente. E foi. Aos poucos, fui comendo cada vez menos. Às 7:30h: leite e três bolachas integrais; às 13h: sopa, meio pão integral e uma peça de fruta; às 17: leite e uma bolacha integral; às 20h: acompanhada, tinha de comer arroz e tudo o mais, mas em quantidades minúsculas. Os outros pensavam que era cansaço, preocupação, trabalho. E pensaram bem porque com pouco peso era mesmo isso: cansaço, preocupação em comer ainda menos e muito trabalho. É que eu queria ser melhor numa área para a qual não estava talhada. Tudo era um trabalho enorme. Pesava-me às quintas-feiras, na balança de casa e sentia uma felicidade enorme quando via o ponteiro da balança a descer cada vez mais cada semana. Nas semanas em que o ponteiro não me devolvia o número desejado, eu castigava-me, comendo ainda menos. Convém dizer que fazia exercício físico. Bastante exercício físico. Levaram-me a um médico de clínica geral que me deu as panaceias do costume, incluindo um xarope muito espesso que devia ter até extractos de nabo e fazia levantar um morto. Mas eu, que vi no rótulo as calorias daquilo pensei "credo, que vou engordar!" e decidi tomá-lo diluído em água, dia sim, dia não, só por causa das coisas. Levaram-me a um nutricionista, bruto como uma parede. Disse-me: "gosta de tudo?", respondi: "sim" (de facto gostava e gosto de tudo, mas não comia de nada). Ele rematou: "então coma. coma de tudo e muito". Levaram-me a uma psicóloga na capital. Três horas de comboio para a moça, bonita mas talvez pouco preparada, me dizer que preferia analisar-me através de desenhos que eu pudesse fazer. Eu já tinha 8 horas de aulas de desenho por semana, na faculdade. não queria desenhar mais. Apanhei uma intoxicação alimentar, deixei a psicóloga. O peso descia cada vez mais e quando não descia eu tratava de me tratar mal, porque se o peso não descia era porque eu me tinha desleixado. Quem é que eu pensava que era para me desleixar?! Não cabia nas calças 32 e por isso a roupa passou a ser comprada na secção de criança: calças para 12 anos (porque não tenho "altura de perna!). Nunca vistam calças de uma criança de 12 anos. Aliás, as crianças deviam saltar dos 11 para os 13. A pele esfarelava-se ao toque, tinha nódoas negras nos ossos mais salientes: cóccix, ilíacos e aqueles dois ao fundo das costas. No rosto duas feridas que não saravam porque a pele estava muito seca, o cabelo caiu. Os calcanhares ficaram inchados com falta de proteínas. À noite acordava sobressaltada com falta de ar e abria todas as janelas. Pensava que ia morrer. Acho que eram pequenas paragens cardíacas. Levaram-me ao psiquiatra. Quando entrei e me deparei com o cliché (candeeiro a meia luz, divã, arte bruta nas paredes) sentei-me e disse:
- não pense que lhe vou contar a minha vida, deitada no divã a chorar.
- não estou à espera disso.
-....
- porque é que veio cá?
- porque me trouxeram.
- não acha que tem um problema?
- não o considero um problema. aliás, posso sempre voltar atrás quando quiser.
- mas não quer.
- não, não quero.
- porquê?
- porque tudo faz sentido assim. tudo está ordenado. consigo gerir tudo, controlar tudo.
- tem o período menstrual?
- não.
- há muito tempo?
- sim.
- meses?
- anos.
Deixei as aulas para ficar em casa porque não tinha grande força e em casa sempre me podiam vigiar. mas às 6h da manhã, antes que alguém acordasse, fazia uma hora de ginástica às escondidas. só para não perder o jeito. E para aquecer, já que estávamos em Novembro. Um mês depois e com o peso sempre a descer, ele diz-me após uma pesagem: "30kgs. acho melhor interná-la, antes que saia daqui num caixão. Que me diz?". Eu pensei: "digo-te que és um bocado "drama queen", mas o que respondi foi diferente: "faça como quiser. Estou cansada de contar calorias e de pensar naquilo que não vou comer". E estava: eram muitas contas e eu sou mais dada às letras...
Estive um mês no serviço de psiquiatria de um hospital público. Lá não havia ninguém com quem falar. As pessoas estavam drogadas, ou a dormir, ou a ressacar, ou a gritar, ou deprimidas, ou acreditavam que eram Deus. Era-me dado um tratamento pouco ortodoxo: humilhação (como vigiarem o banho e as refeições, inspecionarem os bens, soltarem um "coitadinha" quando me viam sem roupa) e concessões (tu dás-me meio quilo e eu deixo-te fazer um telefonema; atinges este patamar e podes receber uma visita...). Mas fiz ginástica; fiz ginástica às escondidas. Saí de lá no fim do ano, com 33,300Kgs. E claro, embora aliviada, sentia-me gorda, balofa, nojenta. Na realidade a minha questão com o corpo nunca foi eu não gostar dele, apesar de, de facto, não gostar dele. A verdade é que eu não gostava de mim, achava-me um erro, mas expressei esse descontentamento através do corpo que é perfeito: não lhe falta nada, não sofre de nenhuma maleita. Quando sentia uma frustração o meu escape era comer pouco ou fazer muita ginástica ou beber muita água porque pelo menos nisso, eu era melhor que ninguém.
Cá fora, aumentei de peso até aos 36 quilos. Para mim, era um exagero viver com 36 kgs; um desperdício de quilos. Um dia, após me ter pesado no médico e ter visto um aumento de peso, saí do consultório, almocei lulas grelhadas, cheguei a casa e cortei um pulso. Não muito, só o suficiente para me sentir melhor, para o peso ganho sair por ali. Depois enfaixei o pulso e fui à aula de ginástica. Deixei o psiquiatra e voltei aos 32 quilos. Nessa altura estava outra vez a estudar e percebi que professores e colegas me olhavam com condescendência, com alguma pena, e que as conversas eram guiadas por isso, por esse "desconto" que me davam. Não queria a pena deles e não necessitava de conselhos para aumentar de peso. Lutei muitas vezes contra a tentação de comer comida para cão. Se a minha cadela comia aquilo e não engordava, podia ser que eu também não. Resisti, mas comi muita comida para bébé. A lógica era... nenhuma. Recuperei de peso até aos 36 e contactei o psiquiatra:
"Desculpe incomodá-lo. Sei que deixei as consultas por minha vontade, mas preciso de regressar. Acha que me pode voltar a atender? Caso não possa, compreendo perfeitamente"
Voltei e ainda lá estou. Agora quase nunca falamos de comida, de peso, embora o peso esteja sempre presente. Falamos de outras questões; as questões que estiveram na origem de tudo. Ele é o melhor psiquiatra que me podia ter "calhado na rifa". O ministério da saúde percebe da coisa! Não me passa a mão pela cabeça, não me fala de "baixa auto-estima" nem parvoíces parecidas, não me diz coisas agradáveis. Quando choro:
- m****, estou a chorar.
- não faz mal.
- ainda por cima não choro nada bem, como no cinema.
- olhe que se está a safar...
Há pouco tempo comecei a comer bananas, após o treino, que era algo que não comia há cerca de 20 anos. Nunca vou ter uma relação despreocupada com a comida, mas vai-se vivendo. Era pior um dedo espetado no olho! Quer dizer, não me falta nada, sou perfeitinha. No ginásio os espelhos fazem-me sentir uma merda e as outras pessoas, também, mas tenho tudo no sítio. Há dias em que me sinto linda por dentro e por fora; há outros em que me sinto nojenta.
E assim acontece.
Beijinhos às famílias e tudo e tudo e tudo.