- ars longa, vita brevis -
hipócrates
Olá a todos. Tudo bem com vocês? Felizes? Eu cá ando a ler uma coisa que se chama "Uma história da Felicidade". No comboio as pessoas pensam que é um livro de auto-ajuda, mas não é. Acho que aquelas capas para livros - algumas em tecido às flores - são uma coisa horrível. Mas compreendo, agora, que os japoneses as usem (se bem que num sentido diferente daquele pelo qual se usam aqui . aqui usamos porque "é fofinho..."): a leitura é algo pessoal. Este livro "Uma história da Felicidade", fala daquilo que ao longo dos tempos se entendeu por felicidade. Primeiro, e para os gregos, ser feliz era ter uma vida longa, ver os filhos e netos crescerem, e ser um cidadão da pólis, cumpridor das suas dinâmicas. Para os romanos, que assistiram a momentos muito mais sanguinários que os gregos, ser feliz era sobreviver às limpezas partidárias, era o falo de Pompeia (de facto, se a vida tinha um limite tão apertado, convinha vivê-la tirando partido dos prazeres do corpo). Com o cristianismo, e até por oposição a esta visão imediata da felicidade, optou-se pela via contrária: optou-se pelo ascetismo e pela fuga à mundaneidade para se chegar mais perto do divino. Até ao século XVII foi assim: mesmo quando os diferentes filósofos abriam mais o campo de acção do Homem e o seu papel no alcance da felicidade, a felicidade continuava a ser o divino. Só com a Reforma Protestante, que deslocou do divino para o humano o ónus da felicidade, é que a separação entre felicidade e religião, entre deus e felicidade começou a nascer. No século XVIII isso vai ao limite com o povo (a mais baixa classe social que até aí não tinha direitos como esses), essencialmente, a reivindicar o seu direito à felicidade.
Bom, não sei porque escrevi isto. Na verdade queria falar-vos de um autor/historiador de que gosto muito, o Mosche Barasch. Foi através dele que percebi um pouco mais a linguagem das mãos na escultura da Idade Média. Um dia hei-de falar-vos disso. Foi também através dele que descobri este Isaías na Igreja da Abadia de Santa Maria de Souillac. É um Isaías atípico que me lembra, à primeira vista, uma divindade hindu, principalmente nas ancas. Eu sei que vocês vão dizer "lá está ela a forçar comparações", mas olhem para isto e para a imagem de Isaías. Para além de ser uma representação atípica para uma escultura ocidental, ainda é mais atípica porque se trata da representação de um profeta. As imagens que temos de figuras do cristianismo são rígidas, hieráticas, estáveis e por tudo isso, dignas. Este Isaías é plástico, em pose orgânica, fluída; ou seja, é quase um dançarino. Pode ser comparado com outra imagem, muito anterior a ela. Trata-se de uma pequena estatueta grega de uma bailarina, datada do século IV ou III a.C. Pode ter acontecido uma de três coisas: o autor do Isaías de Souillac podia conhecer réplicas da estatueta grega, podia não conhecer nada e esta ser apenas uma coincidência, ou esta postura de Isaías podia vir de uma qualquer tradição em representar desta forma. Não acredito nesta última hipótese: não acredito que esta pose seja iconograficamente documentada e justificada. Para o século XII, quando este Isaías foi esculpido, um profeta e uma bailarina estavam em pontos opostos: ele tinha uma natureza quase divina enquanto ela está relacionada com o prazer, a secularidade, a prostituição e a feitiçaria. Mas sabemos agora, no século XXI, que no século XII, as figuras dançantes eram também usadas para ilustrar capitéis relacionados com os 24 anciãos do Apocalipse (Apocalipse 4:4). Claro que o Isaías não é um dos 24 anciãos do Apocalipse; é pelo contrário uma figura do Antigo Testamento, mas o que queria mostrar é que estes dois lado aparentemente opostos (a bailarina e o profeta) podem tocar-se por caminhos menos ortodoxos, porém sérios!
Pronto, era isto.
Veiled dancing greek woman,
Século IV, III a.C.
Boiotia, Grécia
[fonte]
Anónimo
The Prophet Isaiah
1120-35
Sainte-Marie, Souillac
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