quarta-feira, agosto 27, 2014

por favor não morras

sábado, agosto 23, 2014

- original soundtrack -


Did you hear that lonesome whipperwill?
He sounds too blue to fly
The midnight train is whining low
I'm so lonesome, I could cry

I've never seen a night so long
When time goes crawling by
The moon just went behind a cloud
To hide its face and cry

Did you ever see a robin weep
When leaves begin to die?
That means he's lost the will to live
I'm so lonesome, I could cry

The silence of a falling star
Light's up a purple sky
And as I wonder where you are
I'm so lonesome, I could cry

(I'm so lonesome I could cry, Johnny Cash e Nick Cave)
merda
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

olá coisas lindas da mãe, tudo bem com vocês? como estão a correr as férias? não se esqueçam de comer os brócolos nestas férias. bom, hoje queria falar-vos de uma coisa que fiquei a perceber ontem. vocês devem estar a pensar: "esta gaja não faz mais nada a não ser postar!". Mas isso não é verdade. Também faço mais para além de postar, como ler e ver coisas que me inspirem a postar. pois ontem estava aqui com as minhas coisinhas e descobri este antes e depois, que no fim de contas é quase um "ao mesmo tempo". Um dia, estava o Carlos Magno (Carlos, um abraço amigo! Boas férias!) a tirar lixo das unhas e a planear a construção da Capela Palatina de Aachen, na Bélgica quando ficou a saber lá em outras bandas, em Espanha, os infiéis construíam a Mesquita de Córdova. Com um pedaço de broa de avintes entre os dentes imperador disse: "ai é? Ó Adérito, vai-me lá a Espanha e vê como é que estão a fazer. Leva desta broa para o caminho que assim como assim ela já é rija como cornos.". Quando soube que a mesquita de Córdova levava arcos duplos em pedra alternada branca e vermelha, não teve mais nada e mandou fazer algo semelhante. Só que em vez de optar pelos arcos duplos, optou pelos simples e respeitou o cânone, não construindo arco sobre arco, mas fazendo corresponder a cada arco uma altura real. Assim, enquanto em Córdova temos uma ideia de flutuação, etéreo, de leveza devido ao artifício encontrado de colocar arco sobre arco (vejam que os arcos são sustentados apenas por capitel), em Aachen, o rigor católico dos francos que se achavam o povo escolhido por Deus, originou algo mais contido. Os arcos aqui são em volta perfeita (em Córdova eram em ferradura) e a sobreposição de arcos obedece à regra, já que os arcos superiores têm a altura correspondente não só ao capitel, mas também ao fuste e à base. É acentuada a linha vertical de relação entre o homem e deus, enquanto em Córdova era acentuada a linha horizontal devido à floresta de colunas e à ausência de altura significativa nos arcos.
bom, era isto. beijinhos às famílias e até logo 












Mesquita de Córdova
784-987














Capela Palatina de Aachen
792-805
- o carteiro -

já tínhamos estado a ver aqui no blog alguns cartazes do Saul Bass. Sabíamos que ele fez o cartaz para o filme "Destruir depois de ler" e para alguns filmes de Hitchcock, mas também para a At&t e para a organização Girl Scouts of USA. Mas o que nem toda a gente sabia é que ele propôs a Kubrick cartazes para "The Shining" e que Kubrick foi muito exigente, chegando a escrever nos cartazes o que achava que devia ser mudado. A versão final foi esta





















mas para chegar até aqui Bass passou por vários estudos como estes, com anotações de Kubrick:





















("Hand and bike are too irrelevant. Title looks ... smalll. Looks like ink didn't take on the part that goes light")






















("Looks like science fiction film. Hard to read even at this size")






















("Image and figure places too much em phasis on maze. I don't think we should use de maze in ads.")






















("Maze too abstract and too much emphasis on maze"). Por acaso acho que este é o piorzinho.






















("Don't like art work. Hotel looks peculiar. Also art work too spread out, too sprawling. Not ... enough. I don't like the dots for the logo. It will not look good small. Even the size above is difficult to read.")


Saul Bass explica numa carta devidamente assinada e assinalada o porquê das suas escolhas escolhas estéticas. Bass é "perca" em inglês e por isso Bass coloca o seu rosto no corpo de uma perca: 























Antes de chegar à versão final, Bass fez cerca de 300 versões por ordem de Kubrick. Por falar em Kubrick, um ano depois da exposição ao realizador dedicada no LACMA, o grupo de São Francisco, Spoke Art, convidou artistas e designers para fazerem novas versões de cartazes dos filmes de Kubrick, com a mesma subtileza e economia de recursos que ele. Um exemplo é o cartaz para o filme "Lolita" de Kubrick, feito por Bartosz Kosowski:















terça-feira, agosto 19, 2014

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

só espero que seja reciclado

segunda-feira, agosto 18, 2014

sabem aquele filme em que o Bill Murray está sempre a acordar no mesmo dia? é o que está a acontecer comigo. por mais que tente construir algo, todos os dias acordo sem nada e tenho de começar de novo. 

domingo, agosto 17, 2014

- original soundtrack -

gosto muito disto. lembra-me a Ana Maria e os queijinhos frescos.
- não vai mais vinho para essa mesa -

quando vejo isto

















Ticiano
Noli me tangere (Não me toques)
1511-12
National Gallery, London

lembro-me sempre disto ("deixa pá") 
 - o carteiro -

Antes da Joana Vasconcelos (ou como fazer, através do título de um post, que alguém o leia)
um dia alguém disse a Matisse que o braço de uma senhora na pintura era muito longo, ao que ele respondeu que não se tratava de uma senhora, mas de uma pintura, o que nos leva a concluir que para Matisse a pintura, a imagem não tem de ter uma correspondência cega com o real. Ou seja, Matisse não pretende convencer-nos que aquilo que pinta é uma mulher e por isso, ou para isso, não respeita o cânone, que já muito antes dele não era respeitado, diga-se em abono da justiça. Antes de Matisse, já os artistas maneiristas do século XVI alongavam e torciam as suas figuras, com o objectivo, não de fazer imagens convincentes, mas pinturas convincentes. Quer isto dizer que havia entre o público (quem se pretende convencer) e o pintor, o compromisso, o acordo quanto ao fim do que era representado: não tinha de haver fidelidade ao cânone; tinha somente que fazer passar uma ideia.

Os cristãos da Idade Média não necessitavam disto, não necessitavam de ser convencidos pois as imagens eram como símbolos que os remetiam para o que era a sua crença. Ainda que haja quem defenda que a ideia as imagens na Idade Média não serviam para ensinar o crente, não eram uma bíblia ilustrada em esculturas, relevos, eu acho que sim. Num mundo pobre em imagens, em comida,... em tudo, as que existiam deviam ser impressionantes. No entanto, as imagens serviam para ilustrar aquilo em que o crente já acreditava. Mas no século XIV, isto foi mudando; a natureza da crença foi mudando. Talvez porque com o Renascimento se abre um pouco a caixa de pandora e algumas verdades universais caem por terra (alguma devido aos estudos de artistas), o crente torna-se mais exigente: ele necessita de ver as imagens piedosas de Cristo e de Maria. Desta forma, os artistas esforçaram-se por tornar tudo o mais real possível, sem fugir no entanto à necessidade de inspirar piedade cristã. Mais tarde, já no século XV, XVI, técnicas como a perspectiva e o sfumatto tornaram o real ainda mais real, mas a descoberta parecia ter terminado. Da mesma forma também a natureza da fé tinha-se alterado. Isto deu-se devido às inúmeras lutas de que Itália foi palco desde os finais do século XV até meados de XVI. A arte reflectiu isto, reflectiu o saque de Roma e as ideias de Savonarola. O Maneirismo foi a resposta da arte a estes acontecimentos. Durante muito tempo, foi visto como algo menor na História da Arte, como um momento de imitação dos grandes mestres, como se, após o auge do Renascimento, não restasse mais nada aos artistas a não ser, imitar, como se após o auge, só restasse o declínio.

Algumas das imagens que vemos do Maneirismo, como esta de uma pintura de Rosso Fiorentino, é uma coisa detestável e vocês bem sabem que adoro Rosso Fiorentino, pelo menos isto dele.





















Rosso Fiorentino
Madonna Enthroned with Four Saints
1518
Galleria degli Uffizi, Florence


A sensação que experimentamos a olhar para esta pintura é a mesma que experimentamos quando olhamos para Otto Dix ou Max Beckmann ou até, e isto na minha opinião, Kokoschka, El Greco (que detesto com toda a força não obstante dizerem que ele foi um pioneiro) ou Dalí. Poderá ser esta pintura de Fiorentino, tal como outras como esta de Pontormo





















Pontormo
Madonna and Child with St. Joseph and Saint John the Baptist
1521-27
The Hermitage, St. Petersburg


sejam um início de kitsch. Quem o diz não sou eu. Não escrevo há tanto tempo que jamais me poderia lembrar de tal coisa. Além disso o kitsch não é a minha área de estudo. Quem o diz é o/a The Nation, aqui. O artigo refere que nunca antes, nem mesmo na arte medieval mais naif o kitsch foi alcançado, mas não tenho bem essa ideia. Acho que em alguns momentos houve arte kitsch. Segundo o autor do artigo o kitsch teria sido inaugurado pelo Maneirismo que seria mais avant-garde que os modernismos. Desta forma, e contrariando Clement Greenberg que defendia que os modernismos face ao kitsch, os primeiros nunca o eram. Já eu - que não sou o Clement Greenberg nem nunca irei ser ("não sou nada, nunca serei nada. à parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo", como dizia o outro) - apontei como exemplos de kitsch alguns dos modernistas que Greenberg defendia. Eles são, para mim, kitsch.

Rosso Fiorentino tem o nome "rosso" (vermelho) devido ao seu cabelo. Ao que parece, toda a sua personalidade era rossa, era vermelha, endiabrada. Este quadro é parte de um painel (o Altar Ognissanti) que lhe foi encomendado para o Hospital de Santa Maria Nuova em Florença. Nele vemos as figuras que parecem, como o autor, demónios: deformadas, estilizadas, grotescas, pintadas de cores ácidas típicas do Maneirismo e que afastavam estas pinturas da majestade serena do Renascimento. Esta forma de retratar as suas personagens, como seres com distúrbios psicológicos, é muitas vezes tida como um reflexo da sua própria condição psicológica que segundo alguns não era muito boa já que, argumentam, cometeu suicídio. Fiorentino mostra-nos a Virgem com o menino, rodeada de São João Baptista, Santo Antão, Santo Estevão e São Jerónimo. Como é que sei? Ora vamos lá ver: São João Baptista tem a cruz alta na mão e é o mais jovem. Também aparece com a cruz em outras pinturas e para além disso tem a pele de um animal no tronco. Costuma ser a pele de uma ovelha, mas desta vez parece de um animal selvagem. São Jerónimo é o da direita com aspecto envelhecido, abdómen proeminente, esterno saliente, como se tivesse sido fruto da observação de uma dissecação. Este aspecto de São Jerónimo confirma a sua presença no deserto. Para além disso, São Jerónimo traduziu a bíblia, criando assim a Vulgata, que é, segundo me "sóia", aquilo que ele tem na mão. Santo Estevão, que foi o primeiro mártir da cristandade, tem uma coroa e o que sobra é Santo Antão. As faces das personagens são escurecidas, os olhos esbugalhados, os corpos longos, as faces sem osso... Tudo isso torna estas personagens pouco credíveis, tal como eram pouco credíveis os relógios de Dalí que se derretiam.      
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou "as coisas que eles inventam". Uma vez fiz um post sobre as esculturas eróticas da Idade Média. Aqui. Elas existiam para colocar fora da Igreja o que não era da Igreja, ou porque sendo abertamente eróticas, incitavam à "falação", à excitação, ao barulho e eram por isso apotropaicas e por isso afastavam os males. Não acredito muito que servissem para alertar as pessoas para os malefícios à alma do sexo fora do casamento ou fora de normas. (Li há pouco tempo "O prazer na Idade Média" que a Ana me emprestou e confirmei o que já sabia: nem tudo era ordem e regra religiosa. Consoante os tempos e os teóricos, o sexo era melhor ou pior aceite e o prazer não era um tabu. Sexo com prazer, pelo menos para a mulher, era uma obrigação do homem). Bom, mas o que me trás hoje aqui é outra coisa. na Catedral de Washington, construída entre 1907 e 1990, podemos encontrar uma decoração (acho que aquilo não é uma mísula, mas honestamente também não me parece uma gárgula porque não tem abertura para a saída de água.) muito semelhante ao Darth Vader. 













Catedral de Washington
















Não sei quando esta escultura foi feita, mas duvido que tenha sido posterior ao aparecimento do Darth Vader no cinema. Quando muito, foi o cinema que se inspirou na escultura e não o contrário. O que se passa, na minha humilde opinião é que esta escultura seja, como muitas outras,













Catedral de Washington














Cirencester Parish Church

fruto de uma mente criativa, com capacidade de invenção. É possível, no caso do Darth Vader, que a escultura seja contemporânea do filme, dada a datação da Catedral, mas o que me parece é que no geral os artistas produziam as gárgulas dando asas à imaginação. Aquilo que muitos identificam, na terceira imagem, com uma máscara de gás e na quarta com um punk, pode ser apenas criação, invenção e não fidelidade ao real. Também pode ser, é verdade, que muitas destas esculturas, embora em edifícios antigos, sejam recentes. E nesse caso, acredito que tendo em conta a sua inacessibilidade, estas tenham sofrido mudanças menos ortodoxas, fruto de operários e artistas mais atrevidos.


Adenda:
O Brontops colocou este comentário na caixa de comentários:
"Oi Beluga... Há quanto tempo! Sua postagem com o Darth Vader me deixou curioso e decidi procurar (googlear). E, pelo jeito, o Vader da Catedral surgiu mesmo depois do filme, por conta de um concurso de escultura para crianças (Será que eu traduzi direito?) Abs. [link]

quinta-feira, agosto 07, 2014

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

olá amiguinhos. hoje "trágobus" um post sobre... cenas. não. é sobre postais de alguns escritores redigiram a si próprios (no caso de Scott Fitzgerald) ou a outros. cá "bai". beijinhos às famílias, lavem a dentuça antes de ir para a cama e façam as "bossas" orações ao "Sinhore".
[eu sei o que vocês estão a pensar: "ela já não faz posts com "sustânça". sabem que toda a gente tem as suas coisas e neste de há um tempo a esta parte não me tem saído nada de jeito. acho que me faltam estímulos... parece que não acontece nada de interessante]














De Ernest Hemingway para Gertrude Stein (já viram "Meia Noite em Paris"?)



















De Jack Kerouac para o seu editor Malcolm Cowley




















De Virginia Woolf (ela foi tia-avó da fotógrafa Julia Margaret Cameron)




























De Truman Capote, a escrever de Paros, Grécia




















De Rilke




























De Kafka para Kurt Woolf




















De James Joyce (se for tão difícil de ler como o "Ulisses"...)

[todos os postais estão na The Newberry, Chicago]

terça-feira, agosto 05, 2014

- o carteiro -

a exportação coreana
não percebo muito de política. gostava de perceber, mas não percebo. sei no entanto que a Coreia do Norte não é propriamente um exemplo de democracia. e pelos vistos, também não é um exemplo de bom gosto. a história é da Slate. A Coreia do Norte, como a maior parte das ditaduras, tem uma ideia de estética particular, ideia essa que serve os propósitos do regime e é defendida por este. Existe mesmo uma divisão do governo norte coreano dedicada à propaganda que por sua vez possui uma "fábrica de arte". Trata-se do  Mansudae Art Studio, fundado em 1959 em Pyongyang e que dá trabalho a cerca de 4000 pessoas. Estas são artistas retirados das mais credenciadas universidades norte-coreanas que fazem pinturas de moças rosadas e trabalhar no campo, da vitória da Coreia do Norte sobre a Itália no Campeonato do Mundo de 1966 e as estátuas gigantescas dos líderes norte-coreanos. O Mansudae Art Studio tem uma divisão chamada Mansudae Overseas Project que se destina à concepção e exportação deste tipo de obras de arte.

Ora em 2006 o Senegal encomendou ao Mansudae Art Studio uma estátua colossal denominada African Renaissance Monument que mostra um homem em com o torso descoberto, orientado para a frente, com uma criança no braço que com o dedo indica o futuro (risonho, provavelmente) e uma mulher, atrás do homem, com um seio descoberto, o cabelo para trás por causa do vento como que a fugir a um passado negro, num ar "realistósoviético". Os corpos são telúricos, os membros grossos e angulosos. (spooky!) 















O monumento foi encomendado pelo governo senegalês à Coreia do Norte pelo presidente da época, Abdoulaye Wade que pretendia (dizia ele) um monumento que representasse a libertação africana de séculos de escravatura e colonialismo. A estátua foi inaugurada em 2010 para marcar o 50º aniversário da independência do país face à França, e como o governo senegalês não tinha como pagar os 27 milhões de dólares, ofereceu à Coreia do Norte propriedades no Senegal. Quando o monumento foi revelado Abdoulaye Wade estava no final de uma presidência de 12 anos, marcada pela corrupção e pelas constantes alterações à constituição de forma a servir os seus próprios interesses. Hoje é o seu filho que está na presidência. De facto, Abdoulaye Wade reclamava para si 35% das receitas do turismo geradas pelo monumento, já que se paga para lá entrar. Isto é particularmente grave se tivermos em conta que 47% da população vive abaixo do limite da pobreza. Igualmente grave foram os corpos despidos do homem e da mulher da estátua, já que 92% da população é muçulmana. 

segunda-feira, agosto 04, 2014

ralações amorosas
- o carteiro -

Tolstoi escreveu "pinta a tua aldeia e pintarás o mundo" e isso, não me canso de dizer, aplica-se totalmente à pintura de Brueghel. Há uns anos, o realizador Lech Majewski, baseando-se no livro "O moinho e a cruz", deverá ter pensado como Tolstoi e reconhecendo o valor moral e intelectual do quadro a que nos referimos, realizou o filme com o mesmo nome do livro. "O moinho e a cruz" é um filme sobre um quadro, sobre a história que leva até esse quadro, sobre a sucessão de acontecimentos e sobre as escolhas do pintor que monta a cena final: o porquê do moinho, o porquê da roda... As escolhas do pintor são alicerçadas nas práticas da época ou numa simbologia intencional, quer esta seja a de Brughel, dos pintores do seu espaço e do seu tempo ou do próprio realizador.
















Brueghel
The Procession to Calvary
1564
Kunsthistorisches Museum, Viena

o que me interessa aqui é falar do quadro e não do filme, mas talvez seja melhor começar pelo filme. o filme fala-nos de uma aldeia flamenga que está a ser ocupada pelas tropas espanholas de Filipe II. Estas tropas matam, roubam, violam e torturam e o filme conta um pouco da história dos membros dessa aldeia, sujeitos a essas tropas, bem como a concretização de uma dessas ações violentas por parte dos espanhóis e que leva à crucificação de um homem, tal como se de Cristo se tratasse. Há até quem compare esta Flandres ocupada pelos espanhóis com a Palestina ocupada pelos romanos.

O quadro é extremamente complexo no que diz respeito à sua composição. Comecemos pelo princípio: para onde olhamos? Para onde se dirige o nosso olhar? Para o cavalo branco, mesmo junto a uma pequena cena onde vemos Jesus a transportar a cruz. Podemos até não saber que é Jesus, mas as vestes deste homem de barba que não se aguenta em pé são as do Jesus da Palestina e não os de um flamengo do século XVI. Mas esta cena, por ser pequena e por estar rodeada de muitas figuras (são mais de 500 no quadro, com vestes e rostos todos diferentes, chegando mesmo a ser possível encontrar entre as personagens, carteiristas. O realizador chega mesmo a comparar esta vitalidade e expressividade dos rostos à das faces dos filmes de Fellini. O curioso é que por acaso tinha feito uma pequena maratona feliniana antes de voltar para este filme), passa despercebida. 

















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

Aliás, embora o nosso olhar seja dirigido para o cavalo branco, o olhar do pintor dirige-se para o círculo negro na direita. A crucificação de Cristo, que é o tema principal do quadro, perde-se face ao evento social que era uma crucificação: todos assistiam, independentemente da idade ou classe social. De facto, se acompanharmos a linha de homens de túnica vermelha, montados a cavalo, vemos que esta vem do lado esquerdo do quadro, para o lado direito, para o círculo negro, para o calvário, onde Jesus irá ser crucificado. É para lá que se dirigem os corpos e os olhares de quase todos na cena. 










Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)


Há excepções: Maria, duas outras mulheres e São João encontram-se em plano mais avançado a lamentar a morte iminente de Cristo. Juntamente com Jesus, Maria e São João são as únicas personagens com trajes do ano 33, já que todas as outras têm trajes do século XVI. Junto a estas, uma caveira de um animal que não obstante isso (o facto de ser de um animal) nos remete para a morte e por isso funciona quase como um memento mori. 

















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)
















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

Outra excepção para Simão que está a ser afastado de Ester para ajudar Jesus a transportar a cruz. (Ora aqui convém falar de algo importante. É a personagem de Brueghel que conta, no filme, que Simão está a ser afastado de Ester. Ao que parece estes nomes são causais. Podia ser não Simão e Ester, mas Flausina e Flausino. No entanto, e como pensei que seriam personagens bíblicas, até porque os nomes são bíblicos, fui investigar. O Livro de Ester, do Antigo Testamento, não fala de nenhum Simão, mas o filme "Ester e o Rei" refere que Simão era o nome do namorado de juventude da rainha Ester. Bom, é só uma curiosidade. Mas estas duas personagens bíblicas não estão relacionadas entre si na Bíblia nem com a morte de Cristo, por isso só podia ter sido mesmo uma escolha do realizador.)

















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

O quadro é também marcado pela árvore da vida, à esquerda, acompanhada por um céu limpo e pela árvore da morte à direita, marcada pelo seu muito negro e nublado sobre ela. esta árvore da morte é a roda no topo de um tronco, roda essa onde os martirizados eram amarrados e expostos a aves que iam bicando-os até à sua morte. mas mesmo esta árvore da morte, apresenta junto a si folhas rebentadas renovando em nós a esperança de um futuro animador. Também deste lado direito do quadro, e junto ao círculo negro, vemos mais destas "árvores da morte". No círculo é possível observar duas cruzes já montadas e alguém que faz o buraco para colocar a terceira transportada por Cristo. Quer isto dizer que temos não um, mas três crucificados. Os outros dois encontram-se um pouco mais à frente de Cristo, levados numa carroça, com os olhos postos no céu - provavelmente a solicitar a sua misericórdia - e acompanhados por dois monges.

















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)











Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)











Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

E falta falar do moinho, que embora não dê nome ao quadro, está no título do filme que por sua vez tenta reflectir sobre o quadro. O moinho está presente no quadro, mas em local elevado, o que o torna alegórico e não literal; ou seja: de que serve um moinho num local tão elevado? Para fazer melhor uso do vento? Pode ser, mas parece esforço físico demasiado e demasiado risco para ali construir um moinho. A paisagem - as rochas e escarpas elevadas era comum na Antuérpia daquele tempo, mas era pouco provável que um moinho se encontrasse tão alto. O moinho é uma espécie de forma divina. O movimento circular das velas representa a antiga ordem, a ordem antes de Cristo, em que a existência humana é feita de forma cíclica. Estas velas, em forma de cruz têm paralelo com os braços da cruz que Cristo transporta cá em baixo. Esta por sua vez representa a nova ordem após o seu nascimento: o tempo linear como é também em linha horizontal o movimento que Cristo faz para arrastá-la.      













Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

Vou embora. hoje sinto-me triste. Mas curiosamente não chorei.