segunda-feira, agosto 04, 2014

- o carteiro -

Tolstoi escreveu "pinta a tua aldeia e pintarás o mundo" e isso, não me canso de dizer, aplica-se totalmente à pintura de Brueghel. Há uns anos, o realizador Lech Majewski, baseando-se no livro "O moinho e a cruz", deverá ter pensado como Tolstoi e reconhecendo o valor moral e intelectual do quadro a que nos referimos, realizou o filme com o mesmo nome do livro. "O moinho e a cruz" é um filme sobre um quadro, sobre a história que leva até esse quadro, sobre a sucessão de acontecimentos e sobre as escolhas do pintor que monta a cena final: o porquê do moinho, o porquê da roda... As escolhas do pintor são alicerçadas nas práticas da época ou numa simbologia intencional, quer esta seja a de Brughel, dos pintores do seu espaço e do seu tempo ou do próprio realizador.
















Brueghel
The Procession to Calvary
1564
Kunsthistorisches Museum, Viena

o que me interessa aqui é falar do quadro e não do filme, mas talvez seja melhor começar pelo filme. o filme fala-nos de uma aldeia flamenga que está a ser ocupada pelas tropas espanholas de Filipe II. Estas tropas matam, roubam, violam e torturam e o filme conta um pouco da história dos membros dessa aldeia, sujeitos a essas tropas, bem como a concretização de uma dessas ações violentas por parte dos espanhóis e que leva à crucificação de um homem, tal como se de Cristo se tratasse. Há até quem compare esta Flandres ocupada pelos espanhóis com a Palestina ocupada pelos romanos.

O quadro é extremamente complexo no que diz respeito à sua composição. Comecemos pelo princípio: para onde olhamos? Para onde se dirige o nosso olhar? Para o cavalo branco, mesmo junto a uma pequena cena onde vemos Jesus a transportar a cruz. Podemos até não saber que é Jesus, mas as vestes deste homem de barba que não se aguenta em pé são as do Jesus da Palestina e não os de um flamengo do século XVI. Mas esta cena, por ser pequena e por estar rodeada de muitas figuras (são mais de 500 no quadro, com vestes e rostos todos diferentes, chegando mesmo a ser possível encontrar entre as personagens, carteiristas. O realizador chega mesmo a comparar esta vitalidade e expressividade dos rostos à das faces dos filmes de Fellini. O curioso é que por acaso tinha feito uma pequena maratona feliniana antes de voltar para este filme), passa despercebida. 

















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

Aliás, embora o nosso olhar seja dirigido para o cavalo branco, o olhar do pintor dirige-se para o círculo negro na direita. A crucificação de Cristo, que é o tema principal do quadro, perde-se face ao evento social que era uma crucificação: todos assistiam, independentemente da idade ou classe social. De facto, se acompanharmos a linha de homens de túnica vermelha, montados a cavalo, vemos que esta vem do lado esquerdo do quadro, para o lado direito, para o círculo negro, para o calvário, onde Jesus irá ser crucificado. É para lá que se dirigem os corpos e os olhares de quase todos na cena. 










Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)


Há excepções: Maria, duas outras mulheres e São João encontram-se em plano mais avançado a lamentar a morte iminente de Cristo. Juntamente com Jesus, Maria e São João são as únicas personagens com trajes do ano 33, já que todas as outras têm trajes do século XVI. Junto a estas, uma caveira de um animal que não obstante isso (o facto de ser de um animal) nos remete para a morte e por isso funciona quase como um memento mori. 

















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)
















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

Outra excepção para Simão que está a ser afastado de Ester para ajudar Jesus a transportar a cruz. (Ora aqui convém falar de algo importante. É a personagem de Brueghel que conta, no filme, que Simão está a ser afastado de Ester. Ao que parece estes nomes são causais. Podia ser não Simão e Ester, mas Flausina e Flausino. No entanto, e como pensei que seriam personagens bíblicas, até porque os nomes são bíblicos, fui investigar. O Livro de Ester, do Antigo Testamento, não fala de nenhum Simão, mas o filme "Ester e o Rei" refere que Simão era o nome do namorado de juventude da rainha Ester. Bom, é só uma curiosidade. Mas estas duas personagens bíblicas não estão relacionadas entre si na Bíblia nem com a morte de Cristo, por isso só podia ter sido mesmo uma escolha do realizador.)

















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

O quadro é também marcado pela árvore da vida, à esquerda, acompanhada por um céu limpo e pela árvore da morte à direita, marcada pelo seu muito negro e nublado sobre ela. esta árvore da morte é a roda no topo de um tronco, roda essa onde os martirizados eram amarrados e expostos a aves que iam bicando-os até à sua morte. mas mesmo esta árvore da morte, apresenta junto a si folhas rebentadas renovando em nós a esperança de um futuro animador. Também deste lado direito do quadro, e junto ao círculo negro, vemos mais destas "árvores da morte". No círculo é possível observar duas cruzes já montadas e alguém que faz o buraco para colocar a terceira transportada por Cristo. Quer isto dizer que temos não um, mas três crucificados. Os outros dois encontram-se um pouco mais à frente de Cristo, levados numa carroça, com os olhos postos no céu - provavelmente a solicitar a sua misericórdia - e acompanhados por dois monges.

















Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)











Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)











Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

E falta falar do moinho, que embora não dê nome ao quadro, está no título do filme que por sua vez tenta reflectir sobre o quadro. O moinho está presente no quadro, mas em local elevado, o que o torna alegórico e não literal; ou seja: de que serve um moinho num local tão elevado? Para fazer melhor uso do vento? Pode ser, mas parece esforço físico demasiado e demasiado risco para ali construir um moinho. A paisagem - as rochas e escarpas elevadas era comum na Antuérpia daquele tempo, mas era pouco provável que um moinho se encontrasse tão alto. O moinho é uma espécie de forma divina. O movimento circular das velas representa a antiga ordem, a ordem antes de Cristo, em que a existência humana é feita de forma cíclica. Estas velas, em forma de cruz têm paralelo com os braços da cruz que Cristo transporta cá em baixo. Esta por sua vez representa a nova ordem após o seu nascimento: o tempo linear como é também em linha horizontal o movimento que Cristo faz para arrastá-la.      













Brueghel
The Procession to Calvary (pormenor)

Vou embora. hoje sinto-me triste. Mas curiosamente não chorei.