sexta-feira, julho 04, 2014

- o carteiro -

agora outra coisa completamente diferente: a estetização da violência na fotografia de moda - II (parte I aqui) (retirei as referência bibliográficas e as legendas das imagens que é para ninguém vir aqui copiar)

Outro nome desta década é o de Helmut Newton (1920-2004). Newton nasceu em Berlim, mas em 1938, devido à iminência da guerra, fugiu para Singapura. Um mês depois, as comunidades judaicas em Berlim foram atacadas pelas forças nazis. A experiência teve um profundo efeito nas suas fotografias. Newton criou um mundo de forte carga erótica, cheio de presas e predadores sexuais e até a sugestão de algum sadismo. As imagens de Newton para a Vogue americana na sessão “Story of Ohh”, colocaram em representação uma luxúria aberta e convincente e também por isso causaram escândalo quando surgiram. O título refere-se ao romance erótico francês “L’Histoire d’O”, de Pauline Reage, no qual a heroína masoquista é uma fotógrafa de moda.[1] Uma pesquisa pelo trabalho de Newton permite-nos tirar algumas conclusões: Newton fotografou quase exclusivamente em preto e branco (“The Story of Ohh” foi uma excepção); transporta para a fotografia o tabaco como forma de sedução e sugestão do pénis (nas suas fotografias só as mulheres fumam) e faz uso da violência através das armas de fogo (figuras 5 e 6). A violência em Newton é diferente da violência sugerida por Bourdin já que Newton assume completamente o rosto da modelo. Parece aliás ser a sua beleza o motivo da violência. Por outro lado as suas cenas não são locais de crime, não são casos de polícia, mas antes luxuosos e decadentes quartos de hotéis, ruas e apartamentos parisienses ou piscinas. O que há na fotografia de Newton é sobretudo fetichismo: mulheres apanhadas em poses provocantes de poder erótico. Os cenários, os ambientes, evocam a personagem de Catherine Deneuve em “Belle de Jour” de 1967.[2] Vejamos o caso da figura 7 em que a modelo se encontra de costas, nua e amarrada junto a uma cama de ferro. Ele retira, nesta imagem em particular a individualidade à modelo, mas dá-lhe alguns benefícios: concede-lhe um penteado especial que por lhe permitir obter brilhos coloca a cabeça em evidência, fazendo contraponto com uma outra imagem de uma mulher no canto superior esquerdo. Esta mulher que Newton fotografa não parece estar sozinha: a mesma pessoa que a fotografou deverá tê-la agrilhoado, sendo a fotografia uma parte do fetiche. Por outro lado, ao fotografar o espelho Newton aumenta a cena e mostra-nos um quarto que embora ascético, tinha telefone. O telefone por seu turno corrobora a sugestão de presença de outra pessoa – já que a mulher não parece poder mover-se - e assim Newton cria uma história que é mais de submissão, de conotação sexual do que de crime.[3] 
















Figura 5


















Figura 6


















Figura 7


Os anos 90 e o heroin-chic
No início dos anos 80 Ronald Reagan e a sua agenda conservadora ganham a presidência dos EUA, a Sida aparece e os dias loucos do disco morrem. A moda feminina reflecte a responsabilidade da mulher ao mesmo tempo que uma nova sociedade baseada na riqueza da Bolsa emerge. No final dos anos 80 no entanto, as supermodelos ganham o estatuto de ícones de perfeição e de sucesso material. Ao mesmo tempo as imagens de moda falam mais de uma atitude do que de roupas através de imagens de lesbianismo, prostituição e travestismo, mas não de violência. Nos anos 90, com o aparecimento da modelo Kate Moss, é descoberto um novo tipo de beleza que torna os produtos de moda mais acessíveis pois a modelo era uma jovem mais baixa que as modelos da geração anterior, não cumpria os requisitos de beleza e era bastante mais magra que a maioria das mulheres. Proliferou então, e acima de tudo devido aos anúncios de estilistas americanos, o heroin-chic, com jovens magras, muitas vezes com ossos salientes e visíveis nas fotografias (até evidenciados), marcas no corpo, de olhos vazios, negros e poses de abandono. Aproximavam-se assim das jovens consumidoras dessa época, capazes de influenciar as mães na compra de jeans de marca, mas incapazes de consumir alta-costura. O heroin-chic revelou uma nova tendência dentro da fotografia de moda e que se traduz na referida pose de abandono, com modelos deitadas no chão, de olhos fixos e às vezes até alguns sinais de violência. Foi aquilo que Rebecca Arnold categorizou como “fashion noire” e o crítico D. A. Miller apelidou de “morbidity culture”.[4] Corpos humanos moribundos e brutalizados começaram a encher as páginas de revistas como a The Face e a Dazed and Confused, da mesma forma que as imagens violentas prevalecem nos média actuais. Uma dessas fotografias é a que vemos na figura 10. Captada num claro-escuro dramático, a figura de uma jovem apresenta-se semelhante a uma marioneta com um tutu e collants, olhos fixos, abertos, deitada no chão repleto de folhas de árvores, num café ao ar livre, abandonado. Não sabemos se está morta, inconsciente ou se é louca, se se encontra ali há muito tempo nem em que circunstâncias foi lá parar. Conhecemos o ambiente, mas não os factos pertinentes; sentimos a luxúria e a sensualidade, mas o enredo da mesma não nos é revelado. A pose permanece congelada e livre de especificidades e pertence por isso a um mundo de sonho e de promessa. Tanto a violência como a morte são sugeridas nesta fotografia, mas esta continua a ser sedutora, na sua beleza escura e triste. Já antes, no final do século XIX Edgar Allan Poe escreveu que “a morte de uma mulher bonita é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo.”[5] Mas o corpse chic é um fenómeno que está presente em ambos os sexos e está relacionado em parte com uma convergência mediática na morte, como mostram as séries CSI ou Investigação Criminal.[6]

















Figura 10

A natureza introspetiva da fotografia de moda está bem patente num anúncio da marca Diesel do início dos anos 90 que parodia tanto o excesso americano como o seu fascínio pela morte (figura 11). O anúncio mostra um choque automóvel em grupo, com modelos mortas espalhadas pela rua, mas também sobre os carros brilhantes. Num canto da foto vemos homens de fato, presumivelmente jornalistas a documentar a cena enquanto num outro canto, um vendedor vende refrescos ao grupo de pessoas que observa toda a cena sentadas em cadeiras de jardim. As pipocas espalhadas no chão indicam-nos que estamos perante um grupo de observadores americanos. Isto é corroborado pela inscrição numa mala negra, em baixo, ao centro. Nela podemos ler: “1-800-SUE THEM”. A perspectiva aérea mostra o cenário de um acidente com tanto cuidado que esta cena se declara manifestamente ensaiada e parodia a morbidez do público e o interesse voyeur em acidentes e crimes. A imagem sugere o interesse dos média no caricato, sendo que o imaginário de violência se tornou uma espécie de espectáculo de entretenimento em si, que permite às pessoas explorar as vítimas e fazer ainda algum dinheiro.











Figura 11


[1] 
[2] Vestida num luxuoso guarda-roupa Yves Saint Laurent, Deneuve faz o papel de uma esposa da alta burguesia que fantasia com rituais sexuais brutais ao mesmo tempo que brinca às acompanhantes de luxo na tentativa de escapar da estagnação e claustrofobia respeitosa da sua vida. De certa forma, é o que fazem as revistas de moda que providenciam um ambiente seguro e sensual para estas fantasias sexuais que não estão acessíveis de outra forma à maior parte das mulheres.  
[3] É um ambiente que se relaciona, na mesma altura, com alguns vídeos de Madonna onde as práticas sado-masoquistas são abordadas, como é o caso de “Justify my Love”, que por sua vez se inspirou em “Il Portiere di Notte” de Liliana Cavani (figuras 8 e 9).
















Figura 8

















Figura 9

[4] 
[5] E o que é, no extremo, a morte de Ofélia afogada, que não uma valorização da beleza que existe na morte dos belos e jovens? 
[6] Ver BRIGHT, Brittain - The Transforming Aesthetic of the Crime Scene Photograph: Evidence, News, Fashion and Art. Concentric: Literary and Cultural Studies 38.1 [Em linha] (2012) 79-102 [Consult. 14 Abril 2014]