domingo, agosto 17, 2014

 - o carteiro -

Antes da Joana Vasconcelos (ou como fazer, através do título de um post, que alguém o leia)
um dia alguém disse a Matisse que o braço de uma senhora na pintura era muito longo, ao que ele respondeu que não se tratava de uma senhora, mas de uma pintura, o que nos leva a concluir que para Matisse a pintura, a imagem não tem de ter uma correspondência cega com o real. Ou seja, Matisse não pretende convencer-nos que aquilo que pinta é uma mulher e por isso, ou para isso, não respeita o cânone, que já muito antes dele não era respeitado, diga-se em abono da justiça. Antes de Matisse, já os artistas maneiristas do século XVI alongavam e torciam as suas figuras, com o objectivo, não de fazer imagens convincentes, mas pinturas convincentes. Quer isto dizer que havia entre o público (quem se pretende convencer) e o pintor, o compromisso, o acordo quanto ao fim do que era representado: não tinha de haver fidelidade ao cânone; tinha somente que fazer passar uma ideia.

Os cristãos da Idade Média não necessitavam disto, não necessitavam de ser convencidos pois as imagens eram como símbolos que os remetiam para o que era a sua crença. Ainda que haja quem defenda que a ideia as imagens na Idade Média não serviam para ensinar o crente, não eram uma bíblia ilustrada em esculturas, relevos, eu acho que sim. Num mundo pobre em imagens, em comida,... em tudo, as que existiam deviam ser impressionantes. No entanto, as imagens serviam para ilustrar aquilo em que o crente já acreditava. Mas no século XIV, isto foi mudando; a natureza da crença foi mudando. Talvez porque com o Renascimento se abre um pouco a caixa de pandora e algumas verdades universais caem por terra (alguma devido aos estudos de artistas), o crente torna-se mais exigente: ele necessita de ver as imagens piedosas de Cristo e de Maria. Desta forma, os artistas esforçaram-se por tornar tudo o mais real possível, sem fugir no entanto à necessidade de inspirar piedade cristã. Mais tarde, já no século XV, XVI, técnicas como a perspectiva e o sfumatto tornaram o real ainda mais real, mas a descoberta parecia ter terminado. Da mesma forma também a natureza da fé tinha-se alterado. Isto deu-se devido às inúmeras lutas de que Itália foi palco desde os finais do século XV até meados de XVI. A arte reflectiu isto, reflectiu o saque de Roma e as ideias de Savonarola. O Maneirismo foi a resposta da arte a estes acontecimentos. Durante muito tempo, foi visto como algo menor na História da Arte, como um momento de imitação dos grandes mestres, como se, após o auge do Renascimento, não restasse mais nada aos artistas a não ser, imitar, como se após o auge, só restasse o declínio.

Algumas das imagens que vemos do Maneirismo, como esta de uma pintura de Rosso Fiorentino, é uma coisa detestável e vocês bem sabem que adoro Rosso Fiorentino, pelo menos isto dele.





















Rosso Fiorentino
Madonna Enthroned with Four Saints
1518
Galleria degli Uffizi, Florence


A sensação que experimentamos a olhar para esta pintura é a mesma que experimentamos quando olhamos para Otto Dix ou Max Beckmann ou até, e isto na minha opinião, Kokoschka, El Greco (que detesto com toda a força não obstante dizerem que ele foi um pioneiro) ou Dalí. Poderá ser esta pintura de Fiorentino, tal como outras como esta de Pontormo





















Pontormo
Madonna and Child with St. Joseph and Saint John the Baptist
1521-27
The Hermitage, St. Petersburg


sejam um início de kitsch. Quem o diz não sou eu. Não escrevo há tanto tempo que jamais me poderia lembrar de tal coisa. Além disso o kitsch não é a minha área de estudo. Quem o diz é o/a The Nation, aqui. O artigo refere que nunca antes, nem mesmo na arte medieval mais naif o kitsch foi alcançado, mas não tenho bem essa ideia. Acho que em alguns momentos houve arte kitsch. Segundo o autor do artigo o kitsch teria sido inaugurado pelo Maneirismo que seria mais avant-garde que os modernismos. Desta forma, e contrariando Clement Greenberg que defendia que os modernismos face ao kitsch, os primeiros nunca o eram. Já eu - que não sou o Clement Greenberg nem nunca irei ser ("não sou nada, nunca serei nada. à parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo", como dizia o outro) - apontei como exemplos de kitsch alguns dos modernistas que Greenberg defendia. Eles são, para mim, kitsch.

Rosso Fiorentino tem o nome "rosso" (vermelho) devido ao seu cabelo. Ao que parece, toda a sua personalidade era rossa, era vermelha, endiabrada. Este quadro é parte de um painel (o Altar Ognissanti) que lhe foi encomendado para o Hospital de Santa Maria Nuova em Florença. Nele vemos as figuras que parecem, como o autor, demónios: deformadas, estilizadas, grotescas, pintadas de cores ácidas típicas do Maneirismo e que afastavam estas pinturas da majestade serena do Renascimento. Esta forma de retratar as suas personagens, como seres com distúrbios psicológicos, é muitas vezes tida como um reflexo da sua própria condição psicológica que segundo alguns não era muito boa já que, argumentam, cometeu suicídio. Fiorentino mostra-nos a Virgem com o menino, rodeada de São João Baptista, Santo Antão, Santo Estevão e São Jerónimo. Como é que sei? Ora vamos lá ver: São João Baptista tem a cruz alta na mão e é o mais jovem. Também aparece com a cruz em outras pinturas e para além disso tem a pele de um animal no tronco. Costuma ser a pele de uma ovelha, mas desta vez parece de um animal selvagem. São Jerónimo é o da direita com aspecto envelhecido, abdómen proeminente, esterno saliente, como se tivesse sido fruto da observação de uma dissecação. Este aspecto de São Jerónimo confirma a sua presença no deserto. Para além disso, São Jerónimo traduziu a bíblia, criando assim a Vulgata, que é, segundo me "sóia", aquilo que ele tem na mão. Santo Estevão, que foi o primeiro mártir da cristandade, tem uma coroa e o que sobra é Santo Antão. As faces das personagens são escurecidas, os olhos esbugalhados, os corpos longos, as faces sem osso... Tudo isso torna estas personagens pouco credíveis, tal como eram pouco credíveis os relógios de Dalí que se derretiam.