cá no meu mundo, mandar uma pessoa "encher-se de moscas" é mandá-la ir "dar uma volta ao bilhar grande". mas eu queria que vocês ficassem até ao fim. depois podem ir encher-se do que quiserem. As moscas são o insecto mais sujo, mais porquinho que conheço. Andam no cocó, o que me parece suficiente para não gostarmos delas. (O meu pai odeia formigas. Segundo ele as formigas são "umas vacas"). As moscas, na pintura, são consideradas muitas vezes a representação do diabo. Aliás, no Evangelho de São Mateus confunde o deus dos Amoritas (Baal Zebub, sendo que Baal quer dizer Príncipe) com o Deus das Moscas (Baal Zebul).
Parte do que aqui vou escrever encontra-se
aqui. As moscas fazem parte da nossa vida e fariam parte da nossa morte caso pudessem. Thank God! Quando estamos mortos, fazem-nos o mesmo que fazem ao cocó; ou seja, fazem de nós cocó. E depois vão colocar ovos em bifes! (Isto é um trauma que tenho porque uma vez uma mosca pousou sobre um bife que estava temperado para o almoço e deixou lá alguns ovos brancos. Coisa nojenta!) Em vida, chateiam-nos e desconcentram-nos, pairam sobre a nossa cabeça e atrás das orelhas mesmo a irritar. As moscas não nos permitem focalizar o pensamento e por isso são inimigas do pensamento, ou como dizia Steiner, inimigas de Sinnlichkeit.
Na Bíblia, e desde o Êxodo existe um conjunto de situações em que as moscas aparecem, quase sempre com conotações negativas. Há pelo menos nove situações em que as moscas são referidas: cinco no Êxodo e na parte referente às moscas como uma praga (igual às rãs); duas vezes nos Salmos pelo mesmo motivos, uma no Eclesiastes relativa à putrefacção da carne, uma em Isaías para referir que Deus tem poder sobre elas. Para além da Sagrada Escritura, o mosquedo figura nas Fábulas de Esopo e de La Fontaine, em Erasmo de Roterdão, em Montaigne, em Alberti, em William Golding, na música de
Rimsky Korsakov, nas Quatro Estações de Vivaldi e mais não sei.
Moscas nos quadros é que são uma coisa admirável. Ao que parece, tudo começou com Giotto, que segundo conta Vasari, pintou moscas para brincar com o mestre Cimabue. É que Giotto foi um percursor da pintura do Renascimento, eliminando os fundos dourados da pintura bizantina, reproduzindo a natureza e dando às personagens santas um semblante e expressões menos hieráticas. A par dos anjos que choram, das árvores que despontam atrás de uma procissão, das arquiteturas com pormenor, as moscas faziam parte de uma realidade profana que agora passava a figurar em temas sacros, sem que nem o que era secular nem o sacro ficasse prejudicado. Encontrei as moscas destas pinturas, mas em algumas foi impossível, não porque as moscas não estivessem lá (tenho a certeza que estão), mas porque simplesmente não sei do rasto das pinturas em questão. Além disso, Andor Pigler já fez esse trabalho, um trabalho que eu gostaria de ter feito; ou seja, o levantamento da representação da mosca em toda a pintura.
Podemos pensar que os autores pintaram moscas para nos alertar quando às vaidades terrenas (no caso de Naturezas mortas), para colocarem nos quadros segredos, pormenores que só eles conheciam, para brincar connosco, para parodiar o seu tempo...
Sebastiano del Piombo
Cardinal Bandinello Sauli
1516
National Gallery of Art, Washington
Lorenzo Lotto
Giovanni Agostino della Torre and his son Niccolo
1515
National Gallery, Londres
Lucas Cranach
The III-Matched Couple
1532
Giovanni Santi
Man of Sorrows
1490
Szépmûvészeti Múzeum, Budapeste
Jacopo de' Barbari
Portrait of Fra Luca Pacioli and an Unknown Young Man
1500s
Museo Nazionale di Capodimonte, Nápoles
Cima di Conegliano
Annunciation
1495
Hermitage, São Petersburgo
Giorgio Schiavone
The virgin and child enthroned
1456-1461
National Gallery, Londres
Francesco Benaglio
Saint Jerome
1470-1475
National Gallery of Art, Washington
Master of Frankfurt
Portrait of the artist and his wife
1496
Royal Museum of Fine Arts, Antuérpia
Carlo Crivelli
Maria e o Menino
1480
Victoria and Albert Museum, Londres
Carlo Crivelli
Maria e o Menino
1473
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
Petrus Christus
Potrait of a Carthusian
1446
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
Anónimo
Portrait of a Woman of the Hofer Family
1470