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o romantismo e o espelho - parte II
O que é o Romantismo?
Em As raízes do Romantismo de Isaiah Berlin, um conjunto de conversas radiofónicas gravadas em 1965 para a BBC, o autor define o Romantismo como sendo: exuberância da vida, caos, paz, harmonia com a ordem natural, estranho, exótico, grotesco, duendes, gigantes, elfos, obscuridade, o irracional, o inexprimível, o antigo, o histórico, o impalpável e o imponderável, desejo de viver o momento, desejo de viver o interesse fugaz, idílio pastoral e bucólico, nostalgia, sonho, solidão, sensação de alienação, a ideia de fazer parte de um grupo, de uma igreja, energia, força, vontade, vida, suicídio, auto aniquilamento, dandismo, tédio-vitae, beber de um crânio humano, unidade e multiplicidade, beleza e fealdade, arte pela arte, arte como forma de salvação, sublime, oxímero, sol negro (adoptado pelo Nazismo), tempo efémero, pensamento lúgubre, evasão, poesia (“The more poetic the more true”), a felicidade de infância… Como podemos ver, trata-se de um conjunto de palavras-chave através das quais o autor definiu, ou tentou definir, o Romantismo e que são por vezes antíteses. O espírito romântico é exatamente isso: a contradição constante, embora o Romantismo em si tenha sub-temáticas que criam unidades. Tanto que neste aspeto podemos bem dizer que o Modernismo de Baudelaire é herdeiro e dá continuidade, através do ennui que mais não é que o tédio, o fastio de viver, e que passa a existir com a Revolução Francesa e aquilo que ela introduz quanto à consciência de si próprio – dá continuidade, como dissemos – ao Romantismo. Notemos porém que nem toda a criação artística necessita do sofrimento para ser do “Bem” ou do “Bom”. Se é verdade que alguns autores tiveram vidas sofridas, não é menos que sempre isso aconteceu e que outros como Goethe, Leonardo, Degas até alcançarem em vida prosperidade e reconhecimento.
Voltemos então às definições dadas por Isaiah Berlin. O Romantismo recupera tudo isto que nos parece negro, obscuro e inadmissível até aí. Não é por acaso que esta reação anti-clássica surja neste território, onde o Classicismo não é determinante pois a herança do modelo greco-latino é mais fraca. Surge o Romantismo como forma, até de oposição, ao Classicismo, pois os povos do Norte da Europa não tinham, com tanta intensidade essa herança grega. Enquanto a Antiguidade privilegiava a tragédia, mas sob o ponto de vista de luta contra a barbárie, o Renascimento abafou-a com um racionalismo crescente. O Romantismo foge disso e tenta introduzir elementos que não eram comuns: as figuras de excepção e fora do comum passam a normais e adaptadas e assumidas pelo movimento Romântico. O Romantismo abre uma espécie de “caixa de Pandora” pois confrontou as pessoas com o próprio medo, com o seu lado obscuro e com tabus que ocultados.
Influências na literatura, filosofia, pintura e diferentes nações
O momento de erupção desta nova sensibilidade teve lugar na Alemanha e pode ser desdobrado em dois outros: um Romantismo precoce e um segundo momento que é marcado por uma visão mais francesa, racionalista e reaccionária e que herda muito do Império e da Revolução Francesa. O Romantismo precoce é por seu lado influenciado pelo medievalismo, pelo seu carácter cosmopolita, liberal e até revolucionário, de origem alemã e com um teor filosófico, teórico e utópico. Esta sensibilidade teve grande desenvolvimento em redor da universidade de Viena onde se juntavam alguns filósofos como Fichte, Schelling, Schlegel e os escritores Novalis, Schiller e Goethe. Toda esta dinâmica deduz-se já no movimento Sturm und Drang (tempestade e impulso), movimento literário do século XVIII. O nome veio de uma peça de um autor romântico, mas torna-se uma tendência literária que reclama um ideal anti-Clássico através da adoção de um Cristianismo ortodoxo. Surgem então duas grandes linhas: o nascimento de um sujeito estético e um sujeito do saber que vinha da teoria da ciência de Fichte.
O caso de Goethe
Goethe falava da pintura de Friedrich como uma passagem para os símbolos com um rigor extraordinário e qualidade simbólica e indefinida que tornava a sua paisagem num lugar habitado pela transcendência. O escritor era da opinião que a Natureza deveria ser contemplada, mas não dissecada ou estaria o Homem a alterar a mesma. Esta aliás é a faceta mais marcante de Goethe e talvez a menos conhecida. De facto ele era um romântico atípico já que estava apenas inserido no tempo, mas não era totalmente moldado por esse tempo. Passado o entusiasmo inicial da atividade juvenil ele constrói a sua personna, o que resulta na admiração dos demais, até no século XX, mas não no amor dos mesmos. Embora este fosse um tempo de agitação das emoções, a verdade é que Goethe era admirado por contê-las, por neutralizar e dominar de tal forma que esta sua neutralidade era muito mal vista, considerada mesmo diabólica. Há uma formulação pessoal na obra de Goethe: ele detestava o narcisismo romântico e por isso tentava anular-se no mundo que queria conhecer, mas ao mesmo tempo colocava em evidência o seu vasto saber. O seu Fausto aliás é também um homem ponderado que faz um pacto com o Diabo, que não faz a apologia do fragmento, mas sim da cadeia de pensamentos, de divagações. O Fausto é a assemblage, sumo da obra de Goethe, começada na década de 90 do século XVIII e que o autor termina antes de morrer. Todorov enuncia três modos de descrever Goethe: através de um posicionamento clássico que se relaciona com valores morais, uma posição romântica que neste caso coloca no indivíduo como a fonte dos valores através dos quais vai ser avaliado e uma posição moderna que Todorov descreve como tendo esses valores presentes, mas ligados entre si através dos atos do ser criador. O que Todorov diz não pode ser entendido fora do contexto do próprio autor, já que este era um representante e firme defensor da continuidade da humanidade. Como tal, ele acreditava que em Goethe existia uma dimensão mais clássica (até pela sua sobriedade), a clara dimensão romântica e também uma dimensão em que estas duas correntes se iriam sintetizar no futuro. A Goethe não interessava o efeito que a arte podia ter no espetador enquanto medida do interior do artista, nem enquanto expressão da Natureza. A dimensão gigantesca da obra de Goethe deve-se à sua compulsão em conhecer a Natureza e os seus fenómenos, mas também à unidade que liga os seres. Esta é de certa forma uma retoma dos conceitos pré-socráticos e que refere um elemento da origem de toda a diversidade existente e à qual se dá o nome de proto-fenómeno (Urphänomen).
Influências na literatura, filosofia, pintura e diferentes nações (cont.)
O Romantismo inglês por seu lado dá bastante importância à Natureza tanto na pintura como na literatura. Dentro deste romantismo idílico existe também uma dimensão satânica que na literatura é personificada por Byron e Blake, embora este tivesse sido mais onírico. Blake insere-se também na versão do “eu” hiperbolizado enquanto Byron foi uma figura mais intensa no Romantismo, figura esta que introduziu a noção de dandy, do homem que faz de si próprio uma obra de arte numa alusão demoníaca que muito agradava às senhoras. A tentativa de evasão que Isaiah Berlin referiu levava a procurar lugares, na Natureza, que fossem exóticos. Daí o interesse pela cultura celta, a Bretanha e também o Norte de África. Lord Byron por exemplo era uma pessoa escandalosa por opção, mas não obstante o burburinho provocado à sua passagem, viveu um tempo na Grécia, que estava dominada por turcos e que só por isso era uma nação exótica. Delacroix por exemplo também pintou muitos temas de natureza oriental e empreendeu mesmo uma viagem ao Norte de África da qual ficaram conhecidos os esboços realizados pelo artista quanto à vida nómada
. Os paisagistas ingleses tentaram juntar a reflexão teórica com a atividade prática, o que veio contrariar os pressupostos clássicos que estabeleceram as fronteiras entre as diferentes artes, principalmente a pintura e a poesia
.
BERLIN, Isaiah – The roots of Romanticism. Nova Jérsia: Princeton University Press, 1999, p. 17
TODOROV, Tzvetan - Goethe sur l'art. in GOETHE – Ecrits sur l’art. Paris: Klincksieck, 1983.