terça-feira, novembro 22, 2011

- o carteiro -

o romantismo e o espelho - parte I

O segundo capítulo do livro The mirror and the lamp de M. Howard Abrams (1953) inicia com uma citação de A República de Platão (livro X). Aí, Sócrates encarrega-se de explicar a natureza da poesia e introduz uma analogia para melhor se fazer entender. Segundo Sócrates, o carpinteiro que faz uma cama ou uma mesa procede de acordo com as Ideias que possui acerca desses objectos; ou seja: uma mesa tem quatro pés e um tampo, uma cama tem pés, cabeceira e um estrado. O artista porém teria outra forma mais fácil para fazer esses objectos, fosse o fazer através do desenho, da pintura ou da escultura. O truque do artista seria então o espelho. Não se fala aqui do espelho como objeto, mas como coisa refletora. Passando a palavra a Platão, este profere de imediato considerações pouco amigáveis acerca do carácter e valor da arte. Nos seus escritos, Platão adverte repetidamente para a analogia com algo que reflete, quer seja um espelho ou a água e que é no fundo, um simulacro da realidade; ou seja, aquilo a que ele chama sombras. O que Paltão faz, no fundo, é introduzir algo que já existe na natureza, na arte e no cosmos e que levanta como principal questão, a da idoneidade da ilustração.[1]

1. O espelho e a lâmpada

Como referido, até pelo título do livro, o autor adverte para dois momentos no percurso das artes, sejam elas a Literatura ou as chamadas Belas-Artes: um antes do Romantismo e um “a partir” do Romantismo e que podem ser explicados através do espelho e da lâmpada. Desta forma, até ao Romantismo (1850-1900) a arte teria sido o espelho da realidade, que refletia a mesma sem qualquer intervenção do espírito crítico e imaginação do artista, senão como forma de conduzir melhor o reflexo no espelho. Na tela, no papel e na pedra, deveria estar um retrato do que era visto, do que existia na realidade. O recurso a um espelho para refletir a natureza de uma ou outra forma de arte continuou a ser o preferido dos teóricos da Estética, por muito tempo após Platão. No Renascimento, por exemplo a referência à expressão “ver através do vidro” é frequente e específica. Diz Alberti:

“What should painting be called except the holding of a mirror up to the original as in art?”[2]

E Leonardo faz uso repetido do espelho para ilustrar a natureza da pintura e a mente do pintor. Diz Leonardo:

“The mind of the painter should be like a mirror which always takes of color of the thing that it reflects and which is filled by as many images as there are things placed before it… You cannot be a good master unless you have a universal power of representing by your art all the varieties of the forms which nature produces.”[3]

Na literatura há aliás muitos títulos que fazem referência ao espelho, como The mirror of the world de William Caxton (1490), The mirror of minds de John Barclay (1633), Glass of government (1575) e The steel glass (1576) de Gaiscoigne.

2. Passagem do espelho para a lâmpada

O Romantismo porém, tem uma mudança de paradigma. Assim a realidade tal como ela se apresenta deixa de ser o tema da arte e passa a ser a recriação dessa realidade passada pelo crivo da mente artística. O artista já não necessita do espelho pois ele próprio é a lâmpada; ou seja, é a partir dele e da sua capacidade criativa que a realidade vai ser iluminada e vista. Já antes Plotino tinha mostrado que era possível a um artista enquadrar-se nas definições de Platão e mesmo assim evitar um afastamento da norma platónica simplesmente por permitir-se desviar-se do mundo sensível. Não se tratava portanto fugir a esse mundo, mas simplesmente contorná-lo de forma consciente. Mas isto originava contudo a criação de obras de arte ainda mais perfeitas do que a realidade. O que se conclui, em última instância, é que a arte é concebida para imitar alguma coisa que existe dentro do artista[4]. Esta passagem do ideal empírico para o ideal intuitivo pode ser perfeitamente relacionada com a transição do naturalismo concreto de Leonardo para a paisagem torcida e figuras atenuadas de El Greco que, de acordo com a anedota, recusava-se a deixar o quarto escurecido pois “a luz do dia perturba[va] a minha[sua] luz interior.”[5]

Em 1774 Os sofrimentos do jovem Werther de Goethe evidenciam a mudança de paradigma. Foi talvez este o momento inaugural do Romantismo entendido como lâmpada do interior do artista. Refere Goethe através de Werther:


“Não era capaz de desenhar agora, nem um traço, e, no entanto, nunca fui tão bom pintor como nestes momentos.”[6]

Inicia-se o artista como sofredor: esta foi aliás uma obra que fez a apologia da arte feita com o próprio sangue do artista, tendência que desencadeou um conjunto de suicídios pela Europa. A dualidade do Romantismo está tanto presente em aspectos simples como os títulos das obras, como também nos pensamentos produzidos nesse tempo. Paul Valery disse mesmo que esse era o grande problema do Romantismo: a sua dualidade e definição impossível. O Romantismo é de facto tão facetado que não foi uniforme: há um Romantismo utópico e um Romantismo da Idade Média; um Romantismo visionário e o Romantismo das ruínas… Outro momento que pode ser tido como paradigmático desta época é O Anjo Terrível de Rilke. Ali podemos ler:

“Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias

dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse

para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua

natureza mais potente. Pois o belo apenas é

começo do terrível, que só a custo podemos suportar,

e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha

destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.”[7]

Curiosamente, e para corroborar o dito anteriormente acerca de o Romantismo não se ter esgotado no início do século XIX, a verdade é que já no século XX, quando Thomas Mann escreve Morte em Veneza, coloca o autor como uma personificação de Goethe e a proferir o seguinte: “A beleza gera constrangimento”[8]. E o mais singular é observar que umas páginas à frente faz referência parcial ao título que nos trás hoje aqui quando diz: “Imagem e espelho! Os seus olhos…”[9]



[1] ABRAMS, M. H. – The mirror and the lamp: romantic theory and the critical tradition. Londres: Oxford University Press, 1960, p. 30 e 31

[2] Idem, ibidem p. 32

[3] Idem, ibidem, p. 32

[4] Goethe dizia aliás, e numa inversão do Neo-platonismo tradicional, que o que estava dentro, estava antes fora.

[5] Idem, ibidem, p. 43

[6] GOETHE, Johann Wolfgang – A paixão do jovem Werther. Viseu: João Azevedo Editor, 1989, p. 10

[7] RILKE, Rainer Maria – As elegias de Duíno. Lisboa: Assírio e Alvim, 1993, p. 29

[8] MANN, Thomas – Morte em Veneza. Mem Martins: Publicações Europa-América, p. 59

[9] Idem, ibidem, p. 77