O segundo capítulo do livro The mirror and the lamp de M. Howard Abrams (1953) inicia com uma citação de A República de Platão (livro X). Aí, Sócrates encarrega-se de explicar a natureza da poesia e introduz uma analogia para melhor se fazer entender. Segundo Sócrates, o carpinteiro que faz uma cama ou uma mesa procede de acordo com as Ideias que possui acerca desses objectos; ou seja: uma mesa tem quatro pés e um tampo, uma cama tem pés, cabeceira e um estrado. O artista porém teria outra forma mais fácil para fazer esses objectos, fosse o fazer através do desenho, da pintura ou da escultura. O truque do artista seria então o espelho. Não se fala aqui do espelho como objeto, mas como coisa refletora. Passando a palavra a Platão, este profere de imediato considerações pouco amigáveis acerca do carácter e valor da arte. Nos seus escritos, Platão adverte repetidamente para a analogia com algo que reflete, quer seja um espelho ou a água e que é no fundo, um simulacro da realidade; ou seja, aquilo a que ele chama sombras. O que Paltão faz, no fundo, é introduzir algo que já existe na natureza, na arte e no cosmos e que levanta como principal questão, a da idoneidade da ilustração.[1]
1. O espelho e a lâmpada
Como referido, até pelo título do livro, o autor adverte para dois momentos no percurso das artes, sejam elas a Literatura ou as chamadas Belas-Artes: um antes do Romantismo e um “a partir” do Romantismo e que podem ser explicados através do espelho e da lâmpada. Desta forma, até ao Romantismo (1850-1900) a arte teria sido o espelho da realidade, que refletia a mesma sem qualquer intervenção do espírito crítico e imaginação do artista, senão como forma de conduzir melhor o reflexo no espelho. Na tela, no papel e na pedra, deveria estar um retrato do que era visto, do que existia na realidade. O recurso a um espelho para refletir a natureza de uma ou outra forma de arte continuou a ser o preferido dos teóricos da Estética, por muito tempo após Platão. No Renascimento, por exemplo a referência à expressão “ver através do vidro” é frequente e específica. Diz Alberti:
“What should painting be called except the holding of a mirror up to the original as in art?”[2]
“The mind of the painter should be like a mirror which always takes of color of the thing that it reflects and which is filled by as many images as there are things placed before it… You cannot be a good master unless you have a universal power of representing by your art all the varieties of the forms which nature produces.”[3]
2. Passagem do espelho para a lâmpada
O Romantismo porém, tem uma mudança de paradigma. Assim a realidade tal como ela se apresenta deixa de ser o tema da arte e passa a ser a recriação dessa realidade passada pelo crivo da mente artística. O artista já não necessita do espelho pois ele próprio é a lâmpada; ou seja, é a partir dele e da sua capacidade criativa que a realidade vai ser iluminada e vista. Já antes Plotino tinha mostrado que era possível a um artista enquadrar-se nas definições de Platão e mesmo assim evitar um afastamento da norma platónica simplesmente por permitir-se desviar-se do mundo sensível. Não se tratava portanto fugir a esse mundo, mas simplesmente contorná-lo de forma consciente. Mas isto originava contudo a criação de obras de arte ainda mais perfeitas do que a realidade. O que se conclui, em última instância, é que a arte é concebida para imitar alguma coisa que existe dentro do artista[4]. Esta passagem do ideal empírico para o ideal intuitivo pode ser perfeitamente relacionada com a transição do naturalismo concreto de Leonardo para a paisagem torcida e figuras atenuadas de El Greco que, de acordo com a anedota, recusava-se a deixar o quarto escurecido pois “a luz do dia perturba[va] a minha[sua] luz interior.”[5]
“Não era capaz de desenhar agora, nem um traço, e, no entanto, nunca fui tão bom pintor como nestes momentos.”[6]
Inicia-se o artista como sofredor: esta foi aliás uma obra que fez a apologia da arte feita com o próprio sangue do artista, tendência que desencadeou um conjunto de suicídios pela Europa. A dualidade do Romantismo está tanto presente em aspectos simples como os títulos das obras, como também nos pensamentos produzidos nesse tempo. Paul Valery disse mesmo que esse era o grande problema do Romantismo: a sua dualidade e definição impossível. O Romantismo é de facto tão facetado que não foi uniforme: há um Romantismo utópico e um Romantismo da Idade Média; um Romantismo visionário e o Romantismo das ruínas… Outro momento que pode ser tido como paradigmático desta época é O Anjo Terrível de Rilke. Ali podemos ler:
“Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias
dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse
para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua
natureza mais potente. Pois o belo apenas é
começo do terrível, que só a custo podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.”[7]
Curiosamente, e para corroborar o dito anteriormente acerca de o Romantismo não se ter esgotado no início do século XIX, a verdade é que já no século XX, quando Thomas Mann escreve Morte em Veneza, coloca o autor como uma personificação de Goethe e a proferir o seguinte: “A beleza gera constrangimento”[8]. E o mais singular é observar que umas páginas à frente faz referência parcial ao título que nos trás hoje aqui quando diz: “Imagem e espelho! Os seus olhos…”[9]
[1] ABRAMS, M. H. – The mirror and the lamp: romantic theory and the critical tradition. Londres: Oxford University Press, 1960, p. 30 e 31
[2] Idem, ibidem p. 32
[3] Idem, ibidem, p. 32
[4] Goethe dizia aliás, e numa inversão do Neo-platonismo tradicional, que o que estava dentro, estava antes fora.
[5] Idem, ibidem, p. 43
[6] GOETHE, Johann Wolfgang – A paixão do jovem Werther. Viseu: João Azevedo Editor, 1989, p. 10
[7] RILKE, Rainer Maria – As elegias de Duíno. Lisboa: Assírio e Alvim, 1993, p. 29
[8] MANN, Thomas – Morte em Veneza. Mem Martins: Publicações Europa-América, p. 59
[9] Idem, ibidem, p. 77
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