- o carteiro -
"auga fresca, binho bom e cumida à descriçom" (NOTA: este post não tem imagens):
Ora bem… onde é que tínhamos ficado? Estava eu a dizer que a comida na Bíblia pode servir para assinalar passagens importantes (como um casamento, o reencontro de pessoas, a Páscoa) ou passagens se não menos importantes, pelo menos menos óbvias. Por exemplo, quando um acordo é firmado entre pessoas ou entre Deus e os humanos a comida serve como testemunho do compromisso celebrado. Em caso de perjúrio a comida é usada como maldição, como nos mostra os Salmos: “Assim como se vestiu de maldição, como sua roupa, assim penetre ela nas suas entranhas, como água, e em seus ossos como azeite.” (
Salmos 109, 18) Quando Deus celebra o seu pacto com Abraão fá-lo com o sacrifício de alguns animais, como a cabra, o carneiro, o pombo e o bezerro: "E disse-lhe: Toma-me uma bezerra de três anos, e uma cabra de três anos, e um carneiro de três anos, uma rola e um pombinho.” (
Génesis 15, 9) Já com Moisés os animais sacrificados foram outros: “E enviou alguns jovens dos filhos de Israel, os quais ofereceram holocaustos e sacrificaram ao SENHOR sacrifícios pacíficos de bezerros.” (
Êxodo 24, 5) “E com Josué que firmou um pacto com os genobitas partilha com eles as suas provisões: "Então os homens de Israel tomaram da provisão deles e não pediram conselho ao SENHOR. E Josué fez paz com eles, e fez um acordo com eles, que lhes daria a vida; e os príncipes da congregação lhes prestaram juramento." (
Josué 9, 14, 15).
Existe essa obrigação de aqueles que celebram um acordo o selarem com a comida, como símbolo desse pacto. No entanto são muitos os que o traem como nos mostra este Provérbio: “Porque, como imaginou no seu coração, assim é ele. Come e bebe, te disse ele; porém o seu coração não está contigo.” (
Provérbios 23, 7) E mesmo como nos mostra o pacto mais conhecido do catolicismo e que se celebra na Páscoa. Na Última Ceia os discípulos e Jesus reúnem à volta de uma refeição. Apesar da amizade que os une e da partilha de ideais um deles acaba mais tarde por trair Jesus; ou seja, Pedro. Em Mateus vemos como Jesus confronta os seus discípulos com esse facto: “E, chegada a tarde, assentou-se à mesa com os doze. E, comendo eles, disse: Em verdade vos digo que um de vós me há de trair." (
Mateus 26, 16-17)
E nem mesmo os banquetes e ocasiões menos festivas, mas igualmente importantes, obstam o consumo de álcool em exagero. A mensagem bíblica, como vimos anteriormente, refere-se ao consumo exagerado de álcool como um mal que ridiculariza quem o pratica. Assim vemos que em muitas refeições, algumas delas verdadeiros “almoços de negócios” a bebida é usada para persuadir o outro a fazer o que alguém deseja. Veja-se o caso das filhas de Lot que o embebedaram para com ele se poderem deitar: “Vem, demos de beber vinho a nosso pai, e deitemo-nos com ele, para que em vida conservemos a descendência de nosso pai.” (
Génesis 19, 32) Judite faz o mesmo com Holofernes, não para se deitar com ele, mas para deixá-lo incapaz e assim decapitá-lo: "O coração de Holofernes agitou-se, porque ardia de paixão por ela. Come e bebe alegremente, disse-lhe ele, pois encontraste graça aos meus olhos. Ao que respondeu Judite: Eu beberei, senhor, porque nunca em minha vida me senti tão engrandecida como hoje. Mas ela tomou e comeu do que a sua serva lhe tinha preparado, e bebeu com ele. Holofernes alegrou-se grandemente por tê-la junto dele, e bebeu vinho como nunca tinha bebido."
(
Judite 12, 16-20)
A pobre da mulher, como todas as pobres mulheres da Bíblia, para além de ter que se haver com o pó de arroz e com o blush e os pregueados do vestido, ainda preparou a refeição. Pelo menos se não foi ela foi uma mulher, pela certa. É que na Bíblia cabe quase sempre à mulher a preparação da comida. Rute (ou Ruth) por exemplo: “E Rute, a moabita, disse a Noemi: Deixa-me ir ao campo, e apanharei espigas atrás daquele em cujos olhos eu achar graça. E ela disse: Vai, minha filha. Foi, pois, e chegou, e apanhava espigas no campo após os segadores; e caiu-lhe em sorte uma parte do campo de Boaz, que era da família de Elimeleque." (
Rute 2, 14) Sara: "E Abraão apressou-se em ir ter com Sara à tenda, e disse-lhe: Amassa depressa três medidas de flor de farinha, e faze bolos." (
Génesis 18, 6) Uma mulher do Antigo Testamento: “Sucedeu também um dia que, indo Eliseu a Suném, havia ali uma mulher importante, a qual o reteve para comer pão; e sucedeu que todas as vezes que passava por ali entrava para comer pão.” (
2 Reis 4, 8)
Os homens também servem comida uns aos outros, principalmente quando o que está em causa é a sua hospitalidade; a comida serve para “quebrar o gelo” entre desconhecidos, para estabelecer relações de confiança e cordialidade. Abraão fez isso com dois desconhecidos: “E tomou manteiga e leite, e a vitela que tinha preparado, e pôs tudo diante deles, e ele estava em pé junto a eles debaixo da árvore; e comeram.” (
Génesis 18, 8) Lot fez isso com os dois anjos: “E porfiou com eles muito, e vieram com ele, e entraram em sua casa; e fez-lhes banquete, e cozeu bolos sem levedura, e comeram.” (
Génesis 19, 3) E até José o fez embora com um sentido duplo que procuraremos explicar. José estava cativo do Faraó juntamente com dois serviçais do mesmo: o cozinheiro e o padeiro. Estes disseram ao faraó que José tinha poderes interpretativos e que podia explicar os sonhos que o soberano tinha tido. Este mandou chamar José e José explicou-lhe os sonhos e aconselhou-o, uma vez que os sonhos falavam de abundância e miséria, a poupar durante os próximos sete anos os alimentos produzidos e armazená-los, para que os mesmos fossem úteis em época de fome. No entanto esta escolhe e conselho de José apesar de sábio, fez com que as cidades próximas do Egipto perecessem de fome já que não foram avisadas. “E de todas as terras vinham ao Egito, para comprar de José; porquanto a fome prevaleceu em todas as terras.” (
Génesis 41, 57)
Mas a comida na Bíblia está presente nas abulações, nas festas, nas parábolas, nas maldições e até nos nomes das personagens bíblicas. Adão por exemplo foi aquele que nasceu do “barro vermelho”, barro este que vem de solos onde propícios ao crescimento de certas plantas. O nome Lia, filha de Labão, queria dizer “vaca”. O nome Raquel (também filha de Labão) queria dizer mãe ovelha e de facto foi ela que se tornou a mãe das doze tribos. Tamar mulher de Er tem um nome que quer dizer “palmeira”. Na maior parte dos casos os nomes das mulheres na Bíblia estão associados a animais dos quais se pode retirar leite, peles e carne pelo que podemos concluir que havia a consciência da importância do papel da mulher dentro da sociedade. Por outro lado também podemos pensar que o seu papel era meramente utilitário, prático e de facto para as mulheres fundadoras, parece que sim. No entanto existem outras em toda a Bíblia cujo nome não está relacionado com o de nenhum animal doméstico, mas com animais que associamos a beleza e elegância. Zíbia queria dizer “gazela”, assim como Tabita e Hogla (filha de Zelofeade) queria dizer “perdiz”. Estes nomes são assim metáforas que cada um dos livros bíblicos usou para melhor descrever cada uma das personagens. Mas outras referências a alimentos podem estar contidas em expressões muito simples e recorrentes como aquele que provavelmente já conhecemos: “leite e mel”. Esta expressão “terra de leite e mel” surge no
Êxodo 33, 3: “A uma terra que mana leite e mel; porque eu não subirei no meio de ti, porquanto és povo de dura cerviz, para que te não consuma eu no caminho.” , mas também no Levítico, nos Números, no Deuteronómio, no Eclesiaste, em Jeremias e em Ezequiel; ou seja, no Antigo Testamento. A junção de leite com mel não é casual: são dois alimentos nutricionalmente ricos (muito úteis para terras pobres e para povos pobres) e que só podem ser obtidos após muito tempo de acompanhamento: acompanhamento de uma vaca, por exemplo, o seu tratamento diário, a sua alimentação que podia ser uma dor de cabeça atendendo à pobreza de algusn solos e acompanhamento da produção de mel. No fundo a expressão “leite e mel” está relacionada com a recompensa após larga espera e a prosperidade. Outra metáfora é o cálice. O cálice é o objecto que relaciona a morte com a vida, como vemos em
Isaías 51, 17-23: "Desperta, desperta, levanta-te, ó Jerusalém, que bebeste da mão do SENHOR o cálice do seu furor; bebeste e sorveste os sedimentos do cálice do atordoamento. De todos os filhos que ela teve, nenhum há que a guie mansamente; e de todos os filhos que criou, nenhum há que a tome pela mão. Estas duas coisas te aconteceram; quem terá compaixão de ti? A assolação, e o quebrantamento, e a fome, e a espada! Por quem te consolarei? Os teus filhos já desmaiaram, jazem nas entradas de todos os caminhos, como o antílope na rede; cheios estão do furor do SENHOR e da repreensão do teu Deus. Portanto agora ouve isto, ó aflita, e embriagada, mas não de vinho. Assim diz o teu Senhor o SENHOR, e o teu Deus, que pleiteará a causa do seu povo: Eis que eu tomo da tua mão o cálice do atordoamento, os sedimentos do cálice do meu furor, nunca mais dele beberás. Porém, pô-lo-ei nas mãos dos que te entristeceram, que disseram à tua alma: Abaixa-te, e passaremos sobre ti; e tu puseste as tuas costas como chão, e como caminho, aos viandantes.
Da mesma forma as ovelhas e o rebanho representam a relação de Deus com os seus: os crentes serão o rebanho do Senhor e se uma ovelha desse rebanho se perde, Deus vai à sua procura: "O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranqüilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias. (
Salmos 23)
A fome, o canibalismo e a precariedade está relacionada com o pecado; uma terra abundante é uma terra onde se pratica o bem, tal como o Éden que ficou perdido para sempre para o Homem. Assim o céu seria o lugar que prosperava em alimento e o Inferno a local onde se morreria de fome (caso ainda não se tivesse morrido!). Como prova temos a destruição de Sodoma e Gomorra que antes de caírem em pecado eram locais prósperos: “E levantou Ló os seus olhos, e viu toda a campina do Jordão, que era toda bem regada, antes do SENHOR ter destruído Sodoma e Gomorra, e era como o jardim do SENHOR, como a terra do Egito, quando se entra em Zoar.” (
Génesis 13, 10) Insiste-se em toda a Bíblia nesta ideia de que o bem é recompensado com a abundância de alimento e que o mal é punido com a ausência, com a miséria. Se o Homem praticar os ensinamentos do Senhor nunca lhe faltará alimento à mesa e será convidado para os grandes banquetes com os Patriarcas da Igreja numa vida póstuma: “Bem-aventurados aqueles servos, os quais, quando o Senhor vier, achar vigiando! Em verdade vos digo que se cingirá, e os fará assentar à mesa e, chegando-se, os servirá.” (
Lucas, 12, 37) Se o povo de Israel proceder segundo os mandamentos, será recompensado com a abundância e a fertilidade: "E será que, se ouvires a voz do SENHOR teu Deus, tendo cuidado de guardar todos os seus mandamentos que eu hoje te ordeno, o SENHOR teu Deus te exaltará sobre todas as nações da terra. E todas estas bênçãos virão sobre ti e te alcançarão, quando ouvires a voz do SENHOR teu Deus; Bendito serás na cidade, e bendito serás no campo. Bendito o fruto do teu ventre, e o fruto da tua terra, e o fruto dos teus animais; e as crias das tuas vacas e das tuas ovelhas.” (
Deuteronómio 28, 1-4)
Esta ideia da fertilidade é muito importante pois na sua ausência consiste o grande castigo do Senhor. Assim é dito que a estes, aos que proclamam a palavra do Senhor, ser-lhes-á dado o prometido, mas aos outros, ser-lhes-há retirada até a possibilidade de sobreviverem sem terra fértil para plantar nem animais puros para consumirem: "Eis que estava toda cheia de cardos, e a sua superfície coberta de urtiga, e o seu muro de pedras estava derrubado." (
Provérbios 24, 31) "Que habita entre as sepulturas, e passa as noites junto aos lugares secretos; come carne de porco e tem caldo de coisas abomináveis nos seus vasos" (
Isaías 65, 4) A miséria será tal, material e espiritual que desorientado e faminto o povo do Senhor comerá mesmo os próprios filhos: “Porque comereis a carne de vossos filhos, e a carne de vossas filhas.” (
Levítico 26, 29)
Com isto Deus remete-nos para um estado inferior ao de animal pois os animais não têm consciência e o Homem que teve Deus para o ensinar optou por não aprender propositadamente. É uma sociedade caótica, podre e que não poderá sobreviver pois é autofágica. Quando Adão e Eva comeram do fruto proibido Deus castigou-os. Há quem não consiga deixar de associar o pecado original com o pecado da carne, mas se formos a ver bem não foi o castigo de viver a sexualidade em pecado que Deus deu aos habitantes do paraíso. É Deus que lhes dá algo muito pior que a nudez; dá-lhes a vergonha, pois são eles que se reconhecem nus. Diz os Génesis: “Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais.” (Génesis 3, 7). Apesar de o Ocidente tender para considerar pecado tudo o que se relaciona com a sexualidade, na verdade nos Génesis vemos que a sexualidade não é o pecado nem antecede o pecado; a sexualidade é uma consequência do pecado. A Bíblia também não enfatiza o facto de Adão e Eva terem comido, mas apenas de não terem sido fiéis às ordens do Senhor. No entanto a ideia que as civilizações ocidentais fazem deste episódio bíblico é que ele é uma chamada de atenção de Deus ao Homem para que este seja comedido na ingestão de alimento, algo que se prende com o facto de o alimento não ser abundante e de desempenhar um papel muito importante no dia-a-dia destes povos estando presente de forma simbólica em todos os actos. Esta ideia vem também das palavras que Deus pronuncia mal sabe que Adão e Eva pecaram. À serpente Deus diz: “Então o SENHOR Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida.” (Génesis 3, 14). A Adão diz: “E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida.” (
Génesis 3, 17). Vemos que para a serpente e para Adão o castigo está também naquilo que comem: pó. Ao vetar o acesso do Homem à árvore da vida Deus está a impedir o Homem de questionar, de colocar em causa e de tomar opções diferentes das ditadas. Ele diz: “E ordenou o SENHOR Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (
Génesis 2, 16-17) ; ou seja, quando o Homem souber distinguir o Bem do Mal terá por um lado conhecimento do Mal e poderá praticá-lo. Por outro lado poderá praticar o Bem ou o Mal – terá livre escolha – e por fim o Homem poderá praticar o Bem sem necessitar de Deus para o orientar. Comer da árvore do conhecimento é triplamente mau.
Uma vez que consumiram desta árvore Adão e Eva são expulsos do paraíso e obrigados a trabalhar para comer – agricultura – tanto que enquanto no início dos Génesis homem e mulher tinham de ser praticamente vegetarianos, mais à frente no mesmo livro é dito que: “Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde.” (
Génesis 9, 3). A única restrição feita é, como se sabe, à ingestão de sangue.
Não há livro bíblico, seja no antigo ou no Novo Testamento que não tenha uma referência, por mais pequena que seja à comida, algo que é justificável pelo facto de as sociedades daquele tempo dependerem grandemente das condições do tempo. Mas nem mesmo isto retira importância ao que lá está: a comida tem muita relevância no nosso dia-a-dia e será para reflectir a proliferação recente de livros, programas de televisão, revistas e cursos de culinária, de novos alimentos, formas de confeccioná-los, bem como dietas alimentares temáticas, num tempo em que 1,02 biliões de pessoas no mundo passa fome.