quarta-feira, outubro 25, 2017

- original soundtrack -

esta música tem três momentos de pura poesia. e vocês sabem: uma coisa é a rima e a outra a poesia.














E a solidão não erra
Se chamar o seu nome
Vai que nem uma luva


O coveiro que o diga
Quantas vezes se apoiou na enxada
E o coração que o conte
Quantas vezes já bateu p´ra nada


Mas é sempre a mesma história
Depois do primeiro assombro
Logo o corpo fica farto

(Balada da Rita, Sérgio Godinho)
- não vais mais vinho para essa mesa -






















 
- o carteiro -

ceci n'est pas de l'art

e sim, é irreversível. Muitos momentos marcaram a História da Arte: uns referem o papel do Renascimento, outros do Romantismo (eu defendo o Romantismo com a charneira para a Arte Moderna, já que o Romantismo introduz uma ideia sem a qual a Arte Moderna não teria prosperado: a ideia de "génio incompreendido". Dramática, mas eficaz)... Há porém uma teoria que defende que o momento de charneira da arte foi a segunda guerra mundial pois esta mudou a geografia da arte no mundo: até aí as tendências eram definidas na Europa e após a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos passaram a ditá-las. Esta tese, ensinada na escola, é corroborada (ainda que de forma totalmente subvertida) por documentos recentemente divulgados pela CIA nos quais é revelado o plano dos Estados Unidos para influenciar os intelectuais franceses  de esquerda no sentido de ver invertida a sua defesa do comunismo, uma vez que o comunismo era o regime em vigor na União Soviética, os seus arqui-inimigos. A ideia era controlar o seu "grau de comunismo" de forma a que o mundo civilizado não acreditasse que aquelas ideias poderiam vigorar num país que prosperava com a Guerra e que se transformava numa potência capitalista. Na era McCarthty, como agora, a esquerda - e o comunismo então! - eram vistos com maus olhos pela maioria dos americanos. Para além destes papéis há pouco tempo divulgados pela CIA, corre, desde os anos 90, a teoria de que a CIA não só tentou influenciar o pensamento político e filosófico do mundo ocidental, como também a arte. O que nos vendem - e que em parte é crível - é que após a Segunda Guerra Mundial a Europa estava tão destruída e os artistas haviam sido tão perseguidos e acossados, que somente a fuga para os EUA lhes proporcionaria a continuação da carreira com liberdade criativa. Mas há coisas que não batem certo:
- porque é que os movimentos pós segunda guerra mundial surgidos nos Estados Unidos não têm como mentores artistas europeus ali refugiados (Entre Jackson Pollock, Barnett Newman e Mark Rothko, só este último era filho de emigrantes: emigrantes russos que saíram do seu país natal nas vésperas da Primeira Guerra Mundial e não da Segunda)
- porque é que a Arte Moderna vinga num país que poucos anos antes a desprezava, sendo que o Presidente Truman chegou a dizer: Se isso é arte eu sou um Hotentot?

Este documento de 1995 avança a teoria de que foi a própria CIA que, numa tentativa de criar uma arte americana e colocá-la na vanguarda, promoveu a sua exportação para território europeu, bem como a sua disseminação na mente dos americanos mais relutantes. Vejamos o caso do Expressionismo Abstracto, totalmente desgarrado culturalmente de tudo, mesmo da realidade do país onde nasce e daquilo que o antecedeu. O Expressionismo Abstracto foi um movimento que colocou em evidência, mais do que o movimento em si, as personalidades. Foi um movimento promotor do génio individual em detrimento do grupo, um movimento que prosperou muito rapidamente (com exposições exportadas para a Europa quando a Europa estava a reconstruír-se e não possuía os meios para trazer até si exposições daquele calibre) e claro, um movimento que priveligiava a obra serial em detrimento da pequena produção pois a obra serial e de grandes dimensões tinha impacto num universo capitalista. E isto, é totalmente oposto ao que acontecia na União Soviética em que a arte era para e pelo grupo, para e pela comunidade; oposto ao que acontecia antes do hiato da Segunda Guerra Mundial em que a arte não tinha essa capacidade expansionista nem se interessava por isso (e isso não é mau. Aliás, esta ideia de que todos os artistas têm de ser geniais é estranha à essência da arte: os artistas têm de fazer arte. só isso. o génio serve o mercado da arte porque categoriza, hierarquiza e torna o mercado mais simples, mais fácil de entender). As grandes dimensões, as séries de pinturas do Expressionismo Abstracto também não encontram um antecedente naquilo que supostamente o antecedeu e lhe deu origem e que foi a afluência de hordas de artistas europeus a continente americano enquanto exilados de guerra, já que até aí o que víamos não era isso. Não tínhamos a arte moderna francesa a produzir em série e em grandes dimensões, à excepção de Picasso, mas Picasso foi uma excepção.

As primeiras tentativas de exportar o Expressionismo Abstracto foram mal sucedidas logo dentro das próprias fronteiras: a América não conseguia demarcar-se do rótulo de filistina que lhe tinha sido conferida pela União Soviética e era, devido ao extremo conservadorismo, um deserto artístico. A CIA cria então uma divisão, a  Propaganda Assets Inventory, responsável por controlar e editar dezenas de publicações culturais e é essa propaganda que permite mudar mentalidades e colocar o Expressionismo Abstracto na ordem do dia e dentro dos museus americanos. E isto não foi alcançado pelo valor artístico real do movimento, mas antes pelas influências políticas e económicas. Senão vejamos: o primeiro museu americano a dar uma oportunidade ao movimento foi o MoMA, fundado pela família Rockfeller. No conselho de membros do mesmo museu sentou-se William Paley, presidente da CBS e membro fundador da CIA; John Hay Whitney que se sentou nas reuniões da CIA como nas do MoMA, ou Tom Braden que chefiou uma das divisões da CIA e foi secretário executivo do museu em 1949.

Tudo isto pode ser especulação, mas coloca-nos no lugar onde estamos hoje e se esse lugar não é o balde do lixo nem o caos - a arte contemporânea nem sequer chega aí - é certamente do "pointless". Muito se escreveu, muito se irá escrever acerca da arte contemporânea e do seu afastamento do público. A minha visão é, segundo os moldes de hoje, muito careta, mas isso não nos afasta do ponto onde estamos. Não refiro casos ou artistas em concreto pois isso é corroborar a ideia de artista Pop-Star que a mim enoja. Refiro a desorientação do público em exposições, à procura dos papéis que lhe digam o que pensar, o que sentir ante esta ou aquela obra, refiro a sobranceria com que as instituições apresentam obras herméticas (daí, e cada vez mais, os artistas enquanto curadores e enquanto críticos do seu próprio trabalho o que faz deles super-homens e subverte a separação que, pelo menos na teoria, deveria existir entre quem produz e quem pensa a arte). Refiro discussões bizantinas como a da liberdade de expressão versus a moral, ou a liberdade de expressão versus a vida humana e/ou a animal. Refiro a falta de profissionais que se dediquem ao seu trabalho em vez de pensarem em glória, posteridade ou mesmo um jantar de borla. Refiro o vazio de ideias do discurso sobre a criação artística, um vazio que envergonha e que se repete sempre a partir da mesma fórmula: 1) citação filosófica, 2) descrição do observado (qualquer um de nós pode fazê-lo), 3) relação à posteriori. Refiro a futilidade associada ao interesse pela arte, em que esta é vista como mais um asset a referir no perfil de uma rede social, como uma mais valia da qual as pessoas se servem e que está ao mesmo nível  da prática de desporto ou a solidariedade. E como veio, na maior parte dos casos irá. Mas já nada será como antes. Em França, por exemplo, discute-se neste momento se o mercado de arte não deveria ser liberalizado; ou seja, se em vez de intermediários, artistas e público se conectassem e assim fizessem negócio. Penso que tendemos para isso. Penso também que não se tem pensado a arte contemporânea a não ser por exemplos muito específicos e não no todo. E isto não é por culpa do chamado Fim da História da Arte. Conforme vemos, a História não morreu. O que anda ligado à máquina é mesmo a Arte.
- não vai mais vinho para essa mesa -

I

















 
II
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

















 





 
 

terça-feira, outubro 17, 2017

- o carteiro -

queria escrever, escrever a sério, mas não tenho tempo... deixo-vos isto


























































 

sábado, outubro 14, 2017

adiantar trabalho

quinta-feira, outubro 12, 2017

Cara Donna

Podes até não concordar que as mulheres vistam outra coisa que não calças Palazzo de linho belga com cardigans caqui de caxemira enquanto passam férias nos campos de golfe de Martha's Vineyard, mas nunca desculpabilizar os abusadores, culpando as vítimas pelo seu gosto. Podes não conceber a ideia de uma mulher usar roupa transparente e decotada, justa e curta, mas tens de defender o direito dela a fazer as suas escolhas sem ser limitada pelo medo do abuso sexual ou da avaliação dos outros. Uma "cena voltariana", conheces? Pois, é isso. Lembra-te, nada justifica o abuso.
- original soundtrack -
- outra vez esta música?
- sim, apetece-me. Mas há mais.


Porque foste em minh'alma
Como um amanhecer
Porque foste o que tinha de ser.
- não vai mais vinho para essa mesa -

não sei porquê, mas estou sempre com os "faróis acesos" no ginásio. faça frio ou calor, lá estão eles, a olhar para mim ao espelho a dizer "estamos aqui e aqui vamos ficar atá acabares os squats."

bem, cada um endurece como pode...
- o carteiro -

nem sempre andamos como hoje. quando falo de "andar" falo mesmo de "caminhar". Nem sempre essa acção foi como é hoje em dia. Não obstante as diferenças de passo, de menear de ancas, de inclinação do tronco que possamos ter, as nossas diferenças nesse campo não são suficientes para dizer que hoje caminhamos de forma diferente de há um século atrás. Mas os homens do século XV podiam dizer que caminhavam de facto de forma diferente dos seus antepassados nos séculos anteriores.

Por mais que custe a acreditar, o homem medieval caminhava como uma espécie de ginasta a deslocar-se para o exercício de solo, ou como uma bailarina a sair de palco. Até ao século XV era a ponta do pé que tocava primeiro no solo e só depois a planta do pé e por fim o calcanhar. Isto tinha uma razão de ser. Ou duas: por um lado o tipo de calçado da época, semelhante em quase todas as geografias e por outro, o tipo de pavimentação das cidades. O calçado, conforme podem ver, assemelhava-se a uma meia de couro, sem estrutura para a planta.
























Bibliothèque de l’Arsenal, Ms-5073 réserve, fol. 230r.

Aliás, na Itália no século XIV, não havia mesmo sapatos, mas somente as meias. Para quê tanto trabalho a calçar as duas coisas? Ora, uma vez que o pé ficava mais vulnerável, havia necessidade de tactear o espaço a pisar. Uma pedra, por exemplo, seria sentida com mais intensidade por um pé pouco protegido, em comparação com um pé protegido. Era pois necessário andar em bicos de pés. Ora andar em bicos de pés, projectar os membros inferiores para a frente, obrigava a equilibrar com os membros superiores, ou com o tronco para trás todo o corpo. É o mesmo princípio subjacente ao uso do Segway: se tudo for para a frente, caímos, se tudo for para trás, caímos. Havia pois um equilíbrio gracioso entre o pé que se antecipa e tacteia e o corpo que se faz quase anunciar pela colocação do pé no chão.

Quando, no século XV as cidades do Renascimento, pensadas para a política, para a arte, para reflectirem o poder fosse ele religioso ou económico, para Ad Majorem Gloriam (não necessariamente de Deus), mudaram, o calçado também mudou. Do sapato sem forma, da meia de couro, passaram a usar-se sapatos com sola. Pouco confortável, no início, feita de madeira, pesada e dura, mas uma sola. Ora a sola foi um alívio para a mente. Não, não estou enganada: a sola foi um alívio para a mente. O que se passava era que o andar em bicos de pés exercitava mais o corpo (os dedos dos pés e os músculos das pernas) e colocava a mente a avaliar constantemente o passo: devo avançar para aqui? devo pisar aquela pedra? vai doer? A sola no sapato veio dissipar essas dúvidas, pois era o calcanhar a assentar primeiro, já protegido e que, assim avança com segurança. Obviamente isso mudou a nossa postura. Pudemos finalmente andar despreocupados, com as costas curvadas e a barriga dilatada, sem medo de cair. Embora muita gente ainda se ponha em bicos de pés, sabe-se lá para quê.
- ars longa, vita brevis -
Hipócrates

antes e depois ou "é isto. E eu que até nem gosto muito de David Lynch, passei a gostar mais (um bocadinho. não é um bocadinho muito grande, mas quem dá o que tem a mais não é obrigado)."
















Edward Hopper
Office at Night
1940
Walker Art Center, Minneapolis

















David Lynch
Twin Peaks - The Return (Epis. 8)
2017
ao experimentar uma peça de roupa no provador da loja senti-me tão nojenta, tão ridícula, tão disforme, que já nem experimentei mais nada.

quarta-feira, outubro 04, 2017

Filipe, por favor, não fales de democracia. Em democracia os cidadãos escolhem os seus representantes. Tu foste escolhido pelo teu pai, por Deus, pela linha de sucessão, por três avé-marias e um "ide em paz e que o Senhor vos acompanhe, amén".

segunda-feira, outubro 02, 2017

- original soundtrack -

a ouvir isto incessantemente


















I've been looking so long at these pictures of you
That I almost believe that they're real
I've been living so long with my pictures of you
That I almost believe that the pictures
Are all I can feel

Remembering you standing quiet in the rain
As I ran to your heart to be near
And we kissed as the sky fell in
Holding you close
How I always held close in your fear
Remembering you running soft through the night
You were bigger and brighter and wider than snow
And screamed at the make-believe
Screamed at the sky
And you finally found all your courage
To let it all go

Remembering you fallen into my arms
Crying for the death of your heart
You were stone white
So delicate
Lost in the cold
You were always so lost in the dark
Remembering you how you used to be
Slow drowned
You were angels
So much more than everything
Hold for the last time then slip away quietly
Open my eyes
But I never see anything

If only I'd thought of the right words
I could have held on to your heart
If only I'd thought of the right words
I wouldn't be breaking apart
All my pictures of you

Looking so long at these pictures of you
But I never hold on to your heart
Looking so long for the words to be true
But always just breaking apart
My pictures of you

There was nothing in the world
That I ever wanted more
Than to feel you deep in my heart
There was nothing in the world
That I ever wanted more
Than to never feel the breaking apart
All my pictures of you

(Pictures of you, The Cure)
- não vai mais vinho para essa mesa -

aquele momento, antes de te deitares, em que colocas perfume. e brincos.
os brincos que havias tirado quando chegaste a casa. 
-ars longa, vita brevis -
Hipócrates

antes e depois ou "um regresso aos tempos áureos". pois é meus amigos... estava a ver revistas de moda antigas (guardo muitas revistas de moda dos anos 90)
[és tão fútil...]
e descobri isto, este antes e depois:
















Paul Gauguin
The Spectre Watches over Her (Manao Tupapau)
1892
Albright-Knox Art Gallery, Buffalo
















Peter Lindbergh para a Harper's Bazaar
1992

Bem, torna-se cada vez mais difícil escrever estes posts pois acabo por repetir-me. Nunca escrevi muito sobre o Gauguin, é verdade, mas o que posso dizer, já toda a gente sabe: pintor francês que viveu a infância na América Central, tornou-se corretor na Bolsa, dedicou-se à pintura nas horas vagas, casou e fez filhos, perdeu o emprego, dedicou-se à pintura, passou mal e deixou tudo para ir para o Taiti pintar. O seu pós-Impressionismo não é o da Europa de Van Gogh e Cézanne. É verdade que como os dois, a temática das suas obras passa pela natureza, mas é exótica, mística, étnica e sensual e quente. Os amarelos de Gauguin são os amarelos do exotismo, do calor, enquanto os de Van Gogh, por exemplo, são os da alucinação, da carga psicológica. Esta é uma das mais importantes pinturas de Gauguin durante a sua passagem pelo Taiti. A inspiração para este/esta Manao Tupapau é dupla: por um lado, trata-se de uma adaptação livre da Olímpia de Manet (a Olímpia de Manet está voltada para cima e esta figura de Gauguin está de barriga para baixo) que Gauguin copiou em 1891 e por outro lado, de uma interpretação do artista das leituras que o mesmo faz do livro Voyages aux Iles de Grand Ocean de Jacques-Antoine Moerenhout, de 1892. Esta obra relata os rituais e costumes polinésios que, no momento em que Gauguin chega ao Taiti, quase tinham desaparecido devido, em grande parte, à colonização ocidental.

Nos anos 90, com as supermodelos (Claudia, Cindy, Helena, Linda, Eva, Naomi), mais polpudas que as modelos heroin-chic dos início do novo milénio, houve um regresso ao glamour. Não é que esse alguma vez tivesse abandonado a moda, mas as supermodelos, como o nome indica, tornaram-se estrelas planetárias, mais importantes do que aquilo que vendiam. Deixaram de ser cabides para passar a ser o produto. As suas vidas eram expostas em capas de revistas e tinham tanto interesse quanto as vidas dos cantores do momento, da realeza, do cinema... A Naomi fazia parte desse rol. Como tantas outras, cruzou a sua actividade profissional com a música ou o cinema (ou a música e o cinema é que se cruzaram com a moda...). Não era aquela que eu mais gostava. Vocês sabem, a Helena é que era a "minha cena", mistura de peruano com sueco, se não estou em erro. Mas a Naomi tinha um senhor rabo: redondo mas atlético. E só por isso, merece o meu apreço. A par das modelos pop, vieram os fotógrafos de moda pop. Ou seja, os fotógrafos de moda tornaram-se mais conhecidos porque o seu nome era divulgado juntamente com a fotografia em que a modelo surgia na campanha. "Isso desde sempre aconteceu", dizem vocês. Sim, é verdade, mas nesta altura, nestes anos 90, a imagem destas mulheres era replicada obsessivamente. O Peter Lindbergh, que eu conheço mais pelas fotografias de nus do que por este tipo de fotografias com referência nas artes plásticas, não era de facto o fotógrafo mais significativo nas fotografias que se aproximam de obras de arte. A Annie Leibovitz, por exemplo, fez isso mais vezes. O Eugénio Recuenco faz muitas mais. O curioso neste ensaio, é que é possível retirar a carga sensual das imagens quando as mesmas são isoladas. Juntas, elas são, não uma homenagem a Gauguin, mas às mulheres como a Naomi Campbell. O que não deixa de ser uma homenagem às mulheres, já que no quadro vemos Tehura, a companheira de Gauguin no Taiti, enquanto na fotografia vemos a deusa do ébano e do mau-feitio, Naomi Campbell.

Beijinhos e não se esqueçam de lavar os dentes.
- o carteiro -

A imagem pode parecer mórbida, mas tendo em conta o nome "Medusa", não podia ser de outra forma. Bem, não vou dizer nada que vocês não tenham já lido por aí. A Medusa era um monstro da mitologia clássica cujo olhar transformava em pedra quem ousasse olhá-la nos olhos. Para matá-la, Perseu teve de usar o seu escudo como espelho para assim não enfrentar o monstro. Bem, também ajudou o capacete que o tornava invisível e as sandálias aladas. Cortou-lhe a cabeça, cujo sangue formou os corais do Mar Vermelho, diz-se. Só uma nota: Perseu teve de matar a Medusa para assim libertar a mãe das garras do rei Polidecto. Pelo menos foi assim que aprendi a história.












Peter Paul Rubens
The Head of Medusa
c. 1617
Kunsthistorisches Museum, Vienna

Perseu era um argonauta; ou seja, embarcou na nau Argo em busca do Velo de Ouro. Ora esta coisa de embarcar numa nau, numa barca, não é apanágio da mitologia clássica. Fê-lo Perseu, fê-lo Ulisses... Às sereias cabe o papel de fazê-los sair de lá. Temos também Caronte... A barca representa, no fim das contas, a passagem. Mas a barca também é algo presente na mitologia nórdica ou até na  pintura do pintor flamengo Bosch que por sua vez terá ido buscar inspiração à literatura e às tradições da Flandres. O louco é o marginal, o alienado, aquele que se comporta fora dos limites do aceitável. E houve de facto, nesta altura, nesta plena Idade Média, uma tendência para alienar os loucos e os doentes mentais da vista daqueles que não o eram. Os loucos eram recolhidos e levados para locais onde a sua loucura era permitida. Isso aconteceu com os leprosos e até, com as pessoas internadas em sanatórios (os sanatórios eram locais relativamente isolados). Na Idade Média a Stultifera Navis era a barca que recolhia todas essas pessoas e que as transportava para locais onde a sua loucura era tolerada, fosse por neles não existirem "não-loucos", fosse por os referidos locais serem geralmente ilhas (A Ilha dos Mortos, de Arnold Bocklin, por exemplo) e daí não existirem vizinhos susceptíveis. O navio dos loucos (título de um livro, também da Idade Média que lista 110 vícios morais e físicos) levava loucos, alienados, alcoólicos e dementes para um local só deles onde esses vícios eram permitidos e cujo nome era, Narragónia. Ora a Narragónia deste livro, é exactamente o País da Cocanha de Brueghel, e a Gozolândia do Brasil; ou seja, esta ideia de que existe um local onde os vícios são permitidos é transversal no tempo e no espaço.

Não será por isso de admirar que é neste epílogo da Idade Média que acontece um dos mais estranhos fenómenos colectivos de que já ouvi falar. Loucos, desde sempre os houve. E isso não era necessariamente mau: vejam-se por exemplo as cortes que não passavam sem o seu séquito de bobos e anões (obviamente os bobos e os anões não eram obrigatoriamente loucos, mas faziam parte daquele conjunto de pessoas que tinham de viver à margem da sociedade, mesmo fazendo parte da corte. É que se o faziam, era para divertirem e não pelas suas qualidades mentais, psicológicas, etc...). Mas sim, de facto os loucos existiam, mas a febre colectiva que tenha levado centenas de pessoas a dançar durante dias até cair para o lado de exaustão, sem motivo aparente, não foi sentido apenas por loucos. Em 1518, em Estrasburgo, cerca de 400 pessoas começaram a dançar até morrerem de exaustão. Tudo começou na semana que antecedeu o Festival dedicado a Maria Madalena que se realizava naquela cidade. Nela, uma mulher conhecida por Frau Troffea iniciou forma voluntária e sem nenhuma razão aparente uma dança que ao fim de um mês já tinha juntado mais de 400 pessoas, sendo que - e uma vez que as mesmas não paravam de dançar - por dia morriam cerca de 15, por exaustão ou por falência cardíaca. O termo usado para descrever este fenómeno - cujo caso aqui descrito não foi um caso isolado na Idade Média, mas é sem dúvida o que melhor documentado está - foi dado por Paracelso. A Dançomania, ou Choreomania, era primeiramente tida como o resultado de práticas médicas erradas e não como fruto da ação do diabo ou da vingança divina. Ao que parece, ao início as pessoas pensavam que Frau Troffea estava a fingir e que a dança era apenas para irritar o marido que detestava dança e ver dançar, mas à medida que a noite avançava e Frau Troffea não parava de dançar, as pessoas começaram a perceber que algo se passava. Pior do que isso, só mesmo a existência de mais pessoas nas mesmas condições, no mesmo "transe" (até hoje não se sabe o que aconteceu para esta dança colectiva e sem um fim que não a morte, ter ocorrido). Podemos dizer que esta dança era uma dança ritual, iniciática, mas mesmo quando isso acontecia na Antiguidade, os participantes ingeriam substâncias que lhes provocavam aquele comportamento. Podemos também dizer que esta dança provinha das danças dos primeiros cristãos que se organizava em círculos e com um padre ao centro. Mas aqui não havia padres nem círculos.
É curioso também observar que o padroeiro dos dançarinos é São Vito. São Vito é igualmente o nome de uma cidade italiana onde Sydenahm escreveu o livro Schedula Monitoria e no qual se aborda a questão da dança de São Vito ou Coreia Reumática de Sydenahm. Trata-se de uma doença neurológica que se expressa nos seus pacientes pelos movimentos espasmódicos e involuntários dos membros superiores e inferiores. Isto, obviamente, não justifica as Dançomanias da Idade Média, uma vez que seria altamente improvável que um grupo de pessoas com esta doença, manifestasse ao mesmo dia, à mesma hora e no mesmo sítio a doença. Para mim, isto é um mistério. 
- o carteiro -

ah... as férias: