quinta-feira, outubro 12, 2017

- o carteiro -

nem sempre andamos como hoje. quando falo de "andar" falo mesmo de "caminhar". Nem sempre essa acção foi como é hoje em dia. Não obstante as diferenças de passo, de menear de ancas, de inclinação do tronco que possamos ter, as nossas diferenças nesse campo não são suficientes para dizer que hoje caminhamos de forma diferente de há um século atrás. Mas os homens do século XV podiam dizer que caminhavam de facto de forma diferente dos seus antepassados nos séculos anteriores.

Por mais que custe a acreditar, o homem medieval caminhava como uma espécie de ginasta a deslocar-se para o exercício de solo, ou como uma bailarina a sair de palco. Até ao século XV era a ponta do pé que tocava primeiro no solo e só depois a planta do pé e por fim o calcanhar. Isto tinha uma razão de ser. Ou duas: por um lado o tipo de calçado da época, semelhante em quase todas as geografias e por outro, o tipo de pavimentação das cidades. O calçado, conforme podem ver, assemelhava-se a uma meia de couro, sem estrutura para a planta.
























Bibliothèque de l’Arsenal, Ms-5073 réserve, fol. 230r.

Aliás, na Itália no século XIV, não havia mesmo sapatos, mas somente as meias. Para quê tanto trabalho a calçar as duas coisas? Ora, uma vez que o pé ficava mais vulnerável, havia necessidade de tactear o espaço a pisar. Uma pedra, por exemplo, seria sentida com mais intensidade por um pé pouco protegido, em comparação com um pé protegido. Era pois necessário andar em bicos de pés. Ora andar em bicos de pés, projectar os membros inferiores para a frente, obrigava a equilibrar com os membros superiores, ou com o tronco para trás todo o corpo. É o mesmo princípio subjacente ao uso do Segway: se tudo for para a frente, caímos, se tudo for para trás, caímos. Havia pois um equilíbrio gracioso entre o pé que se antecipa e tacteia e o corpo que se faz quase anunciar pela colocação do pé no chão.

Quando, no século XV as cidades do Renascimento, pensadas para a política, para a arte, para reflectirem o poder fosse ele religioso ou económico, para Ad Majorem Gloriam (não necessariamente de Deus), mudaram, o calçado também mudou. Do sapato sem forma, da meia de couro, passaram a usar-se sapatos com sola. Pouco confortável, no início, feita de madeira, pesada e dura, mas uma sola. Ora a sola foi um alívio para a mente. Não, não estou enganada: a sola foi um alívio para a mente. O que se passava era que o andar em bicos de pés exercitava mais o corpo (os dedos dos pés e os músculos das pernas) e colocava a mente a avaliar constantemente o passo: devo avançar para aqui? devo pisar aquela pedra? vai doer? A sola no sapato veio dissipar essas dúvidas, pois era o calcanhar a assentar primeiro, já protegido e que, assim avança com segurança. Obviamente isso mudou a nossa postura. Pudemos finalmente andar despreocupados, com as costas curvadas e a barriga dilatada, sem medo de cair. Embora muita gente ainda se ponha em bicos de pés, sabe-se lá para quê.