(continuação)
Tomemos novamente como exemplo o fresco de A Ressurreição de Drusiana. Nele, atrás de São João Evangelista (figura central, de pé e manto laranja), encontra-se uma personagem de joelhos com as mãos cruzadas sobre o peito. Quem é não sabemos, já que não é definitivamente uma figura principal (as figuras mais importantes estão de frente para São João Evangelista e os seus seguidores, ali chegados, estão ainda em pé quando são abordados). Sabe-se no entanto que esta figura, que segundo a Lenda Dourada e os Evangelhos Apócrifos seria Calímaco, apresenta as mãos cruzadas sobre o peito, gesto que está presente em mais obras do pintor. Este gesto não foi uma inovação de Giotto; o mesmo já estava presente em obra anterior a ele. Neste caso o único fundamento bíblico encontra-se em Provérbios 24, 33 (“Um pouco dormirás, outro pouco dormitarás, outro pouco cruzarás as mãos para descansar”). Giotto aplica-o parcamente, mas não em personagens que estão a dormir, como pode ser exemplo o referido Calímaco o fresco de A Ressurreição de Drusiana. Giotto
Scenes from the Life of St John the Evangelist: 2. Raising of Drusiana
1320
Peruzzi Chapel, Santa Croce, Florença
Relativamente aos outros antecedentes, são na sua maioria de natureza funerária, o que, se de alguma forma pode estar ligado ao versículo dos Provérbios, de outra torna ainda mais hermética (e por isso apetecível) a obra de Giotto já que como foi dito ele não a aplica a situações dessa Natureza. Digamos desde já que o gesto é tido como um sinal de fervor natural, muito semelhante a um outro gesto aplicado por Giotto que é talvez menos espontâneo e se caracteriza por apresentar as mãos cruzadas no baixo-ventre. Encontramo-lo no antigo Egipto por exemplo nos sarcófagos que, não obstante guardarem um corpo – que segundo o ritual egípcio, estava depositado com os braços ao longo do corpo – exibiam um aspecto exterior de uma figura humana com os braços cruzados sobre o peito. Isto acontecia pois o antigo Egipto acreditava na vida após a morte, sendo o principal representante desta crença Osíris, o deus egípcio da ressurreição. Osíris é representado com as mãos junto do peito e segurando ali dois objectos que formam um X. Ora esta assumpção de que o homem ressuscita após a sua morte era para os egípcios mais do que isso, era uma crença. O cristianismo fá-lo de uma forma menos incisiva, sem o recurso aos objectos que iriam ajudar o corpo no processo de regresso à vida no óbito.Por isso, não reconhecemos este gesto como sendo egípcio, mas ocidental e cristão, tanto que já por volta do século VI existe referência a ele como gesto paradigmático das cerimónias fúnebres, talvez como forma de recuperação do escrito em Provérbios. De facto as duas situações referem-se a uma ausência de animação, de forma mais ou menos prolongada. Com o aproximar do século XIII, século de Giotto, o gesto surge em Espanha e na Provença, em exemplos que apresentamos em baixo e mesmo após 1300 alguns historiadores de arte barroca definiram esse gesto de fervor com uma palavra: Inbrunstgestus.
Na liturgia este gesto foi adoptado tanto pelos fiéis como pelo celebrante. Quando este último cruzava as mãos sobre o peito estava a reconhecer os seus pecados. Já nos crentes a questão podia ser outra: quando estes reproduziam o gesto nos ofícios litúrgicos tanto podiam a afirmar-se como pecadores como poderiam estar a reproduzir com e no corpo o símbolo de Cristo. Apesar de aparentemente pacífica esta reprodução levantava o problema da mimésis com Cristo o que tornava estes homens inferiores criaturas muito parecidas com o Criador. No mínimo uma blasfémia. Em Giotto este cruzar de mãos aparece poucas vezes, principalmente na referida Ressurreição de Drusiana, na Anunciação (embora nada diga que a Virgem recebeu o anjo ajoelhada e de mãos cruzadas no peito), na Coroação da Virgem (Giotto retratou o movimento que a Virgem faz com as mãos, das mesmas pousadas no colo para o peito) e na Apresentação da Virgem no Templo (a Virgem é aliás quem mais realiza este gesto segundo o pintor). Em todos os casos enunciados, à excepção da Ressurreição de Drusiana, quem cruza os braços não se encontra em reflexão e a expressar a sua humildade. Senão vejamos: a Virgem da Anunciação está voltada para si (parece ter ficado suspensa nas primeiras palavras de Cristo e até, poderíamos acrescentar, um pouco apreensiva. Com as mãos ela protege o seio desse filho que desse seio se vai alimentar); a Virgem da Coroação, ainda que jovem, não está receptiva a Deus, mas antes tímida e a Virgem coroada nem sequer leva a cabo o gesto por completo. Talvez como uma rainha ela já não seja súbdita de ninguém e tenha os seus próprios súbditos. Ainda que pintor dos uniformizados temas sacros, Giotto imprimia nas suas pinturas alguma subversão.
Giotto
No. 8 Scenes from the Life of the Virgin: 2. Presentation of the Virgin in the Temple
1304-06
Cappella Scrovegni (Arena Chapel), Pádua
Giotto
No. 15 Annunciation: The Virgin Receiving the Message
1306
Cappella Scrovegni (Arena Chapel), Pádua
Giotto
Baroncelli Polyptych: Coronation of the Virgin
c. 1334
Baroncelli Chapel, Santa Croce, Florença
Tanto o cruzar de mãos sobre o peito como a junção das mãos junto ao peito em sinal de oração são gestos praticados individualmente. Mas quando duas pessoas estão envolvidas fisicamente num gesto a análise do mesmo tem de ser mais ampla já que na Idade Média o contacto físico era o meio através do qual se expressavam um conjunto de relações entre os intervenientes. Assim, este gesto tinha algo de mágico já que através dele um homem comunicava a outro a sua força interior. Como vemos o aperto de mãos tinha muito significado e se na arte algum outro lhe pode ser comparado, apenas podemos adiantar o olhar nos olhos. Por isso as pequenas variações que são conferidas ao gesto podem originar diferentes interpretações. Giotto também fez uso do aperto de mão que nos seus frescos é transposto para o aperto de pulso, se assim quisermos denominá-lo. Mais uma vez esta opção não é aleatória, já que tem os seus antecedentes. Encontramos o gesto na restitutio romana; ou seja, na iconografia política romana em que a restitutio mostra o imperador a restabelecer a dignidade humana. Representava-se com o imperador de pé a agarrar pelo pulso uma figura ajoelhada: ele representava Roma e o outro interveniente representava alguma província romana resgatada do poder inimigo. Na Antiguidade grega também encontramos este gesto embora talvez com um significado diferente. No contexto legal, tomar alguém pelo pulso era sinónimo de posse (a esposa grega, que vive obviamente na dependência do seu marido está assim in manu mancipioque) e no contexto artístico este tema aparece bastante nas representações de Perseu a salvar Andrómeda. Na arte carolíngia voltamos a encontrar personagens agarradas pelo pulso no Sacramentário Drogo (Biblioteca Nacional de Paris), mais concretamente numa Ascensão de Cristo.
Museu Capitolino
Giotto aplica este gesto também na Ascensão de Cristo, e faz dele uso em pelo menos mais duas obras de carácter semelhante (Descida ao Limbo e Ascensão de São João Evangelista) e de forma menos evidente na Navicella. Conhecendo ou não o modelo romano da restitutio, o facto é que o pintor italiano aplica-o na Navicella embora não no que concerne à proporção das figuras. Aqui estamos perante um fresco menos emotivo, e não obstante o temor que os apóstolos expressam ao serem salvos do barco (Mateus 14, 24-31), Cristo e Pedro (salvador e salvado) apresentam expressões muito estereotipadas e as suas mãos, embora iluminadas, também não são mãos de quem salva e de quem quer ser salvo. Assim, se Pedro é salvo não é pela acção de Cristo de agarrar o pulso, mas simplesmente de tocar. Giotto faz um claro enobrecimento do acto de taumaturgo do Criador. Quebra-o no entanto quando, à semelhança da restitutio romana, coloca Cristo de pé (tal como o imperador) e São Pedro ajoelhado (colónia subjugada) com a mesma estatura. Quer isto dizer que estão ao mesmo nível e aqui sim, Giotto incorre numa blasfémia. Já na Descida ao Limbo Cristo agarra a mão de Adão (segundo a Lenda Dourada) e fá-lo de modo mais evidente pois olha-o nos olhos à semelhança do que acontecia em algumas obras antecessoras de origem oriental. Se desejássemos a provocação total poderíamos dizer que esta não é uma obra ainda mais representativa do gesto pois desconhece-se se Jesus pretende içar Adão ou deixá-lo cair. Na Ascensão de São João Evangelista o gesto de Cristo agarrar o pulso é completamente evidente pois do seu olhar são emitidos raios que formam um triângulo cuja base está no chão. Dentro desse triângulo São João ascende numa diagonal que atravessa o fresco e notamos que não está a descer, mas a ascender pois para além de Cristo esticar para ele a mão direita e agarrá-lo no pulso segundo as normas, dirige-lhe também a esquerda. Para além disso o santo que se encontra ao lado de Cristo também estende a mão e como se tal não fosse suficiente, São João já agarrado por uma mão quase pede para ser agarrado com a outra. Talvez a razão para tal seja a massa pesada que forma o corpo de São João, algo que não acontecia nos exemplos anteriores.
Giotto
Navicella
1305-13
Fabbrica di San Pietro, Roma
Giotto
Descent into Limbo
1320-25
Alte Pinakothek, Munique
Giotto
Scenes from the Life of St John the Evangelist: 3. Ascension of the Evangelist
1320
Peruzzi Chapel, Santa Croce, Florença