domingo, julho 31, 2022

coisas que me têm passado pela cabeça:

"devias ligar"
"não ligas nada. já ligaste duas vezes e ele ignorou-te"
"se calhar ele está a pensar que estás a ignorá-lo e espera que ligues"
"mas não ligues. foi ele quem te procurou. tu não lhe pediste nada"
"mas..."
"vais ligar para quê? Para ele te poder desprezar mais uma vez? Esquece. Além disso se ele quisesse mesmo, ligava"
"ele está ocupado com outras coisas."
"ocupado é uma coisa, desinteressado é outra."
"talvez tenhas feito algo errado."
"não, não fizeste. não te culpabilizes"
"eu devia ligar. mas, e se ele não atender?"
"ouve: ele não pensa em ti, ele não quer saber de ti. tu só lhe interessas quando pode ver em ti a desilusão que te causa, quando pode ver o impacto que tem na tua vida. é só para encher o ego"
"tanto trabalho só para encher o ego?"
"há gente para tudo"
"ele devia dizer-me isso"
"não quer perder o brinquedo"
"o brinquedo..."
"tu és uma pessoa. não te contentes com jogos. arruma o teu coração porque ele não vai ligar mais. nunca mais". 

sexta-feira, julho 01, 2022

- o carteiro -













Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres

quando a minha idade era outra que não esta a minha mãe - que nesse ano fazia 30 anos - foi ao Brasil visitar a madrinha que estava bem na vida, com casa na cidade e no campo. Foi um acontecimento: o meu pai chorou com saudades, eu passei uns dias em casa da minha catequista (o que foi, no mínimo, aterrador) e o meu irmão foi o meu irmão. De lá, a minha mãe trouxe fatos-de-banho super cavados, um fato de ginástica, a Marie Claire decoração e - lembro-me - três discos: A Turma do Balão Mágico, o Samba da Mangueira e o disco de um concerto ao vivo do Roberto Carlos. Ela nunca foi fã, mas acompanhava as coisas del corazón das celebridades brasileiras e o Roberto Carlos vivia nessa altura um romance polémico com a Miriam Rios que era, acho eu, menor de idade quando o conheceu. O gira-discos era novo: uma compra suada dos meus pais (a viagem foi oferta, só para que saibam) que agora descansa, ferido de morte, na prateleira de um guarda-fatos nos arrumos da casa.
Nunca utilizei o fato de ginástica porque eu era muito coquete: o fato era de alças e para mim um fato de ginástica tinha de ter manga comprida, pelo que serviu de fato de banho. Os fatos de banho - um amarelo e outro vermelho - foram a minha vergonha. Porque aos 8 já tinha atributos que não deviam ser para a minha idade, sentia o olhar de reprovação de toda aquela gente da Igreja para quem a minha existência por si só era uma afronta à moral e aos bons costumes.  
A Marie Claire, como diria alguém de cujo nome agora não me recordo, era um tratado, uma catedral e tinha, para além de cenários de telenovelas, uma secção de receitas nas quais se incluía o Rocambole de Café, feito com Leite Moça que eu não percebia o que era. Também não percebia o que era uma colher de sopa de farinha. Sopa de farinha? Mas que sopa é essa? A lata de Leite-Moça tinha uma leiteira como a do Vermeer, mas isso só fiquei a saber muito mais tarde.
A minha mãe também trouxe do Brasil uma camisa de noite cor-de-rosa, muito macia e rendada, com um robe a combinar, tal como na televisão. Era tão macia que escorregava quando tentava dobrá-la. Adorava vesti-la com pérolas falsas que a minha mãe tinha, em forma de cintos (modas!...), e completava o outfit com uma combinação que colocava na cabeça para fazer de conta que tinha cabelo comprido porque a minha mãe não me deixava ter cabelo comprido (medo de piolhos e lêndeas, acho). Às vezes metia aquelas coisas todas dentro de um saco de plástico e vinha cá para fora, para a porta de casa, com o saco traçado entre os braços e claro, os sapatos altos da minha mãe, azuis, em camurça e que haviam sido uma escolha única para o casamento da minha tia. Havia uma carteira a combinar, mas era uma carteira envelope e não dava para tudo.