Anunciação (pormenor)
Cogitatio
Após ouvir as palavras do anjo e mesmo após ouvi-las, Maria fica a pensar. Diz São Lucas: “Ao ouvir estas palavras, ela perturbou-se e inquiria de si própria o que significava tal saudação. Disse-lhe o anjo: «Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus.” (Lc 1, 29-30) Se o anjo diz para Maria não temer era porque via na expressão dela que a Virgem estava confusa, com receio que fosse uma tentação do demónio. Esta é talvez a expressão realizada por Maria, com vista expressar os seus sentimentos, de interpretação mais complexa e talvez até a que tem menos exemplos. A imagem relativa a esta expressão mostra Maria calma, com uma das mãos a segurar a veste e a outra no seu peito, como que a refletir acerca da presença do anjo. Maria não se mostra receosa ou assustada, mas receptiva.
Fig. 6
Francesco del Cossa
Anunciação
1470
Gemäldegalerie, Dresden
Escolhemos uma das imagens mais ricas no que concerne a esta expressão. Trata-se de uma obra de Francesco del Cossa que mostra um espaço que parece ser interior (Maria está entre um corredor de arcadas), mas que é aberto permitindo tanto a entrada do anjo como a visualização da cena de fundo. Aqui podemos ver Maria a receber o anjo que se ajoelha, não frente a ela, mas numa posição que o coloca quase atrás de uma das colunas. O autor usou aqui um artifício que pretendia dar maior profundidade à cena, o que faz com que o anjo fique quase de costas para o observador. Ao fazê-lo, o pintor teve que contornar as leis de perspetiva em favor do efeito que pretendia dar. A Virgem também não se encontra numa posição esclarecedora já que o livro que alegadamente estaria a ler se encontra fechado e pousado sobre uma mesa que na realidade está para trás da coluna. Atrás deste elemento vemos um interior do quarto (reposteiros e mesmo aquilo que parece ser um leito com cobertura encarnada - alusão à magestade e realeza divina, em potência, de que a Virgem era portadora) que por seu lado não tem correspondência com o espaço exterior à esquerda. O anjo fala (tem os dedos erguidos) enquanto a Virgem aponta para si própria como que em considerações várias acerca da presença daquele ser, mas acima de tudo, acerca da mensagem ele lhe leva. O mesmo anjo tem nas asas aquilo que parecem ser penas de pavão, numa provável alusão à ave do paraíso, ave que tinha penugem de cores muito variadas. Um pouco acima do anjo podemos observar Deus-Pai e numa das janelas está presente uma figura feminina. Também não podemos esquecer a presença simbólica do caracol na pintura. O pintor coloca este animal em primeiro plano, o que quer dizer que a sua presença não é indiferente nem seria um capriccio de Francesco del Cossa. Na época em que o quadro foi pintado, acreditava-se que os caracóis eram fecundados pelo orvalho. (De facto os caracóis são conhecidos por saírem da sua concha quando chove. Ora, desta forma o caracol pode estar relacionado com a Virgem cuja concepção de Jesus Cristo é muitas vezes comparada à fecundação da terra pela chuva. Comprova-o o Livro de Isaías: “Destilai, ó céus, lá das alturas o orvalho…” ("Rorate coeli desuper". Is 45, 8). Esta expressão é usada na liturgia católica e protestante nos ofícios do Advento. Daí a ligação à Anunciação. Igualmente importante, embora muitas vezes mal entendida, é a presença da decoração e respetivo significado. Tanto os capitéis como as bases das colunas parecem ter o mesmo motivo floral que iremos encontrar mais tarde na Anunciação pintada por Baldovinetti. Note-se que também na Anunciação, mas desta feita de Leonardo da Vinci, estes motivos decorativos estão presentes, tornando-se assim denominador comum entre as diferentes pinturas alusivas à Anunciação.
Fig. 7
Francesco del Cossa
Anunciação (pormenor)
Fig. 8
Francesco del Cossa
Anunciação (pormenor)
Em termos de análise artística a obra apresenta grande equilíbrio nas cores, na luz, nos elementos simbólicos e até nas linhas de fuga. Quanto a este aspecto podemos dizer que sobre a coluna central, coluna esta que separa os espaços (secular de sagrado), e na direção do cotovelo do anjo existe um ponto de fuga (na nossa opinião o único) para onde são chamadas todas as linhas, principalmente as das lajes e a do intradorso do arco. Apresentamos na imagem esse ponto de fuga, bem como três ensaios que colocam o centro geométrico da pintura muito perto do centro simbólico da mesma. Estes ensaios pretendiam avaliar o centro geométrico no que diz respeito aos limites da obra: se considerarmos os limites físicos (a encarnado), abaixo da arquitrave (a azul) e abaixo do friso (a amarelo). A luz é uniforme e ilumina de igual forma todo o ambiente que, como dissemos, não se percebe se é interior ou exterior. Apesar de, pela sombra do anjo, podermos indicar que a luz se aproxima da esquerda para a direita; no caso da Virgem que quase não tem sombra, a direção já não parece ser a mesma. No que concerne às cores, nota-se dizer que todo o ambiente respeitante ao lado direito da obra tem-nas mais vivas, enquanto o lado esquerdo, ainda que banhado pela luz, mostra o negro da veste do anjo como bastante sombrio, quase que para equilibrar a composição.
Fig. 9
Francesco del Cossa
Anunciação (pormenor)
Interrogatio
Depois do anjo dizer a Maria que ela seria a mãe de Jesus, ela interroga-o: “Maria disse ao anjo: «Como será isso, se eu não conheço homem?»” (Lc 1, 34). Enquanto no estado espiritual anterior o anjo fala, aqui é ela quem faz uso da palavra, razão pela qual a sua atitude é mais interventiva. Na Anunciação a Virgem fala apenas duas vezes: uma delas é esta, a outra é para confirmar a sua aceitação da honra dada por Deus-Pai. Quando aceita a presença de Jesus em si, Maria cruza as mãos no peito, o que nos leva a pensar que, quando temos uma representação em que o anjo escuta e Maria fala, as suas mãos não se encontram sobre o peito, mas de forma mais activa. Estamos também por isso perante um exemplo da interrogatio.
Fig. 10
Alessio Baldovinetti
Annciação
1447
Galleria degli Uffizi, Florença
Para ilustrar esse sentimento escolhemos o quadro de Alessio Baldovinetti. Nele, é o anjo que cruza os braços em sinal de atenção, atenção ao que está a ouvir. A Virgem faz um gesto com uma das mãos que pode querer dizer para o anjo aguardar enquanto ela elabora a sua compreensão do que lhe foi dito, bem como um discurso coerente com o que pensa. Baldovinetti é herdeiro da tradição florentina (podemos ver nele um pouco de Botticelli), mas faz aplicação de pequenos detalhes. Note-se a decoração do ambão bastante alto – como a Virgem cuja parte inferior do corpo é alongada -, o pormenor do livro, e o chão que não tem o tradicional pavimento em lajes, mas sim em pedra colorida. A noção de perspectiva fica assim confinada a poucos elementos, como as duas colunas e a porta. Existe igualmente um outro pormenor que devemos apontar. Em todas ou quase todas as anunciações, e nesta e especial temos como enquadramento um jardim. Neste caso o jardim está para lá da parede, mas por isso mesmo, está também limitado por ela. Poderá ser, como avançam alguns autores, uma alusão ao hortus conclusus. Hortus conclusus é uma expressão existente no Cântico dos Cânticos (Ct 4; 12): “És um jardim fechado, minha irmã e minha esposa, um jardim fechado, uma fonte selada.” O hortus conclusus, o “jardim fechado” a que esta expressão remete, estabelece forte relação com a própria virgindade de Maria que permaneceu casta antes, durante e após a conceção. Relativamente aos aspetos artísticos, à perspetiva, por exemplo, é bastante difícil de estudar o quadro. Na figura podemos ver como as linhas de fuga dos diversos elementos (ambão, degraus) formam apenas um grupo coeso: encontra-se um pouco abaixo do centro da pintura, assinalado a encarnado. Outros pontos não são consensuais, mas presumimos que o pintor intentava colocar a linha que passa pelo degrau do lado esquerdo a desaguar no centro geométrico da pintura, numa perspetiva que seria muito audaciosa, mas permitiria obter linhas de fuga dos caixotões mais coerentes. As linhas de força deste quadro são também de duas naturezas. Por um lado há-as horizontais e verticais, realizadas mais pelos elementos arquitetónicos. Por outro porém, o autor introduziu algumas linhas oblíquas que fazem com que o quadro não seja tão hierático e que expresse mesmo uma atitude dos intervenienetes. Sem as referidas linhas oblíquas a composição poderia quase ser dividida em duas metades. A luz é uniforme, a composição fechada e as cores sobressaem por uma certa tradição florentina, que como referimos, era a do pintor. São vivas e contrastantes e as quantidades de azul e encarnado, embora não sendo na mesma proporção, equilibram a composição, principalmente quando aplicadas nos arcos.
Fig.11
Alessio Baldovinetti
Anunciação (estudo)
Fig. 12
Alessio Baldovinetti
Anunciação (estudo)
Humiliatio
Após o anjo revelar a Maria como irá ser concebido o filho de Deus, ela responde: “Maria disse, então: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.»” (Lc 1, 38) (Ecce ancilla Domini ) Michel Baxandall refere que a Virgem ao pronunciar estas palavras, ajoelha-se, cruza as mãos sobre o peito e inclina levemente a cabeça para baixo. Para além disso as palavras de Maria encontram-se muitas vezes na própria obra, como que a reforçar os gestos, não deixando assim margem para dúvidas quanto ao sentimento em questão. A cena pode ser retratada num espaço despojado, como era despojado de interesse material, o coração da Virgem.
Fig. 13
Petrus Christus
Anunciação
1452
Groeninge Museum, Bruges
Na obra escolhida para ilustrar estes gestos (de Petrus Christus), vemos Maria e o anjo em primeiro plano, numa arquitetura duplamente aberta: nas costas de Maria, por uma porta que deixa ver o espaço exterior e frente ao observador, sendo que o arco é a charneira entre o mundo das personagens e o mundo dos observadores. Em baixo, no degrau, é possível observar a inscrição que confirma a autoria da obra: “Petrus Christus fez-me em 1452”. Lembremo-nos que também Van Eyck usou este artifício no quadro “O retrato dos Arnolfini”. As semelhanças entre esta Anunciação e as de artistas coetâneos de Petrus Christus são notórias, principalmente em relação a Dieric Bouts. O arco por exemplo encontra-se decorado com esculturas simuladas que retratam quatro cenas da vida de Maria, da esquerda para a direita. São elas: anúncio do anjo a São Joaquim e a Santa Ana, encontro de São Joaquim e Santa Ana na porta dourada do Templo de Jerusalém, nascimento de Maria e a Virgem a ser apresentada no templo. Assim sendo, os antecedentes para a conceção de Cristo ficavam completos com a própria Anunciação e com o que acontece nos nichos junto ao arco. De cada um dos lados do arco encontram-se duas estátutas também simuladas que, pensamos, se referem por um lado a Isaías: “Por isso, o Senhor, por sua con--ta e risco,vos dará um sinal. Olhai: a jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há-de pôr-lhe o nome de Ema-nuel.” (Is 7, 14). Do outro lado encontra-se Jeremias que anuncia a vinda do Senhor: “Dias virão em que firmarei uma nova aliança com a casa de Israel e a casa de Judá – oráculo do Senhor.” (Jr 31, 31). Dieric Bouts apresenta por seu lado, no nicho, cenas do Antigo Testamento como a Criação do Homem, e a Expulsão do Paraíso. Existe também nesta obra de Petrus Christus, no vitral ao fundo, um medalhão com, segundo nos parece, Jesus Cristo, Maria e Deus-Pai. Trata-se de uma representação da Santíssima Trintade na Coroação da Virgem, pois é de facto o que acontece. Temos então Cristo e Deus a elevar sobre a cabeça de Maria uma coroa e nesse ponto também podemos observar aquilo que parece ser a pomba do Espírito Santo.
Fig. 14
Petrus Christus
Anunciação (pormenor)
O anjo chega no momento em que a Virgem está a ler, algo que tem relação com o escrito nos textos apócrifos, mas não com a Bíblia, já que esta nada refere acerca disto. Maria, cruza servilmente os braços sobre o peito e inclina levemente a cabeça como que a anunir com o desejado por Deus, embora tímida e, parece-nos, muito grata pela honra concedida. A sua posição é ambígua já que a cabeça se inclina na direção do anjo, mas o corpo tem uma torção para a direita e está simultaneamente voltado para nós. O seu olhar parece vaguear num espaço a que não temos acesso. Apesar do anjo ter um dedo erguido, não se encontra propriamente a falar. Destacamos também a presença da pomba do Espírito Santo sobre a cabeça Destaca-se neste quadro a extraordinária noção de perspetiva e cuidado matemático de que Petrus Christus o dota. Notamos nas linhas de fuga (do pavimento e das janelas) que confluem para um ponto junto ao ceptro do anjo. Para além disso, a janela ao fundo assenta num rectângulo de ouro, sendo que os seus cantos inferiores se encontram sobre as linhas de fuga que correm das janelas laterais. A composição de Maria, simbolizando o momento a partir do qual Jesus se encontrava no seu ventre. Para corroborar isto, entre Maria e o anjo as sempre presentes açucenas que, como sabemos, são o símbolo da Anunciação. é assimétrica e fechada, não obstante o espaço exterior que vemos através da porta. Relativamente ao estudo geométrico da obra, este revelou-se uma surpresa muito positiva. Vemos (em linhas encarnadas) como a janela de fundo asse nta completamente num rectângulo de ouro e como o centro da circunferência que lhe dá origem passa pelo ponto de fuga do quadro. Mas por outro lado, aumentando o rectângulo de ouro, observamos que o quadrado que lhe dá origem também assenta completamente na janela, sendo que a sua divisão a meio coincide com a divisão central da janela. O lado superior deste rectângulo de ouro (a branco) recebe igualmente um dos lados de um triângulo de ouro que também é formado pelas linhas de fuga das janelas laterais. O triângulo é perfeitamente isósceles. A Anunciação que Petrus Christus fez foi realizada como sendo quase um eco do significado da Anunciação a Maria, já que tudo foi programado e calculado num reavivar de uma certa geometria pois só assim seria possível compreender as Sagradas Escrituras, tal como tinha referido Santo Agostinho.
Fig. 16
Petrus Christus
Anunciação (estudo)
Meritatio
A Virgem, tímida mostra o seu agradecimento e reconhecimento, embora este primeiro capítulo do evangelho de São Lucas não nos diga nada nesse sentido: “E o anjo retirou-se de junto dela.” (Lc 1, 38). No entanto, e não obstante a ausência de dados, é de crer que a Virgem tivesse ficado pensativa e até um pouco orgulhosa de si, por Deus a ter considerado a mulher indicada para ser mãe do salvador, já que esta notícia e a forma como tinha sido transmitida era tudo menos ortodoxa. De facto, no segundo capítulo, encontramos algo que, embora não se remeta a este momento imediatamente após a Anunciação, nos deixa pistas para o estado de espírito de Maria aquando da mesma: “Quanto a Maria, conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração.” (Lc 2, 19). Baxandall considerou por isso mais este momento espiritual que se caracteriza, na maior parte das vezes por mostrar a Virgem sozinha, quase esquecida de si, como é um bom exemplo o quadro de Antonello da Messina.
Fig. 17
Antonello da Messina
Anunciação
1473
Alta Pinacoteca, Munique
Maria aceita, a decisão foi tomada e o anjo ausenta-se. No entanto Maria não está sozinha: tem em si outro, renunciando e denunciando desta forma ao egoísmo do mundo. Dentro dela, Deus deixou-se como um Logos vivo e também, graças a ela e através da incarnação, o ser eterno e absoluto tornou-se contingente e relativo, pronto para a experiência – e Paixão – da sua própria criação.
Fig. 17
Antonello da Messina
Anunciação (pormenor)
Fig. 18
Antonello da Messina
Anunciação (pormenor)