- o carteiro -
No princípio não era o Verbo. No princípio era o ecrã de televisão parado, com um conjunto de riscos coloridos em contagem para a abertura da emissão. No nosso princípio, no princípio de uma sociedade sem grandes princípios, a televisão marca o ritmo dos acontecimentos. Mas não nos fiquemos por aqui pois também no princípio o autor e ator se apresenta: ele é Tales Frey a interpretar Tales Frey. Mas não é por habitar essa personagem, como numa consubstanciação, que se torna mais fácil para Tales interpretar Tales. O autor principia com os avisos iniciais – 5 avisos, bem explicados, como bem aberta está a sua mão – tal como numa liturgia. Aqui, esteTe Deum é para glória de Tales Frey, que durante a sua performance alcança o estado quase virginal (como podemos ver quando se despe, qual Adão antes do pecado).
Após os avisos, ditados de cima de um banco, como o clero no púlpito, Tales começa por nos mostrar cada um dos cinco episódios, intercalando-os com uma pequena coreografia que tem muito em comum com a de Jan Fabre (My movements are alonelike street dogs), mas que, aplicada como introdutória para cada um dos episódios, tem algo também de obsessivo compulsivo, algo de extremamente doentio. Aos poucos percebemos que Tales se vai transformando num exemplar canino. E porquê o cão? O cão está presente em todos os episódios. Ele atinge o grau de Adão, mas logo em seguida entra na zona diametralmente oposta à do Homem na escala da evolução. O cão é a posição que ele ocupa do outro lado da escala. Já nas histórias que conta, todas relacionadas com cães – autobiográficas ou não – Tales Frey passa de uma posição de comiseração e carinho para com os diferentes cães que as habitam, para uma atitude impiedosa.
Quando nu, Tales-cão que não esquece a sua origem humana, corre a vestir-se, mas demasiado tarde, já que incorpora parte da natureza canina. Não se choca por isso com a passagem, vezes sem conta, do célebre episódio de Um cão andaluz de Buñuel. No espetáculo Espasmos Caninos que teve lugar no Porto, no dia 25 de março no Tômbola Show, realizado no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, o público não pareceu particularmente incomodado com a imagem do corte de olho que o filme tornou célebre. Note-se que este olho não era, no filme, um olho humano. Era o olho de um animal. E neste processo de transformação, que passa pelo dono do cão (Tales Frey) vestir e calçar a pele do cão, apercebemo-nos da referência concreta a Deleuze. O público passa então a entreter e alimentar este cão com um alimento-objeto que o agora cão tenta acumular e transportar como um cão treinado. Acontece porém que os cães treinados, quando aliciados com dois objetos, não tentam devolvê-los ao mesmo tempo, numa só viagem. Mas este cão que ainda é homem, que vive as duas naturezas, tenta fazê-lo em vão. Num último estertor, e numa alusão ao Último Tango em Paris, opta por tentar transportar o objeto dentro das calças. Note-se que os objetos em questão são pacotes de manteiga.
Na apresentação que teve lugar no Porto, a interação com o público foi constante e por vezes até desarmante já que o público riu quando das histórias mais pungentes de cães mortos. Estaremos nós, como Tales Frey, em transformação canina? Se sim, uma nova liturgia se irá erguer: a liturgia que nos permite amar um animal como se fosse da nossa natureza, mas nos enclausura numa espécie de amor incondicional que não obtemos dos outros.
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