segunda-feira, janeiro 28, 2013

- o carteiro -

Judite a decapitar Holofernes vs A cegueira de Sansão


A Judite e Holofernes de Caravaggio - executada provavelmente pouco antes de 1600 – foi uma das primeiras em que ele se aventurou a representar esta narrativa de forma desenvolvida. O tema da Judite foi sempre popular na arte italiana, mas Caravaggio escolheu representar a parte mais horrível da história da bela viúva judia, Judite, que juntamente com a aia entrou no campo do exército assírio que tinha sitiado a sua terra natal na Betúlia. Usando o seu charme[1], vestida para “seduzir os olhos dos homens” (Jdt 10: 4), e contando aos soldados de Holofernes uma pequena mentira, conquistou as atenções e confiança dos homens de Holofernes e dele próprio.[2] Holofernes convida Judite para jantar com ele na sua tenda com o propósito de seduzi-la. Ele próprio havia dito ao seu servo: “Para nós, seria uma vergonha deixar de lado uma mulher como ela, sem ter tido relações com ela. Se não a atrairmos, ela rir-se-á de nós” (Jdt 12: 12). De acordo com o livro de Judite, ela foi deixada na tenda com Holofernes enquanto este se encontrava deitado na cama devido ao excesso de vinho: para ele era servido vinho. Judite disse à sua serva que fi­casse fora do quarto e que obser­vasse o caminho de saída, como habi­tual­mente, já que teriam de sair as duas para rezar. Judite pediu a Deus forças para levar a cabo aquela missão, pegou na espada, avançou para a cabeceira da cama de Holofernes, agarrou-o pelos cabelos golpeou-o no pescoço duas vezes com toda a sua força e cortou-lhe a cabeça (Jdt 13: 2-8). Colocou então a cabeça num saco que a criada tinha e regressou triunfante com ela para Betúlia. Quando viram o corpo mutilado do general e a sua cabeça pendurada no ponto mais alto da cidade, os assírios levantaram o cerco e foram embora. 















Caravaggio
Judite a decapitar Holofernes
1598
Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma


Enquanto o tema de Caravaggio reflete sobre a ação heroica de uma mulher em nome da salvação do seu povo, no grande e ambicioso trabalho de Rembrandt, do mais intenso e experimental período da sua carreira (por volta de 1630) o que está em relevo é a fragilidade sexual da vítima feminina como cena central. O herói bíblico Sansão foi dotado por Deus com poderes sobrenaturais e força excecional. A sua paixão pela bela, mas perversa Dalila levou-o a afastar-se porém do caminho da virtude. Quando a audaciosa mulher descobriu o segredo da invencibilidade de Sansão, que estava no cabelo por cortar, contou-o aos filisteus a troco de dinheiro. Nessa noite “ela adormeceu Sansão so­bre os seus joelhos, chamou um ho­mem que lhe rapou as sete tranças da sua cabeleira; foi então que ele começou a ficar debilitado, e a sua força o abandonou. Ela disse-lhe: «Sansão, vêm con­tra ti os filisteus!» Ele despertou do sono e disse con­sigo mesmo: «Sair-me-ei bem como das outras vezes!» Mas igno­rava que o Senhor se havia retirado dele. Os filisteus amarraram-no, ar­ran­­ca­­ram-lhe os olhos e levaram-no a Gaza, ligado com uma dupla cadeia de bronze; meteram-no na pri­são e puseram-no a girar a mó.” (Jz 16: 18-21). O mais imediato, porém chocante, aspeto das duas obras está no gosto quase palpável do autor por esta representação da violência física. Tanto Caravaggio como Rembrandt enfatizam a dor do protagonista masculino reforçando a intensidade pelas formas diferentes em que eles mostram as reações dos perpetradores, dos que olham e das vítimas. Dentro da tradição artística italiana, a expressão destas emoções (conhecidas por affetti) está intimamente ligada ao estudo das figuras da vida. A impressionante representação de Caravaggio é encenada através dos espasmos mortais de Holofernes que, com os olhos abertos e boca num grito mudo, uiva contra o seu destino A cena é claramente destinada a perturbar o espectador através da atualidade dura e através da natureza estática da composição. Sem definir com precisão o espaço negro para além da boca de cena, Caravaggio posiciona as suas figuras perto do plano da pintura e o formato horizontal permite-lhe seguir o texto descrevendo a aproximação de Judite à cama de Holofernes. Depois congela a ação, fixando a narrativa no seu momento mais aterrorizador.[3] É com uma mistura de nojo e relutância que Judite dá a estocada final: o seu corpo inclina-se ligeiramente para trás como se ela estivesse a puxá-lo e ao mesmo tempo, a tentar não se sujar, não sujar a sua imaculada blusa branca enquadrada pelo corpete de onde despontam os seios, numa transparência muito mais sugestiva para a cena, do que por ventura, o nu. É que, se ela se nos mostra assim, neste momento em que corta a cabeça de Holofernes, tudo sugere que também surgiu com esta transparência ao general. Caravaggio pinta mesmo Holofernes de tronco nu quando o episódio diz apenas que Holofernes havia bebido demasiado e se encontrava reclinado na cama. A cortina vermelha e a velha aia (com ares de alcoviteira) dão-nos a ideia de estarmos dentro de um prostíbulo.[4] Além disso, o sangue do pescoço de Holofernes que cai para o lençol branco, contrasta com a pureza do mesmo e com a pureza do corpete de Judite que, poderá ter hipotecado o seu corpo para serventia do general, mas mantém uma integridade moral que nenhuma transparência coloca em causa. Caravaggio não pinta aqui Judite, obviamente, como uma virgem. Mas a verdade é que também não acentua a sua condição de viúva. Ela surge-nos – e perante Holofernes – como uma sedutora: sem qualquer pejo, mas com todo o enigma, o que a torna mais apetecível. O olhar impassível da aia cuja face enrugada e boca, possivelmente, desdentada, contrasta com a jovialidade da sua senhora e reforça o poder erótico que Caravaggio traz para a cena. O contraste acentuado entre os traços faciais é algo que Caravaggio explorou na sua carreira e pode estar relacionado com os escritos do seu contemporâneo e compatriota lombardo Gregorio Comanini que recomenda aos pintores que confrontem tipos contrastantes nas suas pinturas. Mas, mais do que os traços, é a presença da aia enquanto voyeur que contribui para a inquietação do observador.[5]




















Caravaggio
Judite a decapitar Holofernes (pormenor)




 Caravaggio
Judite a decapitar Holofernes (pormenor)

No Sansão de Rembrandt – que estabelece um paralelo com Holofernes – o tumulto caótico das figuras em queda domina a composição. No primeiro plano os filisteus subjugam o herói, atirando-o para o fundo e obrigando-o a lutar como um animal. A dor causada pela lesão no olho – mostrada com crueldade – é ainda expressada pela torção exagerada do seu corpo, a perna levantada e, acima de tudo, a forma como contrai o pé fazendo com que os seus dedos se curvem e que é a maior expressão da dor neste quadro. O realismo enérgico deste detalhe vai para além dos gestos do Holofernes de Caravaggio. Entre a massa dos que o atacam, o corpo de Sansão de bruços tem afinidades claras com uma gravura de Cornelis Cort (cópia de Ticiano). Os paralelos entre esta figura mitológica – que simboliza o tormento da paixão carnal, pela qual ele tem de ser punido – e Sansão – igualmente vítima da sua luxúria desenfreada – eram sem dúvida conhecidos de Rembrandt e dos seus contemporâneos. No Wtleggingh op den Metamorphosis, publicado em Haarlem em 1604, Karel van Mander escreve: “Others wish to proclaim with this great Tityus that no human power, however great, can prevail against divine justice without the transgressor being punished for the transgression”[6]. Ao emprestar a pose de Prometeu a Sansão, Rembrandt está também a fazer uso dos seus significados iconográficos e associações. Se de facto Rembrandt fez esta obra como presente para o seu protetor (o grande humanista e homem das letras Constantijn Huygens) como é aceite, seria compreensível que fizesse uma aplicação maior de associações literárias e visuais, do que em outras obras.[7]















Rembrandt
A cegueira de Sansão
1636
Städelsches Kunstinstitut, Frankfurt



Nas duas pinturas os artistas usaram a luz para enfatizar o drama inerente à atrocidade. Assim Caravaggio coloca as suas figuras contra um fundo sóbrio e iluminado por uma luz invisível e artificial que ilumina a partir do espaço exterior ao campo da pintura. O contraste forte de luz e sombra que define a musculatura do tronco de Holofernes evidencia os rostos de Judite e da sua criada, enquanto elas se concentram no ato sangrento, somado à atmosfera de profanação. À exceção das zonas brancas da cama e da blusa de Judite, as únicas cores fortes são o vermelho brilhante e escuro da cortina e de tom igual ao do sangue que jorra do pescoço de Holofernes. Ao confinar o espaço e focalizar a luz desta forma, Caravaggio engrossa a atmosfera para enfatizar o horror. Rembrandt no seu Sansão vai mais longe usando o contraste entre a luz de fundo à esquerda e o espaço negro no primeiro plano como uma metáfora para o destino de Sansão. O herói cai, figurativa e literariamente, da luz para as trevas nas quais ele deve viver cegamente doravante. A visão, que lhe permitiu ver Dalila, foi-lhe tirada para sempre. Tradicionalmente, tanto Judite como Dalila são consideradas exemplos da malícia feminina, simbolizando mulheres belas que originam a queda de homens poderosos através da astúcia e do engano. Ao contrário de Dalila no entanto, Judite é também incluída no panteão de heróis e heroínas do Antigo Testamento. A sua popularidade baseou-se no exemplo de mulher corajosa, casta e temente a Deus que, apesar de usar o seu charme para seduzir Holofernes, não partilhou a cama com ele. A sua energia e castidade (pudicitia) triunfam sobre a luxúria (libido) de Holofernes, algo que Caravaggio transmite subtilmente através da distância que Judite mantém da sua vítima.[8] Os seus braços estão esticados como que a expressar a repugnância e aquilo que ela se sente obrigada a fazer. Rembrandt por seu lado não nos deixa dúvidas quanto à infâmia de Dalila mostrando-a com tesouras na mão, a segurar as madeixas à luz e triunfante quanto à degradação dele.[9] Antes de Caravaggio não se conheciam representações do momento da decapitação nem na tradição italiana, nem na tradição flamenga. O que se conhecia era Judite triunfante com a cabeça do general na mão e acompanhada pela criada.













Rembrandt
A cegueira de Sansão (pormenor)


 O tema de Judite a degolar Holofernes prende-se com um outro também bíblico: o de Salomé a reclamar a cabeça de São João Batista que lhe foi apresentada numa bandeja. Um quadro de Francesco Maffei alerta-nos para esta ligação, já que nele se juntam os dois temas. Observamos assim que nessa pintura está representada uma mulher com uma espada na mão direita e uma bandeja com uma cabeça masculina, na esquerda. Se se tratar de Judite, não faz sentido a presença da bandeja pois Judite decapitou Holofernes, colocou a cabeça num saco e daí voltou para junto do seu povo. Por outro lado, se esta mulher for Salomé, a espada não tem razão de ser já que Salomé pediu a cabeça de São João Baptista numa bandeja, mas não o matou.[10]

Dentro dos seus contextos específicos do quadro de Caravaggio (Judite e Holofernes) e o de Rembrandt (A cegueira de Sansão) são ambos obras de grande inovação, focando sem precedentes, não apenas os atos de violência física, mas também implicando as suas consequências morais. Apesar de ambos os temas terem atrás de si uma longa tradição pictórica, o retrato do momento mais cruel foi quase sempre evitado. Isto acontece especialmente no caso de A cegueira de Sansão, onde a perfuração dos olhos do herói nunca tinha sido anteriormente retratada. O quadro de Caravaggio teve um efeito imediato e gozou de enorme popularidade, gerando muitas cópias, adaptações e versões entre os seus seguidores. A escolha de Rembrandt quanto ao momento da cegueira, por seu lado, permanece quase única. 


















Rembrandt
A cegueira de Sansão(pormenor)



[1] Judite fez aquilo que Ovídio dizia na sua Arte de Amar: “Lavou o seu corpo com água e ungiu-se com um óleo espesso e perfumado”; “penteou o cabelo”; “colocou uma tiara e vestiu as suas roupas de festa”; “Calçou sandálias nos pés, enfeitou-se com colares, pulseiras, anéis, brincos, e outros adornos” (Jd 10: 3-4) 
[2] Note-se que aqui as escrituras introduzem um ponto curioso: a beleza como forma de conquistar o mundo. (Jdt 10: 19) Primeiro ressaltam-lhe a beleza e só depois a sabedoria, como aparece por três vezes no capítulo 10, entre os versículos 20 a 23. 
[3] VVAA – Rembrandt Caravaggio. Amesterdão: Waanders Rijksmuseum, 2006, pág. 59 
[4] Em Jdt 15: 9 lê-se o seguinte, logo após Judite ter degolado Holofernes: “fez rebolar o corpo na cama, retirou o cortinado do dossel das colunas e, passados alguns momentos, saiu e entregou a cabeça de Holofernes à sua serva,”. Ora neste livro de Judite o cortinado não volta a aparecer, nem parece ter tido utilidade alguma para Judite transportar a cabeça. O mesmo não acontece no quadro de Caravaggio onde o cortinado tem papel fundamental. Mais uma vez nos socorremos da Sagrada Escritura: relativamente à cama de Holofernes é dito que estava “rodeada por um cortinado de dossel feito de púrpura, ouro, esmeraldas e pedras preciosas” (Jdt 10: 21). Caravaggio não pinta um cortinado púrpura, mas encarnado escuro, como se este cortinado tivesse eco no vinho de Holofernes. Ao pintá-lo desta cor, que não é declaradamente vermelho, nem se confundo com o fundo, Caravaggio deixa-nos indecisos entre afirmar que se trata do cenário normal para os aposentos de um general e dizer que se trata de uma decoração ousada e sugestiva. De qualquer forma, a ausência do cortinado criaria um vazio e um desequilíbrio naquela zona que Caravaggio procurou, obviamente, debelar. 
[5] Nas várias representações de Danae fecundada pela chuva de ouro, surge ao lado uma criada, algo que contribui ainda mais para a languidez da princesa. Exemplos: Ticiano, Artemisia Gentileschi, Tintoretto 
[6] Outros proclamam que, como Prometeu, nenhum poder humano, por maior que seja, pode prevalecer contra a justiça divina sem que o transgressor seja punido pela transgressão. VVAA – Rembrandt Caravaggio. Amesterdão: Waanders Rijksmuseum, 2006, pág. 60 
[7] VVAA – Rembrandt Caravaggio. Amesterdão: Waanders Rijksmuseum, 2006, pág. 60 
[8] VVAA – Rembrandt Caravaggio. Amesterdão: Waanders Rijksmuseum, 2006, pág. 61 
[9] Nas escrituras não é Judite que corta o cabelo de Sansão, nem é sequer cortada uma madeixa. É um homem que entra no local onde o herói se encontra a dormir e lhe rapa as sete tranças. (Jz 16: 19) 
[10] PANOFSKY, Erwin – Estudos de Iconologia. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, pág. 25