quinta-feira, outubro 15, 2009

- o carteiro -
Quando um não quer, dois não pecam – Procriação IV
Após os progenitores terem feito “aquilo que Deus mandou”, mesmo aqueles que fizeram de uma forma que Deus desconhecia ou antes do tempo ordenado por Ele, vinha a gravidez. Na Antiguidade a gravidez era vista como uma expressão da Natureza: tal como a Terra guardava a semente e expulsava-a em forma de flor ou de fruto chegada a altura, as mulheres incubavam o ser durante nove meses. Para os gregos e romanos a presença de deusas (como Artémis/Diana) ajudavam a proteger o embrião e a afastar os maus espíritos (Lembram-se de termos falado de Litith) embora com o tempo – por volta do século IV-V a.C. o racionalismo de Hipócrates tenha colocado freio ao delírio que rodeava os tempos de incubação. Mas apesar de a gravidez ser algo natural e que deveria seguir o seu curso normal, a gravidez podia ser diagnosticada. Hipócrates, que podia ter boas máximas, mas não me parecia ser grande médico, apoiava o teste do alho na vagina que consistia em introduzir um alho húmido na vagina de uma mulher e deixá-la com o “tempero” toda a noite. Se pela manhã o cheiro a alho for expelido do corpo da mulher pela boca ou pelo nariz, a mulher estava grávida. Se nada acontecesse, a mulher não estava grávida. Outro método prescrito pelo médico grego para conhecer o estado da paciente era dar a beber à mulher uma mistura de água e mel. Se a senhora tivesse qualquer reacção na zona do ventre, então estaria grávida.
Nos conturbados, mas não obscuros tempos da Idade Média, a gravidez dentro do âmbito marital, respondendo às predisposições divinas, e fruto do respeito conferido pelo lençol que intermediava os corpos com a sua concuspicênciazinha na pequena abertura estratégica, era até bem visto. Cumpria-se a vontade de Deus Nosso Senhor que nos havia pedido há muito que crescemos e nos multiplicássemos, mesmo que muitas das mães o fossem antes de terem largado a manietação das bonecas e a pequena carnatura que molda os cantos da boca na infância. Assim, era possível que aos 26 anos, mais para a frente ou mais para trás, e não obstante o número vasto de vulvas a soldo de que um marido se podia servir, o aparelho reprodutor feminino estivesse lasso, gasto, e de pouco prazer para esposa e esposo. As mezinhas e as benzeduras que botariam crescedura ao crianço não eram bem vistas pela Igreja, mas ninguém as dispensava e no fundo conviviam como comadres. Incompreensível era o dito das entidades eclesiásticas às futuras mães: a gravidez era algo natural, era o destino da mulher e por isso deveria ser evitada a interferência das curandeiras, mas ao mesmo tempo… a gravidez era o castigo celeste pela incontinência voluptuosa de Eva. Pensava-se nesta época que a gravidez podia ser adivinhada quase e que se consumava no acto sexual. Para tal era necessário que existisse por parte do corpo da mulher um frémito de prazer durante o coito (que não era visto como prazer, mas como prenúncio de felicidade futura), que o homem retraísse o seu membro e que este ficasse mirrado e por fim, que a mulher não tivesse mais desejo sexual pelo homem em questão durante o resto da noite, estando o seu corpo já a fechar-se para a preparação do ser que iria albergar. Lá dentro, e enquanto homem e mulher dormiam de costas voltadas, já tudo estava decidido. Eu acho bem, mas também acho que por esta ordem de ideias a nossa taxa de natalidade seria muito mais elevada. A observação da possível gravidez através da urina era coisa já antiga, mas não com as tecnologias actuais. Lançar a urina, durante três dias seguidos, três manhãs consecutivas, sobre uma malva. Se a planta não morresse, a mulher estaria grávida. Outra teoria defendia que a urina deveria ser deixada uma noite dentro de um pote metálico onde deveriam repousar igualmente alfaias de ferro. Se na manhã seguinte estas aparecessem manchadas de vermelho, a mulher estava grávida. Vemos isto nesta pintura de Rogier van der Wyden, “Virgin with the Child and Four Saints”. Do lado direito da pintura (esquerdo da virgem), dois santos acompanham esta cena. São eles são Cosme e São Damião, santos patronos dos médicos e farmacêuticos. São Cosme segura numa das mãos um pote de vidro com uma pequena amostra de um líquido que se pensa ser urina, como que a atestar cientificamente que a Virgem trouxe no seu ventre o menino. Os cultores de urina agitavam à luz do sol a urina para verem o cambiante das suas cores, podendo adivinhar logo se a mulher estava de esperanças, se a criança era do sexo feminino ou masculino e até, se teria outras doenças. Não que a gravidez seja uma doença (às vezes parece uma praga a avaliar pela quantidade de barrigas que nos atiram à cara), mas naquela altura era considerada uma doença. Mas a melhor teoria médica para executar um teste caseiro de gravidez é, na minha opinião, aquele que aconselha o repouso durante três dias e à sombra de um frasco de vidro contendo a urina da mulher. Quando coado através de um pano fino branco a gravidez fica assegurada se no mesmo ficarem alguns bichinhos. Lá está, o Preformismo.
Gerrit Dou
The Dropsical Woman
1663
Musée du Louvre, Paris


Santo Constantino, o Africano


Rogier van der Weyden

Virgin with the Child and Four Saints
1450-51
Städelsches Kunstinstitut, Frankfurt

Após conhecer o resultado do exame urológico e caso este tivesse resposta positiva, os casais desejavam saber o sexo da criança, coisa que se impunha e que podia fazer a diferença em certas uniões. Alguns casamentos só eram legitimados quando a esposa desse ao seu esposo um filho macho, um varão. Até aí, e caso o marido decidisse, esta seria repatriada para o seio paterno. Ora como os filhos do sexo masculino eram muito desejados, era natural as teorias e as práticas para adivinhar o sexo da criança beneficiassem mais na sua análise os homens que as mulheres. Hipócrates por exemplo dizia que o rapaz se mexia mais cedo que a rapariga e outros médicos, botânicos, farmacêuticos e espalha brasas diziam que sendo o feto masculino a mulher se sentia bem, com boa cara, bem disposta, com apetite e feliz. Há também uma teoria, que permanece até hoje que coloca o feto feminino a crescer para o lado esquerdo do corpo da mãe e o masculino a crescer para o lado direito. Obviamente isto tinha uma explicação muito cara aos homens: como a maior parte das pessoas era destra, dizia-se que o lado direito do corpo era mais hábil, e desenvolto, logo, um ser do sexo masculino teria de nascer nesse lado e herdar dele as características. Outro teste determina ainda o sexo e o número de filhos que a mulher vai ter. Ainda hoje se pratica e chama-se jogo do pêndulo e que consiste em fazer balançar sobre a barriga de uma grávida um pêndulo (há quem faça com uma simples agulha que balança no fio). Se este pêndulo se mover de forma circular, será uma rapariga (alusão unívoca!). Se pelo contrário o pêndulo tiver um movimento de vai-vem, é um rapaz.


gravura do século XIX

Se a mulher esperava uma menina a ordem cósmica fazia dela uma sofredora no parto e na gestação, coisa muito merecida por virtude do despautério de Eva, a prostituta do Éden. Tudo quanto fosse enjoo, desejo estranho e histerismos dos quais a grande parte das mulheres tirava grande proveito, excepto as menos aptas intelectualmente. Caberia à mulher o trabalho de durante esses nove meses munir-se de uma lista extensa de desejos e desenrolá-la como uma língua na pastelaria, no chapeleiro, na modista, na luvaria, ou frente ao marido à noitinha e com a alça da camisa a fugir virginalmente do ombro macio e em gancho. As que o Senhor tinha dotado de outros atributos que não a inteligência (e digamos, neste caso da camisa, de beleza), teriam que se haver com alguns “nãos”, raros, quase inexistentes face à crença universal que quem falava não era a mãe, mas a criança e que esta, se privada de algo, nasceria com defeito impresso na pele como um selo ou como a marca de um ferro quente. E os desejos poderiam ser muitos, sendo que aqueles que mais facilmente se aceitavam eram os de ordem alimentar, embora nem tudo aquilo que as mulheres colocavam à boca fosse propriamente comestível como aranhas, urina, areia, cabelos, ferro, etc… segundo o retrato da época. Havia também desejos de roubar, de vandalizar ou de maltratar, desejos esses que deveriam ser satisfeitos sob pena de a mulher transmitir aos filhos a carência. Acredito que muitas grávidas terão exagerado nesta parte como forma de vingançazinha.
Já no século XVIII e com a ascensão de uma consciência médica e consequente aprofundamento, a gravidez foi sendo desmistificada aos poucos e poucos. No entanto prevaleciam algumas teorias – que quase sempre conferiam à mulher, fosse qual fosse o mal, o mesmo diagnóstico - de sofredora militante de histerismo crónico e milenar. A ciência havia descoberto muito quanto ao nascimento em si, mas pouco quanto aos desejos femininos, aos seus anseios e às necessidades do feto dentro da incubadora. Ora foi também por esta altura que o Homem – que cria a doença e acha a cura – inventou um torturante e dissuasor aparelho de nome fórceps que no entender da mãe iria ajudar ao nascimento, mas que no entender do médico, cada vez mais chamado para ver a vagina em dilatação em detrimento das carcaças sabidas, mas caciqueiras das parteiras de serviço que ordenavam mais ou menos dores à parturiente quanto os seus ouvidos fossem capazes de aguentar ou quanto a condição do nascido a isso obrigasse, era apenas uma forma de fazer do nascimento um negócio.

Louis Léopold Boily
The Second Month
1825

Durante a época vitoriana a moda espartilhada e ataviada atrapalhou, se não a concepção, pelo menos a gestação. As mulheres, muito deformadas pelos ditames da moda, eram como pombas de coração acelerado e por isso, muito pouco úteis na nobre e animalesca tarefa de parir um saudável varão. Apesar dos conselhos médicos de algum exercício físico, as pobres almas não primavam pela sensatez e muitas vezes, as mais afoitas que se aventuravam a fazer um pequeno movimento, por ausência do mesmo durante toda a vida, acabavam por sofrer abortos. Daí que a questão do exercício físico e do papel activo da mulher durante o tempo de gestação tenha sido sempre desconsiderado. E quem engravidada, privada que era de uma vida social cheia do rumorejar de saiotes, rendas e dos bordões dos homens nas crinolinas, tinha que se recolher no recesso do lar, onde o que a esperava eram somente os bibes e um tricot canónico esquecido entre os livros e os suspiros de que o diz chegasse rapidamente. Isto acontecia porque as mulheres se viam desposadas do uso da sua bonita roupagem, dos seus trajes elegantes, até porque ainda não existia uma moda para grávidas, não existia a roupa propositadamente feita para mulheres grávidas e elas escondiam sob um corpete, e até aos limites do aceitável, a barriga que crescia. Havia uma vergonha declarada em estar grávida, assim como existia uma conduta protocolar de distanciamento entre mãe e filho. A panaceia de mulher grávida era um aro ou um cinto de couro que passava pela nuca e por baixo da barriga, para segurá-la.

gravura do século XVI