terça-feira, agosto 12, 2008

- o carteiro -

Como começámos o dia de postagem com o verso “Porque cada manhã me traz” vamos acabar com a noite. Depende do ponto de vista: há quem diga que a noite anuncia o dia e prepara as manifestações futuras. Há quem veja a noite como o fim do dia (isto é tão Lili Caneças!?). Mas se a Aurora que antecipa o dia, se sucede à noite, então podemos dizer que sim, que a noite prepara o dia.
A noite é a mãe, o princípio primordial de todos as origens cósmicas, pelo menos nos Poemas Órficos. Aí podemos ler que da sua união com o vento, a noite gerou um ovo prateado, a Lua, da qual nasceu Eros-Phanes; ou seja, traduzindo do grego, o eros revelado (Eros é o deus do amor e phanes quer dizer revelado). Diz-se também que, para além da Lua, eram filhos da Noite o Céu, a Terra, o Sono e a Morte. E como é mãe do Céu e da Terra, é também mediadora entre o elemento aquático e subterrâneo, lugar de gestação. É por isto que a noite é considerada a fonte de todas as possibilidades, possibilidades essas que se concretizam ao nascer do dia.
Na Antiguidade a Noite era uma figura feminina envolvida num véu negro e com uma coroa de flores, feita com papoilas devido às características soporíferas que esta flor tem. A noite tem vários significados: pode ser a “Noite Santa” dos temas cristãos, mas também pode ser a relação entre o sonho e eros, entrando assim no domínio do fantástico e do oculto. É por isso que está associada à Hecate ou Trivia. Para os Romanos a deusa grega Hecate era Trivia e era a deusa dos feitiços, dos três caminhos (as encruzilhadas) e da lua. Para os gregos, Hecate era a deusa da infância. Está associada ao marasmo das almas e à descida de Virgílio e de Dante na Divina Comédia e a passagem pelo rio das lamentações.

Gaetano Previati
Le jour réveille la nuit
1898-1950
Museo Revoltella, Trieste


Nesta escultura de Miguel Ângelo para o Túmulo dos Médicis vemos como a mesma foi construída tendo em vista as concepções pitagóricas e órficas, uma vez que há uma relação entre a noite e o carácter sensual de Leda e o Cisne. A posição chega a ser a mesma. Os seus atributos, os atributos da noite são muitas vezes associados aos de Leda. A seus pés vemos a coruja e as papoilas que são conotadas com a morte e com o sonho; ou seja, os dois filhos atribuídos à Noite. Por fim, atente-se na forma como a Noite pousa a cabeça na mão. Não é só sono, mas melancolia que muitas vezes está associada a esta parte do dia.


Miguel Ângelo
Night
1526-33

Sagrestia Nuova, San Lorenzo, Florença

Do lado esquerdo deste quadro deparamo-nos com algumas criaturas estranhas, monstruosas mesmo que foram inspiradas nas "Histórias verdadeiras" de Lucien de Samosate. Mais acima destas criaturas deparamo-nos com uma vila em chamas, cena esta cuja atmosfera e carácter geral foi retirada de uma gravura de Marcantonio Raimondi (aquele de onde foi retirada a cena para o "Déjeuner sur l'herbe"). A cena central entre uma figura feminina e uma figura masculina inspirou-se na lenda da "Casa do Sono" de que Ovídio fala nas suas Metamorfoses. Mais à direita, entre a Lua e a cabeça do galo, entre o sono e a coruja está a Noite.

Battista Dossi
Nigth
1544
Gemäldegalerie, Dresden

Neste quadro de Albrecht Altdorfer (que foi muito difícil de arranjar), a Noite está representada como uma força protectora no topo da pintura, como um manto que cobre de negro a imagem, mas como antecipa o dia, deixa em aberto essa possibilidade. Nesta cena no entanto o tema não é tratado de forma mitológica nem cósmica nem filosófica, mas cristã e por isso o sentido de Noite é diferente. Mesmo o halo de luz no topo do quadro funciona como protecção para o ser nascido e marca este momento como altura de recolhimento e celebração do nascimento de Cristo.

Albrecht Altdorfer
Holy Night
1520
Kunsthistorisches Museum, Viena