quinta-feira, julho 03, 2008

- o carteiro -
"todo o homem é importante. em sua casa, à hora do jantar:
Além de Cannaleto, Veronese e Tintoretto foram dois dos pintores que melhor representaram Veneza. Canaletto fê-lo no sentido literal da expressão, enquanto os dois últimos são reconhecidos pela luminosidade dos seus quadros que é indubitavelmente uma característica da pintura veneziana e da cidade em si. Embora mais ou menos contemporâneo de Tintoretto, Veronese nunca pintou como este: preferiu sempre composições menos alegóricas e mais ao gosto do alto Renascimento italiano, principalmente seguindo a moda de Leonardo e Rafael. No quadro de onde sai o post de hoje vemos isso, principalmente se o compararmos ao de Tintoretto, de temática semelhante. A Última Ceia de Tintoretto está repleta de significado, a mesa do lado esquerdo em perspectiva parece que sobe, alguns apóstolos, como astros, emanam luz própria e toda a sala está imbuída do espírito santo que como se sabe tem as costas largas. O quadro de Veronese, inicialmente baptizado de “Festim em Casa de Levi” terá chamado a atenção da Inquisição que o confundiu com uma Última Ceia. Ora, não retratando nem o quadro, nem o título nenhum episódio notório da vida de Cristo, Veronese pintou-o como bem entendeu. Por outro lado, e apesar de ter ido buscar inspiração aos mestres do Alto Renascimento, Veronese não conferiu as personagens da procura do divino com que os mesmos mestres os dotaram. Essa aspiração ao divino e procura de uma posição e carácter etéreos não foi uma prioridade para Veronese que arriscou assim retratar mesmo um festim, uma festa caseira onde os convivas se divertem. Um Inquisidor mais atento e menos escrupuloso teria dado conta desse facto, desse aspecto de festa que torna o quadro, um quadro que retrata uma refeição em vez de retratar a última refeição de Cristo entre os vivos. No Auto do Tribunal da Inquisição de 18 de Julho de 1573, em Veneza podemos ler o seguinte diálogo entre Veronese e o inquisidor:
Inquisidor: Neste ceia que pintou para igreja de São João e São Paulo, que significa o homem que sangra do nariz?
Veronese: Queria representar um criado que tinha sofrido um acidente.
Inquisidor: E estes homens armados de alabardas e vestidos como os alemães?
Veronese: Nós, os artistas, tomamos as mesmas liberdades que os poetas e os bobos; então eu pintei dois alabardeiros, um a beber e outro a comer ao lado, junto da escada. Estão ali ao serviço do dono da casa, que, segundo me disseram, era um homem rico e tinha provavelmente criados como esses.
Inquisidor: E porque pintou o homem vestido de bobo, com um papagaio na mão?
Veronese: Como ornamento, é habitual.
Inquisidor: Quem está sentado à mesa de Nosso Senhor?
Veronese: Os doze apóstolos.
Inquisidor: Que faz São Pedro, o primeiro de todos?
Veronese: Está a trinchar o cabrito para o passar pela mesa.
Inquisidor: Que está a fazer o apóstolo seguinte?
Veronese: Estende um prato para receber o que lhe dá São Pedro.
Inquisidor: E o seguinte?
Veronese: Está a palitar os dentes.
Inquisidor: Quem pensa que assistia realmente a esta refeição?
Veronoses: Julgo que havia Cristo e os seus apóstolos, mas, quando há um espaço vazio num quadro, eu acrescento personagens que ficam bem na história.
Inquisidor: O que os artistas acrescentam nos seus quadros deve ser apropriado ao tema e às personagens principais ou acaso acrescenta às suas obras, por puro prazer, simplesmente o que lhe vem à cabeça, sem qualquer discernimento?
Veronese: Pinto os meus quadros como me apetece e o melhor que o meu talento me permite.
Com isto Veronese conseguiu apenas a anotação de que o quadro estava repleto de “anões, bêbabdos, alemães, anões e quejandos”, mas nunca se apressou a corrigir o pensamento inquisitório convicto de que aquela cena era uma Última Ceia. Não se percebe bem o porquê da celeuma, uma vez que anos antes o mesmo Veronese havia pintado um “Festim na Casa de Simão” que não levantou polémica. Note-se que Levi, o primeiro quadro pintado é o nome dado a Mateus, São Mateus. Levi era o nome de Mateus antes de ter conhecido Jesus e se ter tornado seu apóstolo. O Festim a que se refere o quadro foi o banquete dado por Levi quando conheceu Jesus como nos conta esta passagem da Bíblia (Lucas 5, 27-31): “E, depois disto, saiu, e viu um publicano, chamado Levi, assentado na recebedoria, e disse-lhe: Segue-me. E ele, deixando tudo, levantou-se e o seguiu. E fez-lhe Levi um grande banquete em sua casa; e havia ali uma multidão de publicanos e outros que estavam com eles à mesa. E os escribas deles, e os fariseus, murmuravam contra os seus discípulos, dizendo: Por que comeis e bebeis com publicanos e pecadores? E Jesus, respondendo, disse-lhes: Não necessitam de médico os que estão sãos, mas, sim, os que estão enfermos.”

Paolo Veronese
Feast at the House of Simon
1567-70
Pinacoteca di Brera, Milão

O Festim em casa de Simão, seria até um episódio mais controverso, uma vez que conta a história de Simão, um leproso que recebe em sua casa Cristo e que durante o repasto recebe a visita de uma mulher que traz unguento, como conta Marcos 14, 1-9: “E dali a dois dias era a Páscoa, e a festa dos pães ázimos; e os principais dos sacerdotes e os escribas buscavam como o prenderiam com dolo, e o matariam. Mas eles diziam: Não na festa, para que porventura não se faça alvoroço entre o povo. E, estando ele em Betânia, assentado à mesa, em casa de Simão, o leproso, veio uma mulher, que trazia um vaso de alabastro, com ungüento de nardo puro, de muito preço, e quebrando o vaso, lho derramou sobre a cabeça. E alguns houve que em si mesmos se indignaram, e disseram: Para que se fez este desperdício de ungüento? Porque podia vender-se por mais de trezentos dinheiros, e dá-lo aos pobres. E bramavam contra ela. Jesus, porém, disse: Deixai-a, por que a molestais? Ela fez-me boa obra. Porque sempre tendes os pobres convosco, e podeis fazer-lhes bem, quando quiserdes; mas a mim nem sempre me tendes. Esta fez o que podia; antecipou-se a ungir o meu corpo para a sepultura. Em verdade vos digo que, em todas as partes do mundo onde este evangelho for pregado, também o que ela fez será contado para sua memória.” (Marcos 14, 1-9). Claro que a presença da mulher afasta a hipótese de se tratar de uma Última Ceia, mas por outro lado deixamos nesta cisma (e quase neste novo Cisma) de que tudo se resolve à mesa. Na Antiguidade o Banquete foi o de Platão, para a Cristandade foi esta Última Ceia, o paradigma do potache espiritual, em que um homem se despoja da própria vida por nós.

Paolo Veronese
Feast in the House of Levi
1573
Gallerie dell'Accademia, Veneza

2 Comments:

Blogger João Barbosa said...

belíssimo

3/7/08 10:17 da manhã  
Blogger Belogue said...

obrigadíssimo

3/7/08 6:51 da tarde  

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