- o carteiro -

A Frick Collection faz este ano algo que eu gostaria de ter feito ou de poder fazer: apresenta uma exposição com um quadro apenas. E não é um quadro qualquer de uma batalha ou de um episódio mitológico ou ainda de personagens históricas em situações embaraçosas (uma primeira abordagem ao voyeurismo, acho eu). Trata-se antes de um retrato emprestado pelo Museo di Capodimonte de Nápoles. Assim à primeira vista, ou melhor, à primeira leitura poderia parecer que se trata da Mona Lisa, mas não. O autor é bem menos conhecido, é de transição entre dois períodos e o quadro é bem melhor que o sobrevalorizado retrato do Louvre pois está repleto de pormenores que embora não nos levem a uma conclusão, pelo menos permitem-nos divagar em vez de olhar para um rosto inexpressivo, feio e incapaz de gerar qualquer mistério. Goste-se ou não se goste (o blog é meu), eu não gosto da Mona Lisa. È demasiado plana. Estou em crer que o mistério em torno da Mona Lisa não é mais do que uma manobra de marketing que procura com a postergação de milhares de fãs atribuir a uma obra a importância que ela não tem, mas cuja descoberta colocaria o seu autor em maus lençóis. Enfatiza-se assim com recurso a explicações cabalísticas, o que não tem explicação. Faz-me lembrar um diálogo com alguém (“Já viste o Titanic?”, “Não, nem vou ver.”, “Porquê? Olha que é muito bom!”, “Talvez. Mas não passa da história de um navio que se afunda.”). O facto de a Frick apresentar uma exposição com uma obra só não pode ser minorado: alias, devido à riqueza da pintura em questão, curadores, obra e visitantes ficam a ganhar uma vez que o conhecimento passado e adquirido é maior e mais profundo.

Parmigianino
Antea
1531-1534
Museo di Capodimonte, Nápoles

O quadro em questão é de Parmigianino – o senhor da Madonna do colo longo – já um maneirista na forma como distorcia as proporções clássicas, mas não os temas. O que é pintado é o retrato de uma jovem que representa, sem dúvida, o ideal de beleza da época. O seu rosto é muito semelhante, se não o mesmo do anjo que Parmiggianino pintou numa outra obra, a Madonna do colo longo, obra essa que teve como mecenas uma senhora da nobreza da Roma do século XVI. Apesar de Parmigianino caminhar para o Maneirismo, os ideais de beleza eram os mesmos havendo essa tal distorção da proporção no corpo da jovem e no seu vestuário: o vestuário é uns dois números acima do que aquilo que ela deveria vestir, parecendo assim com todo o atavio de capas de peles e brocados, que o seu corpo é na realidade maior relativamente à cabeça. A jovem chama-se Antea e especula-se se teria sido filha do mecenas da obra, amante de algum senhor ou mesmo amante do pintor, uma cortesã conhecida em Roma ou somente uma nobre italiana. Apesar de não haver certezas quanto à origem da retratada, sabe-se no entanto que o estilo utilizado para pintar formalmente uma pessoa acabou por se modificar graças a esta pintura. Sabe-se o nome da menina do retrato e não a sua origem porque no século XVI o escritor Giacomo Barri declarou que a jovem tinha sido amante do pintor e não se sabendo o porquê desta associação, deu-se a Antea o nome de Antea porque esse era também o nome de uma prostituta bastante conhecida da época. Esta teoria, embora tenha dado origem ao nome do quadro é de duvidar: nada se sabe sobre a vida íntima de Parmigianino, nem há evidências de que tenha conhecido Antea e como o quadro foi pintado em Parma muito depois da estadia do pintor em Roma, quem nos garante que ele ainda se lembrasse do nome dela? Antea devia ser tão comum naquele tempo quanto Sheila o é em qualquer casa de alterne de agora.

Sabe-se no entanto que Antea foi pintada por volta de 1530 e que revolucionou a forma de pintar retratos porque Parmigianino colocou a retratada de frente para o observador, olhos nos olhos até numa atitude de desafio e, o mais importante, não a pintou até abaixo do peito como se fosse um busto, mas antes abaixo dos joelhos, o que era particularmente invulgar para a época, para o tema e para todos os antecedentes. A face que referíamos ser o exemplo da perfeição renascentista é perfeitamente oval. Hoje talvez fosse um ideal de beleza mais contestável, mas de qualquer forma, não sem o mistério que lhe é reconhecido. O vestido dourado de cetim que Antea traz é enfeitado com fitas prateadas, enquanto o seu manto e os punhos do vestido estão decorados com rendas pretas. A maior parte dos acessórios usados por Antea, incluindo a pele de marta, o colar de ouro que ela toca com uma mão junto ao peito, o broche no alto da cabeça, em rubis e de onde pende uma pérola e as luvas douradas são do tipo de acessórios que só os amantes forneciam. Se Antea estava assim vestida, ou era porque a sua origem era nobre ou porque era mantida por um nobre. Há também pormenores que nos podem levar a pensar tratar-se não de uma cortesã ou de uma mulher jovem e rica, mas de uma noiva (o que não elimina nenhuma das hipóteses anteriores), uma vez que a presença de rubis, a pedra preciosa mais cara daquele tempo, era geralmente dada às noivas pelos noivos. Petrarca escreveu mesmo alguns versos onde fez a analogia entre os rubis e a sua noiva. No entanto não podemos negar que o brilho das jóias, as cores dos vestidos e as texturas das vestes são bastante apelativas sob o ponto de vista sexual. Ao usar todos os acessórios descritos, uma mulher mostrava não só a sua condição, mas também que aceitava os presentes do amante e que estava disponível para mais amantes e … mais presentes. É Antea quem revela o seu carácter de mulher sedutora pois ela brinca com cada um dos acessórios (é minha impressão ou acabei de escrever uma frase própria de um catálogo de produtos eróticos para mulheres?): entrelaça os dedos no fio que traz ao pescoço e com um dos dedos aponta para o peito, não aperta a pele de marta apesar de parecer que os dentes do animal morto estão cravados na sua mão. De facto, se virem mais de perto poderão reparar que a pele de marta percorre o braço da jovem, mas a cabeça vai descansar na mão de Antea, como se esta dominasse o animal. Tendo em conta que todos estes acessórios eram caros, e não eram emprestados para sessões de pintura, e tendo em conta que Parmigianino não era um homem abastado, Antea não podia ser sua amante. Por outro lado, se era a futura esposa ou amante de alguém, porque é que nada revela quem patrocinou o quadro? Um homem que gasta tanto dinheiro com uma mulher bem merecia uma referência. Como se faz nos bancos de igreja “Estes bancos foram gentilmente oferecidos pelo senhor Dr. Manuel Vilaça, médico ilustre da nossa vila”. Como o rosto da jovem é em tudo semelhante ao rosto do anjo que está próximo da Virgem no quadro Madonna do colo longo, e tendo em conta que a família Baiardi que foi mecenas deste último, tinha entre os seus membros uma jovem mais ou menos da idade de Antea, poderia ter sido essa jovem a fonte de inspiração. No entanto, inclino-me mais para a teoria da amante pois há nela uma malícia e uma atitude que não são próprias de uma jovem nubente, virgem e assustada. O que ela ostenta são símbolos de luxúria e não de inocência.