quarta-feira, julho 02, 2008

- o carteiro -

Serão poucos os posts do Belogue (estive a ver os posts antigos e ainda estou a tentar descobrir que piada é que isto tem) onde não espreite o estereótipo: “a ‘serpentinatta’ é própria do Renascimento”, “só a partir dos movimentos modernos é que o figurativismo é substituído” e outras pérolas semelhantes. Nem tudo está dito assim, mas subentende-se. Ora, nada mais errado. Antes do Alto Renascimento já os artistas tinham descoberto as maravilhas da linha curva, a forma como ela harmoniza os gestos e os torna uma extensão natural do corpo. Bem, na verdade já a imagética Clássica tinha descoberto isso. Mesmo um pintor como Paolo Ucello que pintou Battle of San Romano repleta de linhas verticais e horizontais e subdividiu a composição de forma a simular os vários planos numa altura em que as únicas investidas nesse sentido tinham sido feitas no contexto da pintura de arquitectura, conseguiu no túmulo do condottiere do século XV Sir John Hawkwood simular a tridimensionalidade. E não se pense que foi graças ao uso de vários pontos de fuga. Nos estudos preparatórios do fresco, que cria a ilusão de que o cavaleiro está mesmo esculpido em cima do túmulo e que este também é esculpido, nota-se a presença da linha curva, das circunferências perfeitas no dorso do cavalo, o que nos mostra que curva não é inimiga da perspectiva.

Paolo Uccello
Funerary Monument to Sir John Hawkwood
1436

Duomo, Florença

Recuando aos primórdios, poderemos ir buscar os exemplos das deusas da fertilidade da arte pré-histórica, uma vez que estas invocações femininas são construídas a partir das linhas e das formas: os seios são duas esferas, a cabeça é outra, o púbis é um triângulo, e as pernas quase inexistentes funcionam como um cone. E toda a forma, toda a imagem se inscreve num losango cuja medida menor entre cantos opostos se faz no busto e a maior, na que vai da cabeça à extremidade das pernas. E no século XIX tanto a estampa japonesa como a arte nova recuperam a linha curva. E mesmo antes, a estampa japonesa havia sido influência forte para os artistas europeus graças ao gosto e capacidade de utilizar racionalmente a linha curva. Quanto à arte nova, esforçou-se por trazer para as linguagens artísticas a linha curva, símbolo do momento de libertação do corpo e da situação de charneira que se vivia e que permitia a tal liberdade, quer ao nível das roupas, quer ao nível do design dos objectos do dia-a-dia. Mais tarde Theo van Doesburg fez uma inversão do que aqui se disse, pegando da forma orgânica e estilizando-a progressivamente até obter apenas uma grelha de ortogonais preenchida de cores primárias.









Theo van Doesburg
From Nature to Composition (studies)
1919

Villard de Honnecourt, um arquitecto do século XIII fazia as suas construções góticas a partir dessa estilização das formas naturais, transformando-as num conjunto de triângulos, quadrados, estrelas e cruzes e posteriormente, combinando as formas referidas. Entre um e outro, Cézanne escreveu que tudo na natureza poderia ser reduzido a três sólidos simples como o cilindro, a esfera e o cone, algo que os tratadistas do Renascimento e mesmo os pintores como Rubens haviam proposto.
Villard de Honnecourt
Jean Fouquet
Virgin and Child Surrounded by Angels
c. 1450
Koninklijk Museum voor Schone Kunsten, Antuérpia
A tratadística de Fra Luca Pacioli, por exemplo, falava de algo que para os artistas do Renascimento se tornou quase uma obsessão: a Secção de ouro (Sectio Aurea). A forma como esta proporção está presente insistentemente na natureza criou uma empatia imediata por parte dos artistas, mas também uma espécie de cabala: de repente, a Secção de Ouro podia ser aplicada a tudo o que lhe retirou a importância e acabou por desmistificar as próprias obras. Olhe-se para a Virgem de Jean Fouquet: tudo na pintura é esférico: a cabeça da virgem, os seus seios, a cabeça do menino, as cabeças dos anjos que estão em fundo, as pérolas que adornam o trono, os motivos que essas mesmas pérolas cobrem. Até faria a comparação com a Madonna de Piero della Francesca embora neste exemplo o ovo seja sinónimo de fertilidade inequívoca, pois não é a sua forma que está representada, mas o próprio ovo como sinal de fecundidade e fertilidade. Já na Virgem a presença da forma tanto pode apontar para o ovo, para a tal fertilidade como para a perfeição pois o círculo é a forma que tudo congrega. É no fundo uma maneira de exercer pressão sobre o Divino, como se isso fosse possível. Mesmo contrariando Vattimo que diz já não existirem ateus, nem para o mais ateu dos homens o divino poderá sucumbir a qualquer pressão, muito menos se esta chegar sob a forma de exorcismo. Estas Virgens podem ser comparadas no seu papel de invocação de uma força superior e quem sabe, pagã, às deusas da fertilidade. Da mesma forma, as imagens de Picasso podem ter sido inspiradas nas Bizarie de Bracelli que já no século XVI reduzia o corpo humano a um conjunto articulado de paralelepípedos ou mesmo, a um corpo facetado.



Giovanni Battista Braccelli
Bizzarie di varie figure
1624


Dizem que este estado mais dado à geometria tem permanência no espírito de povos mediterrâneos, onde o sedentarismo é mais premente, enquanto os povos nómadas relacionam-se melhor e exploram a linha curva por relação óbvia com o seu próprio movimento. Tal como os Shakers se chamavam Shakers devido ao movimento físico que realizavam enquanto rezavam. Ou os povos primitivos australianos acreditavam que era a Terra que se deslocava sob os seus pés e não ao contrário. Latitudes.

2 Comments:

Blogger AM said...

uma posta notável, beluga

7/7/08 9:03 da tarde  
Blogger Belogue said...

homem, não me faça corar.

7/7/08 11:01 da tarde  

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