quinta-feira, maio 19, 2016

- o carteiro -
 
O cócó, a arte e o síndrome Pacheco Pereira
 

Um amigo enviou-me este vídeo que muito me fez rir. Porque eu rio-me facilmente com a palavra cócó. Cócó e xixi. Embora se trate de uma paródia à Manuel João Vieira, a verdade é que este vídeo fala de alguns aspectos do mercado de arte actual e daquilo que chamo o síndrome Pacheco Pereira. Conforme sabem, o Pacheco Pereira é aquele tipo - que eu adoro - que tem sempre as opiniões mais inesperadas, tão inesperadas que estão à frente de qualquer opinião e, quando são conhecidas, fazem as delícias dos jornais, das redes sociais, dos ilustradores, por aí. Aquilo que ele diz/escreve está tão fora da norma que pode ser considerado de uma de duas formas: mainstream ou ridículo.
Nos anos 80, quando havia dinheiro a rodos, optimismo e muita ingenuidade, as pessoas acreditaram que a arte era um investimento. Como qualquer outro investimento, a arte só é uma boa forma de aplicar o dinheiro se os conselhos forem honestos. Os críticos, que podiam erguer bem alto um artista, ou colocá-lo quase nas ruas da amargura, faziam (e fazem) o seu papel, devidamente pago. Ora eu acho que todo o trabalho deve ser pago, mas o trabalho dos críticos corre muitas vezes o risco de ser parcial. Bom, a crítica nunca é totalmente imparcial: depende daquilo que o crítico gosta. É impossível subtrair a subjectividade do gosto próprio na crítica. Mais, é impossível tirar o crítico dos meios onde ele se move, vendar-lhe os olhos e os ouvidos, deixar de convidá-lo. É também impossível retirá-lo da sua geração ou fazer uma escola só para críticos. Quer isto dizer que é muito natural que o crítico tenha privado já desde cedo com aqueles que vão ser os artistas "a criticar". Nada disso pode ser evitado, é certo. Mas é também certo que um crítico não pode andar ao sabor dos jantares, dos pagamentos mais ou menos ortodoxos, nem das modas. Se nos anos 90 a pintura estava em crise (a pintura, dizem, está em crise há muito tempo, mas o Prémio Turner continua a privilegiar a pintura e nem por isso é tido como conservador), os críticos preferiam escrever sobre novas formas de arte. E porque é que a pintura, a fotografia, o desenho, a escultura e no geral, a figuração, estava em crise? por um conjunto de razões que se originam umas às outras. A pintura estava em crise, diziam os sociólogos, os filósofos, os escritores e os artistas. Os artistas optam então por fazer tudo menos as artes canónicas. são estes artistas que ingressam depois como professores nas universidades, que fazem a critica, que fazem curadoria... ensinam e veiculam a ideia que a arte não necessita do virtuosismo, que o virtuosismo está desactualizado e que tudo que é necessário é vontade. Estas ideias são também legitimadas pelo cansaço do paradigma até aí vigente (e que dizia que sim, o virtuosismo é necessário), emitido e defendido por uma intelligentsia hermética. Passa-se então para o seu oposto - o tal Síndrome Pacheco Pereira - que diz que qualquer um pode ser artista, que a arte é qualquer coisa: basta ter a ideia e concretizar. E esta inversão do paradigma de quem faz, resulta também numa inversão do paradigma de quem compra. Quem compra fá-lo não porque gosta do que vê, mas porque vê valor naquilo que vê. Claro que - e agora sabe-se - muito gato por lebre se vendeu. E claro que, tudo isto é orgânico, fluído e mais cedo ou mais tarde, o oposto deste novo paradigma será válido. Vamos esperar para ver. Até lá, o cócó é arte.*
 
*(não é uma crítica à obra "merde d'artiste" do Piero Manzoni, nem a todos os outros cócós que lhe sucederam)