segunda-feira, maio 16, 2016

- ars longa, vita brevis -
Hipócrates

nos comentários a este post, ficou no ar a ideia - ficou no ar porque a lancei para o ar - a possibilidade de existir perizonium de outras cores. sendo o perizonium o pano que cobre cristo nu na crucifixão, e uma vez que este se apresenta essencialmente em branco, que outras cores haveria? há, certamente versões em que o perizonium se apresenta encarnado, mas haveria por exemplo, verde? achava que sim, que o El Greco tinha pintado qualquer coisa assim, mas parece que não. e haveria em amarelo (cor de xixi)? e já agora, que significado tinham essas cores, se é que tinham?

antes de começar, faço uma advertência ("tudo na vida são começos", não é?): aquilo que os artistas pintaram ao longo dos séculos relativamente à crucifixão de Cristo, não tem nenhum fundo de verdade. se Cristo realmente foi crucificado, então foi crucificado nu, como eram as regras da época. mas a verdade é que os artistas dos diferentes séculos o pintaram com a zona púbica coberta. ora porque existisse o pudor face à herança escultórica grega e romana do início do cristianismo que, como sabemos, era quase em exclusivo feita de nus, ora porque existisse a consciência do pecado original, ora porque a Reforma protestante fez sossegar os ânimos... a verdade é que na arte Cristo surge poucas vezes nu. quando digo nu, digo mesmo sem nada e frontalmente, não é com uma anca a tapar o pénis, por exemplo. e quando surge nu, é em escultura, o que é de certa forma curioso, mas cuja razão desconheço. há alguns exemplos de cristos completamente nus. o mais conhecido é talvez aquele que o Cellini fez para o Escorial e que levou Filipe II, o rei católico a arrancar a peça com as suas próprias mãos:



















Benvenuto Cellini
Crucifix
1562
 Monasterio de San Lorenzo, El Escorial


Mas houve mais, como o cristo nu de Donatello ou o de Brunelleschi, embora este último deva ter um problema qualquer. parece o Ken da Barbie que também não em genitais; tem um papo para não ficar muito mal de calças... Estas figuras eram, obviamente, cobertas com um pano feito de gesso, mais tarde em forma de perizonium:



















Donattelo
Cristo nu
Século XV
Convento al Frati




















Filippo Brunelleschi
Crucifix
1412-13
Santa Maria Novella, Florença





















Miguel Ângelo
Crucifixo
1492
Santo Spirito, Florença

A primeira referência ao Cristo nu - para além da Natividade em que, supomos, Jesus nasceu nu - vem de um escrito apócrifo datado do século IV e chamado de Actos de Pilatos ou Evangelho de Nicodemos: "And when they came to the place, they stripped Him of his clothes, and girded Him with a towel" (Actos de Pilatos, X-1). Em português substituiu-se a "toalha" pela "peça de linho". Mais tarde, no século XIV surge uma outra referência por parte de Pseudo-Boaventura nas Meditationes Vitae Christ: "Elle s'élance donc d'un trait, s'approche de son Fils, l'embrasse et enveloppe sa nudité du voile qui couvrait sa tête." (Cap. LXXVIII, 432). Só encontrei em francês, mas isto diz que Maria corre , abraça Jesus e cobre a sua nudez com o véu que lhe cobria a cabeça. Se Maria correu a tapá-lo, é porque já existia um certo pudor, provavelmente imposto pela própria religião. Aliás, nas primeiras representações de Jesus na cruz, essa preocupação com pudor já existe, mas é mais fiel ao que de facto se terá passado, se é que se passou alguma coisa. Assim, as primeiras representações de Cristo crucificado mostram-no com um subligaculum, um pequeno pano a cingir as ancas, pano esse que era também utilizado por gladiadores e por criminosos quando condenados a lutar com bestas nas arenas do império. Mas isto acontecia na Igreja do Ocidente porque a arte bizantina procurou sempre fugir às representações de Cristo com pouca roupa. A arte bizantina apresentava Cristo crucificado, porém com uma túnica (o colobium), o que é uma deturpação das próprias escrituras pois nelas está escrito que Jesus foi despojado das suas roupas.
Só no século VI, e por Gregório de Tours (De Gloria Martyrum) é que o termo perizonium entra no vocabulário para descrever o pano que cinge o baixo ventre de Jesus. Enquanto o subligaculum era  quase uma fralda, o perizonium era como uma toalhinha a cobrir as partes pudibundas. No século IX, no Ocidente, esta toalhinha à moda grega faz parte do vocabulário dos artistas, embora já sem nada de verdade histórica. A verdade histórica seria a do Cristo nu e esta deveria servir os propósitos da Igreja, uma vez que Cristo morto é Cristo renascido e portanto, o Cristo que renasce deveria vir nu, puro como uma criança e despojado de tudo o que lembra a sua existência física. No século XIV, alguns pintores italianos como Giotto e Duccio atrevem-se a representar Cristo com um perizonium transparente, o que influencia pintores flamengos como Van Eyck:




















Giotto
Crucifix (front)
1317
 Museo Civico, Pádua























Jan van Eyck
Crucifixion
1420-25
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque


Em 1563, com o Concílio de Trento, a nudez de Cristo tem de ser moderada. Uma das sessões do concílio, penso que a número 25, determina novas regras para as imagens: o nu desnecessário e provocante é desaconselhado e só no século XIX é que ele volta a ser apresentado numa obra bastante parolinha, diga-se. É esta de Max Klinger que me lembra assim a modos que os simbolistas ou os nazarenos:
































Max Klinger
Crucifixão (pormenor)
1890

Mas voltemos ao perizonium. No século XV, Rogier van der Weyden cria o "perizonium voador", ou seja, o perizonium que se agita ao vento sem nunca revelar nada:



















 Rogier van der Weyden
Abegg Triptych (pormenor)
c. 1445
 Abegg-Stiftung, Riggisberg





















Rogier van der Weyden
Crucifixion Triptych (pormenor)
c. 1445
 Kunsthistorisches Museum, Viena


Esta coisa do perizonium voador teve muito sucesso entre os pintores flamengos e os alemães como Dürer ou Lucas Cranach:





















Durer
Seven Sorrows Poliptych
1500
Gemaldegalerie, Dresden























Cranach
Weimar Altarpiece: Crucifixion (central panel) (pormenor)
1555
 Stadtkirche Sankt Peter und Paul, Weimar


Descobri entretanto alguns perizoniuns (não sei se será assim o plural de perizonium) apresentam-se em outras cores:
azul, cor típica de cueca
 Pedro de Campana
Crucifixion (pormenor)
c. 1550
 Musée du Louvre, Paris
vermelho, para uma crucifixão mais ousada
Rafael Sanzio

Crucifixion (Città di Castello Altarpiece) (pormenor)
1502-03
 National Gallery, Londres


com uma risquinha que não prende com gangas:



















Chagall
White Crucifixion (pormenor)
1938
Art Institute, Chicago


cor de rosa para o homem sem complexos:


















Diptych with the Virgin and Child Enthroned and the Crucifixion
1275/80
Art Institute of Chicago

só uma advertência para os senhores: desconfiem sempre de senhoras muito jeitosas por fora. a maior parte delas usa roupa interior vergonhosa. num destes dias, no ginásio, ao abrir um cacifo para colocar lá a mochila, vi umas cuecas. alguém foi embora sem as cuecas. pensei: "mas quem é que vai embora sem as cuecas?". olhando bem para elas percebi que também eu ia embora, pois as cuecas metiam medo ao susto.