segunda-feira, maio 16, 2016

- o carteiro -


Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a vase
1888
National Gallery, Londres
A propósito da música da Jessie Ware e do filme ho-rro-ro-so em que ela aparece e sobre estas coisas de romance, lugares comuns e músicas para constituir família, lembrei-me que com o Verão a aproximar-se os namoros pululam. gosto de ver as pessoas a namorar: dá-me uma certa paz. as revistas del corazón enchem-se de frases enamoradas:
"encontrei a mulher da minha vida"
"ele preenche-me"
"ela dá-me paz"
"é o meu companheiro"
por volta de Outubro, no entanto, a coisa esfria, como o tempo, a roupa é mais difícil de tirar, os enamorados desenamoram-se e as parangonas são outras: 
"Raca, disse ele"
"quero manter a minha privacidade"
"ficámos amigos"
"continuo a acreditar no amor"
nas ruas observo a forma como eles olham para elas, como viram a cabeça a uns calções rendados, a uma saia curta. elas engrandecem-se com os olhares deles, crescem, inventam trejeitos com o cabelo. eles comentam-nas; elas, entre elas, têm piadas jocosas e pouco elegantes sobre eles. os telemóveis não param entre fotografias a dois e mensagens em forma de frases lapidares - lapidares porque são de uma falta de gosto capaz de matar - que dizem coisas como "faz acontecer que eu faço valer a pena", "se não me amas, não me mereces"... mensagens com destinatários específicos num mundo panglóssico, o melhor dos mundos, sem dores nas rupturas ou nos fracassos.
quando a minha idade era outra que não esta e eu e a Bárbara não fazíamos temporadas veranis juntas, as minhas férias eram passadas na piscina municipal. apesar de morar junto à praia, a minha mãe não me deixava ir para lá sozinha. preferia a segurança de um rectângulo de água devidamente vigiado pelo nadador, moreno que nem um tição. era torrar todos os dias ao sol. todos os dias não. vá lá... três vezes por semana, pronto. o dinheiro não dava para tudo. eu e o meu irmão almoçávamos recorrentemente um destes dois pratos: filetes de pescada (comprados já prontos num supermercado da rua) com esparguete cozinhado com meio caldo Knorr - algo que não combinava, mas era simples e repleto de sódio do caldo Knorr - ou salada russa, mas sem maionese pois essa foi uma moda que só mais tarde chegou lá a casa. quando mudámos de cidade, passamos a ir de comboio para a piscina, passando antes por casa do Hugo e do Filipe, o que por vezes me enfastiava um pouco. munidos do lanche reforçado - porque a ociosidade dá fome - entravamos na piscina para horas de dolce fare niente. que nessa altura não se chamava assim nem tinha para nós um nome. foi lá que aprendemos a nadar. a minha mãe achava que gente que morava perto da praia devia saber nadar. tratávamos as pranchas carinhosamente. dizíamos: "vais à primeira?"; "gostava de saltar da terceira...". Fui ao trampolim e à primeira. as restantes aterrorizavam-me. pensava: "e se eu morrer?. ainda há tanta coisa que quero fazer e ver...". O meu irmão dizia-me "burra! anda lá! vais ver que é fixe, não sentes nada, é como saltar da primeira!". também me dizia, a propósito da minha relutância em ir para a água antes de se completarem religiosamente as três horas de digestão: "não sejas burra! meia hora não faz diferença". mas eu não queria... sabia-se lá o que podia acontecer dentro de mim em meia hora. a piscina tinha um dj. não era bem um dj, era uma cassete que tocava as mesmas músicas. ouvia-se roy orbinson e fine young cannibals. havia dedicatórias e "discos pedidos", mas sem sobressaltos ou paixões. pelo menos eu não os percebia assim. a suelly namorava com o costa, o Herlander era o preferido das raparigas. sem sobressaltos, como uma tarde de sol deve ser.
desse tempo recordo com saudade três coisas:
- pão com tulicreme
- o mindfulness; ou melhor o "não pensar em nada". ter a cabeça vazia e impermeável a qualquer sentimento de culpa pelo momento de lazer
- a ausência de consciência do corpo ou da imagem; levantar e caminhar sem ter de esconder nada, sem me comparar com ninguém.
tal como os namoros de Verão, também as tardes na piscina tinham um fim. esse fim era por volta do dia 5 de Setembro, dia em que a piscina abria pela última vez no ano e nos era permitido ficar até mais tarde. Como pagãos, ofereciamo-nos em hecatombe aos deuses, mergulhando vestidos e contrariando todas as advertências maternas.