- o carteiro -
um destes dias passei pela célia. a célia era uma rapariga gorducha e baixinha, com o cabelo loiro liso pelos ombros e dentes afastados à frente, mãos sapudas e vermelhas, moradora orgulhosa do bairro de são joão de deus que conheci no hospital. nunca percebi porque é que ela estava internada em psiquiatria. ela dizia-me que tinha "muitos nerbos". quando lhe disse que tinha 30kgs e que, não fosse o internamento, chegaria ao 25kgs ela disse que compreendia porque às vezes também se sentia assim e não comia nadinha.que de tão afrontada tinha de desapertar o soutien. eu achei que no fundo era diferente, mas calei-me.
a célia foi a minha madalena no chá. lembrei-me da dona branca no serviço de psiquiatria: era uma senhora que aparentava ter mais idade do que aquela que tinha efetivamente. trajava negro todos os dias, usava coque e bordava de pé, a um canto. e depois mostrava a toda a gente o que tinha bordado. dava passos pequenos e expeditos, embora no corredor do serviço de psiquiatria se há coisa que não adianta é dar passos rápidos: o corredor é tão curto que logo logo se entra na ala masculina. quando perguntei o que tinha a dona branca disseram-me que lhe tinha morrido um filho. a minha cabeça completou de várias formas o resto. também havia uma outra dona: a dona alice. a dona alice era uma senhora de idade que comia na mesma mesa que eu - quer dizer, eu comia na mesma mesa que ela. tinha cabelo branco despenteado, óculos de fundo de garrafa que fazia com que os olhos ficassem muito pequeninos, os dentes todos tortos e péssimo hálito. quando cheguei lá, a dona alice era autónoma... mas depois, não sei. passaram-se várias semanas e nunca vi lá a família em visitas. nem a médica. quando saí após um mês a dona alice estava de fraldas, não comia e não falava. as enfermeiras também não lhe ligavam grande coisa. numa camarata de 16, sem divisões, é difícil uma pessoa não perceber que alguém está ali para morrer. mas havia outras pessoas. havia uma gabriela, que entrou já depois de mim e que numa noite me levou para o refeitório. deu-me as mãos e disse que o Senhor estava comigo. por mim tudo bem, desde que ele não se pesasse ao mesmo tempo que eu. depois colocou-me a mão na cabeça e tentou "salvar-me", mas segundo ela eu estava a fazer força para não ir para trás. "fuck", pensei. mas reconsiderei. se havia sítio onde aquilo podia acontecer, era ali! pensei que ela ficasse aborrecida comigo por eu não deixar que o Senhor se manifestasse, mas não, nada disso. uns dias depois vi que ela dormia com a bíblia sob a almofada. lembro-me do arménio. era um tipo que em todas as refeições arranjava sarilhos. que a comida não prestava, que queria leite em vez de iogurte, que queria fruta em vez de bolachas, que estava de frente quando queria estar de costas. um dia disse-lhe para ele se sentar na minha mesa. depois de pousar o tabuleiro e sentar-se disse-me "eles vêm atrás de mim". "quem", perguntei. "os médicos e os enfermeiros. eles não querem deixar-me ir para a minha mãe". O arménio era esquizofrénico, não comia de faca e sempre que via o elevador com o carrinho das refeições aberto, esgueirava-se e fugia. já ninguém corria para apanhá-lo porque o arménio nunca se afastava muito. na noite em que entrei vi uma cena que me deixou cheia de medo e a pensar "caramba, isto é mesmo como nos filmes!" ouvi berros e arrastar de mesas no refeitório. de seguida entraram lá quatro enfermeiros, um deles com uma senhora seringa! mais gritos e depois o silêncio. a porta abriu-se e os quatro médicos saíram a carregar uma rapariga, ainda com a seringa no braço, para a cama onde dormiu um sono justo e longo. sonos longos era coisa que não tinha. aí por volta das 3h da manhã acordava com o barulho de água a correr do lavatório que ficava frente à minha cama na camarata. é que a essa hora, uma senhora que passava o dia tricotar meias de lã para o marido lavava as mesmas ali. para ela, era uma hora tão boa quanto qualquer outra. para mim era qualquer coisa pessoal que ela tinha contra pessoas que, ao contrário dela, não estavam ali a salivar pela refeição. lembro-me também da paula, uma rapariga que andava sempre fortemente medicada. arrastava as palavras e dizia, com os olhos fechados, que me conhecia desde pequenina. como dizer que não a alguém que não nos vê? também havia um caso curioso. o de uma rapariga negra retinta que não comia carne. quando havia visitas - em psiquiatria aconselhava-se que os doentes não se afastassem muito da sala de visitas - o pai levava-lhe, num saco de plástico, um tacho com arroz que ela comia ali, a que horas fosse, e de colher. essa rapariga fazia xixi na cama todas as noites. acho que ela já nem tinha o que vestir. uma noite, vi uma mulher a andar nua na camarata. uma das luzes estava acesa e a enfermeira falava com a mulher nua, nova na camarata. tinha chegado essa noite, não tinha o que vestir e mordia os lábios. nunca soube muito bem o que é que tinha. na minha cabeça era prostituta. claro que não lhe perguntei "então, a como estão os felacios?" mas também nunca desfiz esta minha ideia. lembro-me da colômbia, uma rapariga/senhora morena de cabelo negro que os pais evitavam visitar. a última vez que a vi foi numa fotografia no jornal de notícias, na página de necrologia. tinha-se suicidado.
4 Comments:
escreve maravilhosamente, beluga
uma posta para a antologia do melhor que a blogosfera alguma vez terá para oferecer
muito obrigado
obrigada eu antónio. tenho muito receio de ficar sem coisas para contar.
Beluga,
Subscrevo o que o AM disse.
Não tenha receio de nada.
não subscreva alma, não subscreva.
sabe que não gosto muito de cunbíbios e sair à noite. o meu mundo quase me basta. mas isso tem o outro lado: as experiências ficam limitadas. e por isso tenho receio
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